Maceió, 1930 (1)

A longa distância que separa o Regionalismo de 30 dos preceitos da Semana de Arte Moderna de 22
01/07/2008

Sempre me intrigou o fato de historiadores e críticos literários, engarupados na cronologia, situarem o chamado “Regionalismo de 30” como um desdobramento natural dos preceitos da Semana de Arte de Moderna de 1922. Nada me parece tão equivocado quanto essa assertiva. José Américo de Almeida (1887-1980), em Antes que me falem, verdadeira “profissão de fé” com que abre seu romance inaugural, A bagaceira, publicado em 1928, embora critique o romantismo[1] e o naturalismo[2], expõe teses que definitivamente não se alinham com as idéias dos primeiros modernistas. Afirma ele, entre outras coisas: “nossa ficção incipiente não pode competir com os temas cultivados por uma inteligência mais requintada”; “um romance brasileiro sem paisagem seria como Eva expulsa do Paraíso”; “a plebe fala errado; mas escrever é disciplinar e construir”[3]. No Manifesto da Poesia Pau-Brasil, lançado nas páginas do Correio da Manhã, de São Paulo, em 18 de março de 1924, que resume as preocupações do grupo à época, Oswald de Andrade (1890-1954) proclama: “Substituir a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem: sentimental, intelectual, irônica, ingênua”; “A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos”[4]. Aliás, basta ler a prosa de ficção de Oswald e de Mário de Andrade (1893-1945), anteriores à edição de A BagaceiraMemórias sentimentais de João Miramar, de 1924, e Amar, verbo intransitivo, de 1927, respectivamente —, para percebermos a distância que separa os autores.

Em 1930, com 20 anos incompletos, Rachel de Queiroz (1910-2003) lança O quinze, que imediatamente recebe a consagração na imprensa do Rio de Janeiro. Tampouco podemos considerar Rachel influenciada pelos modernistas — a autora tinha 12 anos quando aconteceu a Semana de Arte Moderna, e suas leituras preferidas eram Eça de Queiroz, As mil e uma noites e a Antologia nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet[5], modelo da literatura passadista[6]. Para compor seu romance, confessa: “O que li (e me influenciou muito sobre a seca) foi Rodolfo Teófilo”[7], um autor cientificista, “que encontrou no pedantismo o seu defeito dominante”, segundo Lúcia Miguel-Pereira[8]. “Quando escrevi o livro, não tinha idéia nenhuma de fazer algum tratado de Sociologia, nem dar o primeiro pontapé na literatura nordestina, nada dessas ambições. Como meus pais eram instruídos e sensíveis às questões literárias, escrever, para mim, era uma atividade natural”[9], esclarece Rachel.

Mais claros ainda são Graciliano Ramos (1892-1953) e José Lins do Rego (1901-1957), que, com Rachel de Queiroz, formam os pilares do “Regionalismo de 30”. Graciliano, que publica seus principais romances na década de 30 (Caetés, em 1933; São Bernardo, em 1934; Angústia, em 1936 e Vidas Secas, em 1938), demonstra verdadeira antipatia pelos modernistas. Indagado se acompanhou os desdobramentos do movimento paulista, responde positivamente, para emendar: “Sempre achei aquilo uma tapeação desonesta. Salvo raríssimas exceções, os modernistas brasileiros eram uns cabotinos”[10]. E, quando perguntado diretamente se se considerava modernista, responde, com impaciência: “Que idéia! Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão”[11].

José Lins do Rego também rechaça qualquer possibilidade de vinculação com aquela “meia dúzia de rapazes inteligentes e lidos em francês”[12]: “Eu mesmo (…) me pus no lado oposto, (…) para verificar na agitação modernista uma velharia, um desfrute que o gênio de Oswald de Andrade inventara para divertir os seus ócios de milionário”[13]. Mesmo com relação à língua, o romancista mostra posicionamento divergente: “A língua de Mário de Andrade nos pareceu tão arrevesada quanto a dos sonetos de Alberto de Oliveira. A língua que Mário de Andrade quis introduzir com o seu livro é uma língua de fabricação; mais um arranjo de filólogo erudito do que um instrumento de comunicação oral ou escrito”[14].

Ora, alguém poderia alertar que essas opiniões são fruto de uma reflexão posterior — uma tentativa talvez de minimizar os efeitos do Modernismo sobre o Regionalismo, numa espécie de tomada de posição a favor do Nordeste e contra a ditadura varguista, que havia incorporado ao seu o ideário estético (mas não o político) de 1922[15]. Mas, se é verdade que os depoimentos de José Lins e Graciliano ocorreram na década de 1940 (para ser mais exato, 1942 e 1948, respectivamente — o de Rachel remonta à década de 1990), é certo também que se trata apenas de uma formulação mais aprofundada de um pensamento já presente contemporaneamente aos acontecimentos da década de 1920. José Lins, ainda desconhecido do público fora de Maceió (AL), onde se encontrava radicado, escreve um texto no Jornal de Alagoas, de 15 de dezembro de 1927, sobre O mundo do menino impossível, de Jorge de Lima (1893-1953), antecipando algumas de suas observações. “Vemos todo o dia um novo gritando: eu vou fazer a poesia nova do meu país. A gente vai atrás do ruído, e não encontra nada”. Mais à frente, analisa que a arte brasileira “não virá dos discursos às estrelas do Sr. Plínio Salgado, nem tampouco dos saltinhos à Piolim do muito talentoso Oswald de Andrade”, pois “nessa gente opera-se uma modernização de superfície”, mas sim do “caráter puramente regionalista”, como o encontrado na obra de Jorge de Lima: “Porque o seu regionalismo não é um limite à sua emoção e não tem por outra parte o caráter de partido político daquele que rapazes de São Paulo oferecem ao país com as insistências de anúncios de remédio. O Nordeste não vem em sua poesia como um tema ou uma imposição doutrinária, vem como a expressão lírica de um nordestino a evocar a sua terra”[16].

José Américo de Almeida, também escrevendo sobre Jorge de Lima, em artigo publicado no jornal A União, de João Pessoa (PB), em 22 de janeiro de 1928, caminha na mesma seara. “Antes de se falar em Modernismo no Brasil já todo mundo estava enjoado dos requintes e da frialdade dos parnasianos uniformes. Havia sede de poesia como é de verdade em tempo de seca. […] Daí o êxito da musa matuta, a procura dos trovadores analfabetos, a figuração de Catulo Cearense e das coletâneas do Sr. Leonardo Mota”[17]. O próprio Jorge de Lima, num ensaio de 1929, afirma que “do mesmo jeito que o Alencar foi um abolicionista literário do índio, e o Castro, do negro, o modernista tentou a sua alforria. […] Mas, questão de força, bem poucos tiveram muque para rebentar os ferros”[18]. Nesse momento, após uma breve (e muito bem-sucedida) passagem pelas hostes parnasianas, o poeta havia publicado três livros, que, antes que “modernistas”, podem ser compreendidos como “regionalistas”[19], em poemas como Noite de São João, Essa Negra Fulô, Inverno, entre outros.

Nesse caso, prefiro compreender o “Regionalismo de 30” como um desdobramento do… regionalismo nordestino imediatamente anterior, que teve na pregação antialencariana de Franklin Távora (1842-1888), autor de O cabeleira (de 1876), o seu maior expoente ideológico. Até porque, como chama a atenção Lúcia Miguel-Pereira, falando desse período, “no Norte (…) fez-se o regionalismo menos rígido, permeável a concepções mais gerais do homem, ganhando em humanidade o que perdia em pitoresco”[20]. E podemos aqui citar um Domingos Olímpio (1851-1906), com seu Luzia-Homem (de 1903); Rodolfo Teófilo (1853-1932), com seu Fome (de 1890) ou Os brilhantes(de 1895) e Lindolfo Rocha (1862-1918), com seu Maria Dusá (de 1910).

Mais importante que as idéias modernistas da década de 1920 na formulação do “Regionalismo de 30”, talvez tenha sido o papel exercido por José Lins do Rego, discípulo confesso e ardoroso do sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987), junto à intelectualidade reunida fortuitamente numa pequena cidade de 90 mil habitantes, Maceió, onde moraram, entre os fins da década de 1920 e inícios da de 1930, os romancistas Graciliano Ramos e Rachel de Queirós, o poeta Jorge de Lima, o dicionarista Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, e outros nomes menos cotados, como Valdemar Cavalcânti, Aloísio Branco, Alberto Passos Guimarães, Carlos Paurílio, além do artista plástico, crítico de arte, cenógrafo e um dos maiores capistas brasileiros de todos os tempos, Santa Rosa. E é a história desse inusitado — e profícuo — encontro que contaremos no próximo mês.

Notas
[1] “Se escapar alguma exaltação sentimental, é a tragédia da própria realidade. A paixão só é romântica quando é falsa”. In ALMEIDA, José Américo de. A Bagaceira. 19ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981 (p. 2)

[2] “O Naturalismo foi uma bisbilhotice de trapeiros. Ver bem não é ver tudo: é ver o que os outros não vêem”. Idem.

[3] Ibidem.

[4] TELLES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro – apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 8ª edição. Petrópolis: Vozes, 1985 (p. 326-331).

[5] NERY, Hermes Rodrigues. Presença de Rachel. Ribeirão Preto: Funpec Editora, 2002 (p. 70-71).

[6] “Com um formato moderno, esta seleta teve papel importante na conservação e reprodução do ensino do vernáculo (e da literatura) calcado em modelos de ‘bem dizer’ e de ‘bem escrever’”. In: RAZZINI, Márcia de Paula Gregório. O espelho da nação: a Antologia Nacional e o ensino de Português e de Literatura (1838-1971). Tese de doutoramento apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Consultar em: http:\www.unicamp.br/iel/memoria/projetos/teses/ tese21. doc

[7] Op. Cit, p. 68.

[8] In: Prosa de Ficção (de 1870 a 1920). 3ª edição. Rio de Janeiro/Brasília: José Olympio/MEC, 1973 (p. 135).

[9] Op. Cit., p. 66.

[10] SENNA, Homero. República das Letras – entrevistas com 20 grandes escritores brasileiros. 3ª edição, revista e ampliada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996 (p. 202)

[11] Idem.

[12] “Espécie de história literária”. In: O cravo de Mozart é eterno – crônicas e ensaios. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004 (p. 42).

[13] Idem, p. 43.

[14] Ibidem.

[15] As idéias modernistas foram incorporadas durante o longo período de Gustavo Capanema (1900-1985) à frente do Ministério da Educação e Saúde, entre 1934 e 1945, quando contou com a colaboração de, entre outros, Mário de Andrade, Cândido Portinari, Manuel Bandeira, Heitor Vila-Lobos, Cecília Meireles, Lúcio Costa, Vinícius de Morais, Afonso Arinos de Melo Franco, Rodrigo Melo Franco de Andrade, tendo, à frente, Carlos Drummond de Andrade.

[16] LIMA, Jorge de. Poesias completas – Volume I. Rio de Janeiro/Brasília: José Aguilar/MEC, 1974 (p. 139-144).

[17] Idem, p. 70

[18] “Todos cantam sua terra… In: LIMA, Jorge de. Poesias completas – Volume IV. Rio de Janeiro/Brasília: José Aguilar/MEC, 1974 (p. 103).

[19] A saber: O mundo do menino impossível (1925); Poemas (1927); Essa Negra Fulo (1928)

[20] Op. Cit, p. 184

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

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