Maceió, 1930 (2)

A importância de Gilberto Freyre, José Lins do Rego e Graciliano Ramos na construção do Regionalismo de 30
Gilberto Freyre, autor de Casa-Grande & Senzala
01/08/2008

Se é verdade, como prova com veemência Joaquim Inojosa[1], que Gilberto Freyre (1900-1987), num de seus rasgos de mitomania, inventou a existência de um Manifesto Regionalista, que teria redigido em 1926, em Recife (PE), não é menos verdade que o sociólogo exerceu decisiva influência na conformação do ideário do chamado “Regionalismo de 30”. Em 1923, recém-chegado dos Estados Unidos, onde estivera estudando desde cinco anos antes, Freyre “andava em verdadeiras núpcias com a terra”[2], segundo palavras de José Lins do Rego (1901-1957): “Havia nessa época o movimento modernista de São Paulo. Gilberto criticava a campanha como se fosse de uma outra geração. O rumor da Semana de Arte Moderna lhe parecia muito de movimento de comédia, sem importância real. O Brasil não precisava do dinamismo de Graça Aranha, e nem da gritaria dos rapazes do Sul; o Brasil precisava era de se olhar, de se apalpar, de ir às suas fontes de vida, às profundidades de sua consciência”[3].

E são as idéias de constituição de um “regionalismo orgânico”[4] que Freyre, a convite de José Lins, apresentará, em 1924, aos jovens escritores da Paraíba (João Pessoa), entre eles o romancista José Américo de Almeida (1887-1980), que quatro anos mais tarde publicaria A bagaceira, tido como marco inaugural do movimento. Naquela época, José Lins, formado em Direito no Recife, onde se tornara amigo de Freyre, estava de volta à Paraíba para se casar. Em 1925, ele ingressa no Ministério Público e muda-se para Manhuaçu (MG), mas um ano depois renuncia ao cargo de promotor público e consegue uma nomeação para fiscal de bancos em Maceió (AL). E esta pequena cidade, de pouco mais de 90 mil habitantes, onde permanecerá por quase dez anos, entre 1926 e 1935, o futuro romancista transformará em foco de irradiação das convicções ideológicas de Freyre (que evidentemente passam a ser também suas).

Logo ao desembarcar em Maceió, José Lins retoma sua atividade jornalística, iniciada no Recife, e faz-se amigo de Jorge de Lima (1893-1953), médico, ex-deputado e celebrado poeta parnasiano (principalmente pelo soneto O acendedor de lampiões, do seu livro XIV Alexandrinos, publicado em 1914). Em 1925, Jorge de Lima imprime um folheto de poemas, intitulado O mundo do menino impossível, saudado por José Lins com entusiásticas palavras, devido à sua adesão não ao modernismo, mas… ao regionalismo. “Jorge de Lima (…) voltou a si, recobrou os sentidos.// A sua literatura de antes era uma literatura fora do tempo e do espaço. E mesmo, se quiséssemos situá-la, uma arquitetura em cera”[5]. E continua, afirmando que se o poeta rompeu com o passadismo, não foi a “convenção modernista” que o levou aos novos versos: “A poesia foi quem o levou a isso.// Aos seus poemas ele deixou que vivessem à vontade. Fugiu de os ajustar aos seus preconceitos de antigamente ou de os compor assim para não ficar atrás, como certos sujeitos, sempre preocupados em tomarem à hora certa os trens que levam à notoriedade e à voga”[6]. Este texto, publicado originalmente nas páginas do Jornal de Alagoas, passou a integrar, como posfácio, as edições de Poemas, de 1927, e Poemas escolhidos, de 1932.

Novas idéias
José Lins afirma mesmo que foi sua a sugestão para a composição de um dos mais célebres poemas do amigo, Essa Negra Fulô[7], de claro cunho regionalista. “O tema do ‘Negra Fulô’ foi dado por mim que, tendo lido o ‘Coco do Major’, de Mário de Andrade (a quem conheci de passagem por Maceió), lhe sugeri produzisse um poema baseado no coco alagoano”[8]. E ambos iriam contribuir significativamente para espalhar as novas idéias no ambiente provinciano. “Que havia em todo o país uma preparação psicológica para o advento de uma nova estética, prova-o o fato de o Modernismo haver surgido quase ao mesmo tempo em diversos lugares.// Não passamos a fazer literatura modernista para imitar os nossos confrades de São Paulo e daqui [do Rio]. Abandonamos os velhos moldes porque também em Maceió, como em todo o Nordeste, àquele tempo, amadureceu e tomou forma, no espírito dos escritores, o desejo de fazer alguma coisa nova e diferente do que então se perpetrava por esse Brasil afora, na poesia, no romance, no ensaio, etc.”[9], argumenta Jorge de Lima. Assim, em 1927 um grupo de adolescentes[10] criou em Maceió o Grêmio Literário “Guimarães Passsos” que, em 17 de junho de 1928, realizou a “Festa da Arte Nova”, uma espécie de Semana de Arte Moderna da cidade. Mas a entrada desses jovens na modernidade do século 20 só foi comemorada quando, em 23 de junho de 1929, promoveram a “Canjica Literária”, um evento regionalista, sob influxos de Jorge de Lima e de José Lins[11].

Mudanças
Enfrentando problemas políticos, em 1930 Jorge de Lima decide ir embora de vez para o Rio de Janeiro. Em abril daquele ano, Graciliano Ramos (1892-1953) renuncia ao mandato de prefeito de Palmeira dos Índios e em maio já está morando em Maceió, nomeado diretor da Imprensa Oficial do estado. Lá, convive com José Lins — ambos colaboram no Jornal de Alagoas —, mas no final de 1931, demitido, volta para Palmeira dos Indios. Em janeiro de 1933 muda-se novamente para Maceió, agora como diretor de Instrução Pública do estado, cargo no qual permanece até 1936. Esse será um período de intensa atividade literária para José Lins e Graciliano. Em 1932, José Lins imprime, por conta própria, dois mil exemplares de seu primeiro romance, Menino de engenho, que rapidamente se esgotam, alcançando enorme sucesso no Rio de Janeiro e projetando o nome do autor. Na sequência, publicará quase todo o chamado Ciclo da Cana-de-Açúcar: Doidinho (1933), Banguê (1934), O moleque Ricardo (1935) — que se completa com Usina (1936). Graciliano estréia em 1933, com Caetés, que também chama a atenção da crítica e do público, e lança no ano seguinte São Bernardo. No entanto, acusado de subversão, em 3 de março de 1936 é preso e enviado para o Rio de Janeiro, onde ficaria encarcerado até janeiro de 1937, sendo solto graças aos esforços do amigo José Lins, que, nomeado fiscal do imposto de consumo, se transferira para a Capital Federal em fins de 1935. É ainda pelas mãos de José Lins que o terceiro livro de Graciliano, Angústia, cujo cenário é Maceió, é publicado em 1936, estando o autor na cadeia. J. Nemésio relembra a convivência dos dois na capital alagoana: “Mais tarde, vi-os novamente, desta vez juntos, em Maceió, e já camaradas, ambos já criticando os figurões da terra, costurando pessoas e coisas, cochichando, rindo, cutucando ‘personalidades’”.[12]

Nesta época, José Lins se tornará amigo do conterrâneo Santa Rosa (1909-1956), funcionário do Banco do Brasil, que morou em Maceió em 1932, e que, radicando-se no ano seguinte no Rio de Janeiro, será reconhecido como artista plástico, crítico de arte, cenógrafo e um dos maiores capistas brasileiros de todos os tempos[13]. E, ambos, José Lins e Graciliano, ainda conviverão com a cearense Rachel de Queiroz (1910-2003), em 1933, já consagrada pelo êxito de seu primeiro livro, O quinze (1930), e tendo lançado outro romance, João Miguel(1932), responsável pelo seu rompimento com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Jorge Amado (1912-2001) irá recordar com carinho esse momento, quando decidiu viajar até Maceió para conhecer pessoalmente Graciliano: “Fui encontrá-lo num bar; tomava café preto em xícara grande, cercado pelos intelectuais da terra — todos eles reconheciam a ascendência do autor ainda inédito, era o centro da roda. Ficamos amigos imediatamente. (…) Fiquei amigo também de todo o poderoso grupo de escritores que vivia em Maceió. Digo vivia, pois, além dos alagoanos — Graciliano, Valdemar, Aurélio Buarque de Hollanda, Alberto Passos Guimarães, Raul Lima, Theo Brandão, José Auto, Diegues Júnior, Carlos Moliterno, o poeta Aluísio Branco e o contista Carlos Paurílio — ali residiam, na ocasião, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz, dois dos mais importantes entre os jovens romancistas”[14]. Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira relembra: “À noite, o grupo (…) reunia-se no ‘Ponto Central’, não faltando às conversas outros escritores mais jovens ou menos famosos (…)[15]”.

A partir de 1939, estarão todos reunidos novamente no Rio de Janeiro[16], onde o consultório médico de Jorge de Lima, na Cinelândia, transforma-se em ponto de encontro dos intelectuais radicados na capital da República, particularmente com alguns dos quais convivera em Maceió. E essa amizade, de influências recíprocas, é que permitiu que os chamados “regionalistas de 30” renovassem o regionalismo nordestino imediatamente anterior, tendo em Gilberto Freyre um sucessor ideológico de Franklin Távora (1842-1888) — assim como, de certa maneira, Mário de Andrade (1893-1945) retomaria no século 20 as idéias de José de Alencar (1829-1877). Os regionalistas eram modernos, sim, mas não modernistas…

Notas

[1] V. Sursum corda! Rio de Janeiro: Edição do Autor, 1981.

[2] REGO, José Lins do. “Gilberto Freyre”. In: O cravo de Mozart é eterno. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004 (p. 49).

[3] Idem, p. 52.

[4] “O regionalismo é um esforço no sentido de facilitar e dignificar certa atividade criadora local desembaraçando o que há de pejorativo em ‘provinciano’ de qualidades e condições geográficas”, escreveria Gilberto Freyre em 7 de fevereiro de 1926, no Diário de Pernambuco. In: FREYRE, Gilberto. Manifesto Regionalista. 7ª edição revista e aumentada. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 1996 (p. 110).

[5] LIMA, Jorge de. Poesias completas – Volume I. Rio de Janeiro/Brasília: José Aguilar/MEC, 1974 (p. 139).

[6] Idem, p. 144.

[7] Publicado originalmente em 1928, como folheto, e incorporado a Novos Poemas, de 1929.

[8] IVO, Ledo. Anos de aprendizagem de José Lins do Rego – A história de sua criação artística. Rio de Janeiro: Tribuna dos Livros, 21-22 de setembro de 1957.

[9] SENNA, Homero. República das Letras – entrevistas com 20 grandes escritores brasileiros. 3ª edição, revista e ampliada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996 (p. 129-130)

[10] Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, Arnon de Mello, Manuel Diegues Júnior, Mendonça Júnior, Paulo Malta Filho, Raul Lima, Valdemar Cavalcanti, Emílio de Maya, Carlos Paurílio e Aluísio Branco.

[11] V. SANT’ANNA, Moacir Medeiros de. História do Modernismo em Alagoas (1922-1932). Maceió: Edufal, 1980.

[12] “José Lins e Graciliano”. São Paulo: Diário de São Paulo, 19/10/1950

[13] Seus primeiros projetos gráficos serão para o romance Caetés, de Graciliano Ramos, pela Schmidt Editora; e Cacau, de Jorge Amado, e Doidinho, de José Lins do Rego, para a Ariel Editora. Depois se tornará o capista quase oficial da Livraria José Olympio Editora.

[14] “O Dia em que conheci Graciliano”. São Paulo: Status, novembro de 1978 (p. 150-151).

[15] SENNA, Homero. República das Letras – entrevistas com 20 grandes escritores brasileiros. 3ª edição, revista e ampliada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996 (p. 265).

[16] Pela ordem de chegada: Jorge de Lima (1930), José Lins do Rego (1935), Graciliano Ramos (1936), Aurélio Buarque de Hollanda e Rachel de Queiroz (1939).

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

Rascunho