Literatura de menos

Resenha do romance "Cama", de David Whitehouse
David Whitehouse, autor de “Cama”
01/02/2013

A última frase sobre David Whitehouse, constante de uma das orelhas de sua primeira obra publicada no Brasil, diz: “Em 2010, recebeu o prêmio inaugural Tell Hell, na feira do livro de Londres, antes mesmo da publicação de Cama, seu primeiro romance”. A frase, desprovida de informações tais como os critérios de escolha dos contemplados pela premiação citada, permite que o leitor imagine jurados que conspiram entre si ou, pior, tiram a sorte até chegarem a uma decisão — seria, talvez, uma forma de homenagear Mallarmé e seu famoso “lance de dados”. Alguém com uma boa memória poderia se lembrar de quando o único presidente brasileiro a sofrer um impeachment passou a ocupar uma das cadeiras da Academia Alagoana de Letras… mesmo sem ter publicado obra alguma! Outra pessoa, mais razoável, perceberia que não há referência explícita de que o prêmio foi concedido por causa do romance ainda não publicado e se perguntaria se o Tell Hell seria um concurso de contos ou uma enquete pública a respeito de qual seria o escritor mais bonito da feira do livro de Londres.*

Mas isso não é literatura: isso é apenas marketing, um aglomerado de pedaços de informação especialmente selecionados para aparecerem nas orelhas e na quarta capa de um livro. Literatura, mesmo, se encontra nas 256 páginas internas. É lá que “[…] David Whitehouse recupera a tradição literária do absurdo em que pairam no ar mais perguntas do que respostas”, segundo a orelha.

O narrador do romance é irmão de Malcolm Ede, sendo este o personagem em torno do qual orbitam os demais — pai, mãe, namorada da adolescência, irmão-narrador. Mal (favor, não confundir com o antônimo de “bem”) costumava ser um jovem bonito e carismático, com pequenas peculiaridades: gostava, por exemplo, de ficar nu — mesmo fora de casa, na platéia de uma pantomima de Natal. No seu aniversário de 25 anos, ele decide não sair mais da cama, sem dar qualquer explicação. E, da mesma forma que os pais protegiam o filho (e suas idiossincrasias) do veneno da opinião pública enquanto ele era uma criança, continuaram a proceder de maneira semelhante durante vinte anos: cuidam de sua alimentação e higiene; respondem as cartas de fãs do mundo inteiro — que descobriram a situação e vêem nisso uma forma de protesto contra o “sistema”; compram até um relógio para que possam acompanhar há quantos dias ele não se levanta. Sete Mil Quatrocentos e Oitenta e Três — o número é expresso assim mesmo, por extenso e com iniciais maiúsculas, inúmeras vezes no decorrer do livro, tamanha a sua importância para o narrador.

Importância que, no entanto, não se reflete no leitor.

Malabarismo malfeito
Dura é a tarefa de encontrar algo que tenha dado certo no livro. A capa é a primeira (ou melhor, única) coisa que me vem à mente: ela realmente se destaca nas prateleiras de uma livraria e mantém a boa aparência mesmo após a leitura do romance.

Sei que isso é marketing, não literatura, mas creio ser inadequado afirmar que “[…] David Whitehouse recupera a tradição literária do absurdo em que pairam no ar mais perguntas do que respostas”. Quando penso em “absurdo”, lembro-me logo de um agrimensor que não consegue realizar o seu trabalho, de um artista que se recusa a comer, de um trapezista que não quer descer do trapézio, de um caixeiro viajante que, após sonhos inquietos, acorda metamorfoseado como um inseto. Como a muitos não parecerá justo confrontar um autor iniciante com Kafka, compará-lo-emos a um contemporâneo: Lemony Snicket, nos livros infantis da coleção Desventuras em série, consegue resultados muito superiores na representação dessa tradição literária.

(Como sei que muitos leitores devem gostar de “pagar para ver”, prefiro preservar aqueles que porventura possam apreciar a narrativa; não farei, portanto, considerações sobre as páginas finais — eles provavelmente gostarão de descobrir sozinhos como a promessa de “mais perguntas do que respostas” não tem lastro.)

A alternância entre o passado e o presente, a abordagem (rasa) de algumas questões caras ao mundo contemporâneo — como a entrada na vida adulta, a inércia provocada pelas relações familiares e o embate entre privacidade e exposição midiática —, tudo parece querer iludir o leitor de que a obra é mais complexa do que é de fato. No entanto, o simulacro falha no que há de mais básico: a linguagem. Não cabe a mim decidir se a linguagem canhestra é obra da tradutora, do autor ou uma colaboração especial dos dois (não fiz o cotejo com o texto original); porém, resta claro que, pelo menos pelo excesso de comparações e metáforas supostamente inventivas, o jovem escritor deve ser o responsável. Toda vez que eu lia dedos dos pés serem comparados a “massas pendulares de um troll”, lembrava-me das palavras de Borges em entrevista à Paris Review.

Quando eu era jovem andava sempre à caça de novas metáforas. Descobri então que as metáforas verdadeiramente boas são sempre as mesmas. Quer dizer, compara-se o tempo com uma estrada, a morte com o sono, a vida com um sonho, e são essas as grandes metáforas da literatura porque correspondem a algo de essencial. Se inventarmos metáforas, elas são capazes de surpreender durante uma fração de segundo, mas não provocam qualquer tipo de emoção profunda. Se pensarmos na vida como um sonho, isso é uma reflexão, uma reflexão que é real, ou pelo menos uma reflexão que a maioria das pessoas é levada a fazer, não é? “Quão freqüentemente pensado, mas nunca tão brilhantemente expresso” (“What oft was thought, but ne’er so well expressed”, citação de Alexander Pope). Acho isto melhor do que a idéia de chocar as pessoas, do que procurar ligações entre coisas que nunca antes tiveram qualquer ligação entre si, porque não há uma ligação real, portanto tudo não passa de uma espécie de malabarismo.

Ao terminar a leitura, restou a tentação de unir pedaços aleatórios do romance — como, por exemplo, o pijama da capa e um nome na dedicatória que também denomina um personagem menor — e construir uma história melhor do que a que eu acabara de ler. Mas isso constituiria superinterpretação, creio — semelhante à presente no primeiro parágrafo desta resenha.

Trocaria toda essa minha capacidade para superinterpretar por um amigo que me alertasse sobre a qualidade do livro antes que eu começasse a lê-lo.

*Na verdade, o prêmio se chama “To Hell With Prizes” e foi criado para que os agentes literários ingleses submetessem ao júri originais de ficção de autores estreantes. Por enquanto, só houve uma edição do prêmio, em 2010a de 2011 teve seus finalistas divulgados, porém o anúncio do vencedor, programado para abril daquele ano, não foi feito.

Cama
David Whitehouse
Trad.: Rita Vinagre
Rocco
256 págs.
David Whitehouse
Nasceu em 1981, na Inglaterra. Escreveu artigos para Time Out, The Observer, Esquire, entre outros. Atualmente, se dedica a escrever roteiros para televisão. Cama é seu primeiro romance.
Arthur Tertuliano

É escritor e mestrando em estudos literários pela UFPR. Escreve no blog O Leitor Comum.

Rascunho