Machado de Assis e o sadismo (1)

Narrativa por excelência do sadismo humano, o conto A causa secreta, de Machado de Assis, é composto basicamente de 10 cenas, as quais passo a comentar
Machado de Assis, autor de “Dom Casmurro”
01/05/2010

Narrativa por excelência do sadismo humano, o conto A causa secreta, de Machado de Assis, é composto basicamente de 10 cenas, as quais passo a comentar: CENA 1: Formada pelos dois parágrafos iniciais, cujos conteúdos se chocam, se tensionam. No primeiro, Garcia, Fortunato e Maria Luísa, os personagens principais do conto, após terem falado de amenidades, são flagrados num momento de descontração, de relaxamento: “Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha”. O narrador — de terceira pessoa, e com uma perspectiva próxima à de Garcia (fato importante: pois, como o leitor, à proporção que a história se desenvolve, Garcia vai ficando assustado, ou mesmo “atônito”, com a figura esquisita e profundamente sádica de Fortunato) — mostra-se à vontade, sem maiores empecilhos para narrar, pois os três personagens a que se refere “estão agora mortos e enterrados”, e, assim, “tempo é de contar a história sem rebuço” (ou sem disfarce, sem dissimulação). Depreende-se que, enquanto estavam vivos os três personagens, o tempo não era de se contar a história — a não ser que com “rebuço” (ou com disfarce, com dissimulação). O tempo agora portanto permite um relato patente, franco, aberto. E por que só agora? O narrador está sugerindo que o que vai relatar, por ter acontecido com ausentes, ou com gente morta, poderá parecer de menor importância para os presentes, para a gente viva — incluindo o leitor. Trata-se de uma forte ironia, na forma de um despiste, pois o relato, tratando de sadismo, de natureza humana, terá grande importância justamente para os vivos — e já nenhuma para os mortos. Não é, evidentemente, sobre mortos, mas sobre vivos que o narrador irá discorrer. No segundo parágrafo da cena, contrapondo-se a amenidade do primeiro, vem a gravidade de um episódio ocorrido que é reposto na conversa dos três personagens — segundo o narrador, uma “coisa tão feia e grave” que deixou Maria Luísa com os dedos “trêmulos” e Garcia com uma “expressão de severidade”. A reação de Fortunato para tal “coisa feia e grave” é elidida da cena. Por quê? O leitor já fica um tanto intrigado. Algo já chama a atenção para esse personagem (que, com efeito, logo obterá o protagonismo da história). A cena se encerra com o narrador advertindo: “o que se passou foi de tal natureza” que, para compreendê-lo, será preciso “remontar à origem da situação”. Daí a exigência agora de um recuo ao passado, de um flashback (que ocorrerá a partir da CENA 2). O episódio “de tal natureza” não narrado mas apenas anunciado — aqui o artifício do suspense — no segundo parágrafo fica como o índice mais importante da primeira cena do conto.

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Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

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