Love story japonesa

Romance de Kyoichi Katayama faz apologia do amor puro e romântico
Kyoichi Katayama por Ramon Muniz
01/06/2011

Sem dúvida, Um grito de amor do centro do mundo, primeiro romance de Kyoichi Katayama, traduzido no Brasil e publicado pela Alfaguara em 2001 é, como seu próprio título indica, uma história de amor.

Basicamente, o enredo se desenvolve a partir da perspectiva do jovem Hagiwara Sakutarô, chamado pelos íntimos de Saku-chan, que narra, em primeira pessoa, a descoberta do amor, desde o momento em que se apaixona pela bela Aki Hirose, sua colega de turma, na fase da adolescência. Um tema delicado, que vai assumindo contornos mais trágicos, quando se descobre que a jovem sofre de leucemia, doença que a levará à morte.

Toda narrativa gira ao redor do significado da ausência da amada, vivenciada de modo intenso e ultra-romântico pelo narrador, que passa a se sentir sem lugar no mundo e totalmente perdido, revelando que a perda de quem amamos pode continuar a reverberar em nós existencialmente, como um grito de amor que não cala jamais:

Este é o significado da ausência de Aki. De não tê-la mais comigo. Não tenho mais nada para ver: seja na Austrália, no Alasca, no Mediterrâneo ou mesmo na zona glacial antártica. E não importa para qual lugar do mundo eu vá; será sempre assim. Por mais que o lugar seja maravilhoso, a paisagem extraordinária, nada será capaz de me comover ou me deixar feliz. Perdi a pessoa que despertava minha vontade de ver, conhecer, sentir e até mesmo… viver. Ela nunca mais vai estar ao meu lado.

Tudo aconteceu num intervalo de quatro meses; praticamente o de uma única estação do ano. Foi nesse curto espaço de tempo que uma garota desapareceu deste mundo. Se considerarmos que existem seis bilhões de habitantes, certamente sua perda é insignificante. Mas não estou com esses seis bilhões. Estou num lugar em que uma única morte extinguiu todos os meus sentimentos. Estou num lugar assim. E nesse lugar sou aquele que não vê, não ouve e não sente mais nada. Mas será que realmente estou aqui? Se eu não estiver, então, onde eu estou?

De fato, é significativo que, em tempos de “amor líquido” — para usar uma expressão de Zygmut Bauman, a respeito dos relacionamentos fugazes e descartáveis, nesses nossos tempos pós-modernos —, uma história entre adolescentes faça a apologia do puro e gentil amor romântico, situado e ambientado no Japão de hoje, despertando tanto interesse.

No fundo, ainda que vivamos, em quase tudo o que nos toca, as angústias das previsões apocalípticas do fim do sujeito, da arte, da história, do esvaziamento do sentido de utopia, do dilaceramento do eu, que sempre se mostra cada vez mais fragmentado, um enredo singelo, que se traduza quase como um ato confessional desesperado de alguém que se perde de si mesmo, ainda bem cedo (com apenas 17 anos), por conta da duríssima experiência de enfrentamento com a morte do ser amado, pode ser muito tocante. Talvez, a feliz recepção dessa love story japonesa, por boa parte da crítica e dos leitores, denote muito mais a ânsia da sociedade contemporânea em se agarrar a algum tipo de esperança, de crença, até pueril e um tanto quanto idealizada, em algum traço de humanidade que ainda não se deteriorou, na avalanche de todas as quedas.

Volta ao passado
Assim, por mais que percebamos, no romance, diversas situações que indicam a abertura à ocidentalização de um Japão não mais auto-referente, capaz de sintetizar tradição e modernidade, o que ainda é subjacente à estrutura da narrativa é uma espécie de volta às sensações de um passado, que não conhece demarcações de fronteiras ou nacionalidades. Esse artifício do narrar, entretanto, soa de modo dissonante, no contexto literário contemporâneo, em que a desintegração do eu e as angústias amorosas são cotejadas numa problemática existencial de natureza mais complexa e fragmentária. Melhor dizendo, no Japão que já assimilou o rock, o piercing, a tatuagem, o McDonalds, a língua inglesa e todo tipo de liberação inadmissível em outros tempos, naquela cultura, a delicadeza de um amor puro e verdadeiro entre adolescentes, sem qualquer outra problematização que não a da perda do ser amado, representa, em si mesma, uma poética deslocada. Talvez, pudéssemos estar diante de uma situação como a já muito bem analisada por Fredric Jameson em Pós-modernidade e sociedade de consumo, ao tratar de uma das características da contemporaneidade, que ele denomina “pastiche”. Assim como alguns cenários, que nos fazem evocar o passado, às vezes, diluem-se na perspectiva de nosso olhar, o tempo todo exigido pelas diversas e multimidiáticas imagens que nos assediam cotidianamente, parece que a história de Saku-chan e Aki quer resistir a isso, mas acaba convivendo, lado a lado, com os mais sofisticados desenhos japoneses 3D, os mangás, os games da Nintendo e os trens-bala, dentro da mais alta tecnologia de ponta.

Em outros termos, assim como passou a ser costumeiro que convivamos com colunas gregas forjadas artificialmente, em espaços de drive-thru de alimentos fast food, em que devoramos hambúrguer e batatas fritas, um romance à la love story, adaptado no Japão contemporâneo, clama por uma sensação passadista, por um true love, uma eternal flame dos bons e velhos tempos, gerando o deslocamento de uma elegia de amor, que se esforça por aparecer, em meio aos amores partidos e fadados à fugacidade de nossos tempos sem porvir.

Se não pudermos lê-lo dessa forma, não restaria muito a ver, num romance despretensioso, voltado a formas simples e diretas do narrar e que acaba não aprofundando as questões mais cruciais da existência, seja em termos da problematização da memória ou dos processos de investigação mais subjetiva, envolvidos na percepção do mundo, por parte dos jovens japoneses, na atualidade.

Norwegian Wood
Nesse sentido, como contraponto, convém lembrar outro romance, bem mais instigante, também editado pela Alfaguara, em 2000, do escritor Haruki Murakami, traduzido para o português por Jefferson José Teixeira: Norwegian Wood. De fato, embora tenhamos uma ambientação datada nos anos 60 e 70, quando as questões da abertura da cultura nipônica ao ocidente eram muito mais polêmicas do que hoje, percebemos uma excelente estratégia narrativa que investe, de modo complexo, na formação do jovem Toru, que, assim como Saku-chan, vive uma história de amor adolescente com a belíssima Naoku, que, ao final, acaba cometendo suicídio. Além da confissão pungente da perda precoce de um amor, temos, em Murakami, uma verdadeira poética do suicídio, tão cara à sociedade tradicional e perfeccionista japonesa, que não aceita falhas, posta em cheque, numa reflexão que tangencia as aflições da alma do indivíduo, mas que transcendem muito além de sua subjetiva e egocêntrica apreensão da realidade. Murakami assume, de modo inteiro a acusação de ser considerado um dos autores mais ocidentalizados do Japão, uma vez que, como boa parte de sua obra ficcional demonstra, não percebe a abertura ao Ocidente como problema, mas como redenção.

De modo análogo, mas sem tanta veemência, apenas de passagem e de modo muito mais superficial, o “grito de amor” de Katayama toca nas questões da ocidentalização do Japão, mas sem deixar que elas assumam o pano de fundo, como acontece no já citado Norwegian Wood:

Sentamos na cama com as costas apoiadas na cabeceira e resolvemos brincar de testar nossos conhecimentos de inglês. Um de nós falava uma palavra em japonês e o outro respondia com a palavra inglesa correspondente. Se a pessoa respondesse o que o outro não sabia, ganhava um ponto.

— “Meishin” — perguntou Aki.

— “Superstition” — respondi rápido.

— Está muito fácil?

— Um pouquinho. Agora é minha vez: “ninshin”.

— “Ninshin”?

Aki olhou para mim com os olhos arregalados.

— Não sabe?

— Hum…

— “Conception”; ou seja, gravidez.

— Ah, é mesmo!

— Agora é a sua vez.

— Deixe me ver… “Dôjô, kyôkan”.

— “Sympathy”. — Novamente, minha resposta foi rápida. — Por acaso você está aprendendo palavras que começam com “s”?

— Digamos que sim. Você é muito bom em inglês, né?

— É que essas duas palavras eu aprendi ouvindo rock. Stevie Wonder e Rolling Stones.

— Hummm.

Tradição japonesa
Embora busque uma possível concessão ao universo ocidental, na narrativa de Katayama proliferam exemplos de apego à tradição japonesa, como na atitude de reverência que o protagonista dedica ao avô. Em certo momento, este convoca o neto para uma missão especial, que é a de violar um crematório para roubar as cinzas da mulher que sempre amou (e que não era a sua esposa, também já falecida). Depois de concluída a peripécia, ele pede a Saku- Chan que lhe faça um juramento: o de manter a caixa das cinzas de sua amada guardada para misturar às dele (depois que morresse), jogando-as, assim juntas, aos pés de uma montanha.

Num trecho em que a verdade ancestral do avô, encarnando a sabedoria se reveste de lição de literatura, ouvimos a nota principal que percorre todo o romance, a de que nada destrói a força do amor verdadeiro, tanto quanto analogamente nada pode corromper as bases de uma cultura tão arraigada à tradição, como a japonesa. Ao menos, é o que aqui se espera:

Sem dizer nada, meu avô assentiu com a cabeça e em seguida declamou: “Dias de verão; noites de inverno; decorridos longos anos, para junto de ti retornarei”. O último trecho foi recitado de cor: “Longos dias de verão, longas noites de inverno, tu estás aqui a descansar. Daqui a alguns anos eu também descansarei ao teu lado. Tranqüilamente, aguardo esse dia chegar…”

— A mulher que ele amava morreu, não é?

— Lendo isso, pode-se dizer que, apesar do enorme progresso que alcançamos, os sentimentos mais profundos do ser humano não mudaram muito. Este poema foi escrito há uns dois mil anos, ou até mais. É um poema muito antigo, do tempo em que não havia formas poéticas fixas tais como o “zekku” e o “risshi”, que vocês devem ter aprendido na escola. Mas você não acha que os sentimentos dessas pessoas que escreveram o poema ainda hoje conseguem ter repercussão em nós? Eu acho que as emoções podem ser compreendidas por qualquer pessoa, independentemente de ela ter instrução ou cultura.

Belo e nobre sentimento, esse amor melodramático à moda antiga só peca por fazer-se centro do mundo, voltado romanticamente apenas para a sua dor individual, num momento em que a maior dor do mundo é a de ter perdido o próprio centro…

Um grito de amor do centro do mundo
Kyoichi Katayama
Trad.: Lica Hashimoto
Alfaguara
160 págs.
Kyoichi Katayama
Nasceu no distrito de Ehime, no Japão, em 1959. Iniciou a carreira literária em 1986 com o romance Kehai, vencedor do Bungakkai Newcomers Award. Um grito de amor do centro do mundo tornou-se um fenômeno de vendas no Japão desde o seu lançamento. Este é o primeiro título do autor traduzido no Brasil.
Maria Célia Martirani

É escritora. Autora de Para que as árvores não tombem de pé.

Rascunho