Língua frouxa

Por que Inês Pedrosa não passa de mais uma escritora empenhada em fragilizar o idioma que lhe serve de instrumento
Inês Pedrosa, autora de “A eternidade e o desejo”
01/08/2008

A fim de abordar com maior sutileza o romance mais recente da portuguesa Inês Pedrosa, A eternidade e o desejo, faço um breve preâmbulo que poderá ser de alguma utilidade mais à frente.

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Anglófilos, com alguma razão, costumam criticar a literatura francesa pelo que ela possui de prolixa, de vazada, de — vá lá — inexata por razão da própria elasticidade da língua em que é escrita. Afinal, é a matéria de que são feitos os romances de Proust e a que foi buscada por escritores de tradição anglo-saxã como Samuel Beckett, cujos personagens possuíam uma verborragia psicológica difícil de ser traduzida no idioma inglês (refiro-me, obviamente, a seus romances). Sei que é necessário fazer a ressalva de que, no século 20, a Inglaterra chegou a ter um Auden e um Geoffrey Hill (ainda vivo): poetas de fluência oral menos rígida. Mesmo T. S. Eliot era alguém — ao contrário do que crêem os que lhe louvam o verso livre — que utilizava a métrica francesa na língua inglesa, forjando um tom elevado porém simples, sem paralelo na literatura dos últimos cem anos. Agora, vejamos como esse raciocínio pode ter relação mais imediata com o que importa descrever nesta crítica.

A gramática francesa. Fora o fascínio que, de imediato, a França veio a exercer no Brasil por meio da força intrínseca à sua cultura — nossa literatura principiava a ganhar força (1910, 1920) quando Paris ainda era a capital artística do mundo —, um fator em especial catalisou a influência da língua gálica por aqui: a sua proximidade sintática e lexical com o português. Não fosse a ubiqüidade do inglês, ainda hoje seria mais fácil a uma criança aprender o francês que o inglês. Portanto, e apesar de não termos tantas oxítonas para estender ainda mais a nossa fala, o português também possui sua quota de falatório injustificado, de blablablá que se alonga para além do que seria estritamente necessário para se dizer o que de fato se quer dizer.

Assim, assoma um panorama em que se pode dispor, com conforto e tranqüilidade, um contraste que parece só se acentuar com o passar das gerações. Ninguém irá negar que já aquele que inventou a nós, Luís Vaz de Camões, sabia como sintetizar em poucos versos — de uma economia sintática cristalina — coisas que um prosador só poderia descrever em páginas e páginas, ainda que, ao fim, nem chegasse a se aproximar da impressão deixada pela versão camoniana (aqui, aliás, nem vale lembrar o desnível de precisão entre prosa e poesia). Eu sei que há poucas coisas tão inconvenientes hoje ao leitor brasileiro cool quanto ler uma estrofe de Camões. Mas peço licença para mostrar como se pode dizer muito com muito pouco e sem necessitar da secura de um João Cabral de Melo Neto. Eis, abaixo, uma estrofe de Os lusíadas, em que é descrita a morada de Netuno no fundo dos mares:

No mais interno fundo das profundas
Cavernas altas, onde o mar se esconde,
Lá donde as ondas saem furibundas,
Quando às iras do vento o mar responde,
Neptuno mora e moram as jucundas
Nereidas e outros Deuses do mar, onde
As águas campo deixam às cidades
Que habitam estas úmidas deidades.

Quando alguém aprende a dizer algo próximo de “Lá donde as ondas saem furibundas”, com toda essas nuanças musicais e precisão silábica, não é mais necessário buscar o mesmo em Coleridge ou em Pope.

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É curioso, portanto, que, embora a literatura portuguesa tenha nascido com um Camões a lhe ensinar a exata medida da duração de uma frase em relação a seu sentido, no último século ela tenha caído na mãos de escritores que, para ser razoável, não posso chamar de menos que repentistas de metáforas embasbacadas. Se, como pensava Jorge Luis Borges, as nações costumam escolher como seus representantes os escritores que menos as representam, como se suprissem uma falta, é lícito pensar que, cada vez mais (a julgar pelas últimas décadas e pela presente), Camões ocupará uma morada acima nas letras portuguesas.

Veja-se, por exemplo, o prêmio Nobel de nossa língua. José Saramago, com seus parágrafos em blocos, empilhados com uma linguagem cuidada mas por vezes gelatinosa, só consegue realmente se aproximar da grandeza que lhe é imputada quando desenrola longos diálogos, mesmo que entre personagens nem tão bem construídos. Saramago, todavia, de modo algum chega a ser um caso à parte. Outro nome bem referenciado entre a crítica e que sofre de mal semelhante — o mal de não saber onde se deve conter a língua e deixar que a sugestão se instaure — é António Lobo Antunes. O autor de Eu hei-de amar uma pedra, com todo o seu sêmen e frases escritas ao melhor estilo blusa-de-botões-abertos, com aquela apologia canhestra da vida vivida ao extremo, etc., quer a todo o momento levar o leitor a uma situação de arrebatamento, de desmanche, como se quisesse soar em nossas almas as flatulências de uma vagina. Para esse tipo de literatura, no Brasil, já há até uma gíria específica, muito corrente entre nossos “intelectuais” mais jovens: “esse livro é porrada”.

E o que dizer de Inês Pedrosa? Pouco mais, porém à altitude mais baixa. Podemos começar a traçar um perfil da escritora a partir de um conto da coletânea Fica comigo esta noite (Editora Planeta, 2007). Escolho, ao acaso, a narrativa que abre o livro: Só sexo. Antes de dizer palavra qualquer sobre o conto, deixo que o leitor mesmo perceba, em contato direto com um trecho seu, o que de pior há, não só nesse, mas em todos os livros de Inês Pedrosa:

Tu eras um pintor e já não ias ser pintor. Lia nos meus olhos que já não ias ser pintor. Só com o tempo foste lendo o resto, o resto dos restos que era tudo: que eu sabia que tu eras pintor. O artista do meu corpo secreto, uivante, um tecido de fios de luz que só os teus dedos acendiam, e rios, rochas, relvados amaciados pela tua língua, uma asa à medida do teu voo, uma casa em que tu moravas de todas as maneiras.

A essa altura, talvez o leitor esteja se perguntando por que não só pus um grande “Oh!” no lugar das palavras acima, já que sua substância pouco mudaria e ainda se economizaria espaço. Alguém que se permite a deselegância de escrever algo como “o artista do meu corpo secreto” tem tudo para ser um ótimo redator de perfis do Orkut, com direito a fotos estilo Clarice Lispector no álbum e tudo mais. No entanto, chegar a ser um nome representativo de uma safra de escritores com contos escritos neste estilo — o detalharei logo — é o mesmo que ser uma grotesca piada com cabeça, tronco, membros e um teclado de computador na mão.

É preciso detalhar a trama do conto? Nada. É só uma mulherzinha relembrando sua paixão de juventude. Aliás, isso pode servir de definição para boa parte do que escreve Inês Pedrosa. São textos geralmente narrados por uma voz feminina, em primeira pessoa, que não se cansa de recorrer a metáforas — que apenas se pretendem líricas — incapazes de ocasionar outra coisa que não um cheiro pestilento de breguice. Assim, é Inês também uma repentista de metáforas embasbacadas, porém o é com um toque peculiar: as referências ao “corpo em êxtase”, o corpo em forma de “Oh!”.

Decepção
Mas aquele que tomar A eternidade e o desejo em mãos sofrerá uma decepção que vai bem além da que foi descrita e exemplificada acima. Isso, pelo fato de que a idéia que originou o livro poderia ter rendido uma obra-prima, se desenvolvida por uma imaginação menos limitada. Em resumo, é a história de Clara, uma portuguesa cega que volta a Salvador (cidade onde havia perdido a visão) acompanhada de um certo Sebastião — o qual a ama, embora não seja correspondido. Ali, Clara refaz com um grupo de turistas o itinerário do Padre Antônio Vieira no Brasil. Antônio, por sinal, era o nome daquele seu antigo amante, por conta do qual foi fatalmente ferida por uma bala que atingiu seu nervo óptico.

Dessa forma, a narrativa se alterna — em primeira pessoa… — entre a voz de Clara e a de Sebastião, as quais são intercaladas por citações de sermões de Antônio Vieira. É bastante perceptível, diga-se logo, que o que de melhor há no livro a autora sequer escreveu: são as palavras daquele que Fernando Pessoa chamou de “Imperador da Língua Portuguesa”. A Inês Pedrosa, no entanto, resta ao menos o mérito de as ter escolhido bem. Agora nos encaminhemos ao que mais interessa: por que nada funciona no romance.

Inês Pedrosa não está à altura do que se propôs a fazer. Por exemplo, poucas coisas são tão inadequadas em seu livro quanto a opção pela narrativa em primeira pessoa. A todo o momento, Clara tem de dizer algo como “Sebastião me disse que viu isso”, “Sebastião parece ter feito não sei o que”, “Sebastião não conseguiu me descrever tal coisa”, frases a que se seguem tediosos comentários sobre o que essas imagens que ela não pode ver lhe fazem sentir. Quanto a Sebastião, o artifício é menos forçado por ele poder dizer simplesmente que viu algo belo, de forma direta, e não que alguém viu para ele tal coisa, de forma indireta. No entanto, mesmo assim ainda há diálogos constrangedores — principalmente quando a nível psicológico — que se originam a partir da voz dele. Como este:

Perguntas-me:

Como no filme do Visconti?

Que filme do Visconti, Clara, parece que viste todos os filmes do mundo, estou sempre em falta, sei sempre menos, não, Clara, não vi O Intruso, conta-me.

Outro exemplo, desta vez nas palavras de Clara:

Pergunto-me se posso ir à casa de banho tomar um banho ou se queres tu ir primeiro. Respondes-me, num fio trêmulo de voz, que posso ir eu. Depois indagas se (…)

O livro está repleto de parágrafos tão disformes quanto esses excertos. Aqui, retorno ao que expus no início deste texto: Inês Pedrosa é só mais uma escritora empenhada em minimizar o nível de precisão da língua portuguesa por meio de uma literatura “arrebatada”, escrita a rédeas soltas, ilimitada em sua irresponsabilidade diante da sonoridade, do sentido e, sobretudo, da pieguice que palavras mal selecionadas podem carregar. Há coisas ridículas como “no seu corpo aprendi a saborear o desejo infinito” ou “o naufrágio do meu coração”. A literatura de Inês Pedrosa sugere a imagem de uma piscina de plástico em forma de coração fazendo água por todos os lados.

Pouco há o que comentar a respeito da entrada de personagens como Emanuel ou das descrições de igrejas históricas e cultos de religiões afrodescendentes. Prefiro, por fim, realçar a imaturidade da escrita de Inês. Desta vez, uma imaturidade mais primária.

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Antonio Candido possui dois textos iluminadores — que, sendo sobre Clarice Lispector, nos dizem mais sobre o que seja um bom escritor — que podem nos ser úteis aqui. Foram publicados em 1944, na Folha de S. Paulo, ainda sob o impacto do lançamento de Perto do coração selvagem (esses artigos podem ser consultados na coletânea “Figuras do Brasil — 80 autores em 80 anos de Folha”, organizada por Arthur Nestrovski e lançada, em 2001, pela Publifolha).

Do primeiro dos dois artigos, intitulado Língua, Pensamento, Literatura, é proveitoso transcrever o seguinte trecho inicial. Nele é descrito o mesmo tipo de “imaturidade” que vejo na escrita de Inês Pedrosa:

É sabido que uma das tragédias de quem escreve em português é o fato de a nossa ser uma língua que, a bem dizer, ainda não foi suficientemente polida pelo pensamento. O português ainda não foi suficientemente pensado, como as outras línguas européias. Ora, os vocábulos são como os seixos dos rios. A princípio, duros e ásperos calhaus cheios de pontas e arestas. A água, todavia, passa longa e pacientemente sobre eles. Os anos sucedem aos anos, e os seixos vão se arredondando, as suas anfractuosidades se atenuam, toda a pedrinha como que amacia e se torna um pequeno bloco polido, doce ao contato e à vista. Também as palavras sofrem esta erosão; no seu caso, da corrente do pensamento.

Logo em seguida, Antonio Candido diz sentir falta, nas literatura portuguesa e brasileira, do “pensamento literário — característico dos escritores que, não sendo filósofos nem homens de ciência, possuem contudo um certo cabedal de idéias cuja expressão depende estritamente da beleza e da justeza vocabular”. E cita como exemplos um Carlyle e um Leopardi, quase que se desmentindo ao dizer que encontra uma genuína busca daquele “seixo polido” no livro de Clarice Lispector: ora, como poderia encontrar lá, se Clarice apenas arrasta a língua atrás do pensamento, sem deixar que este dome aquela?

Assim, somo a idéia do “português ainda não suficientemente pensado” à do “português verborrágico” de que falei anteriormente. Onde encontrar Inês Pedrosa aí? É simples: sua literatura não é propriamente uma coisa nem outra, mas uma fusão tosca das duas carências. Inês não sabe exprimir o turbilhão emotivo de suas personagens sem recorrer a um rebaixamento papa-léguas da língua. Talvez o leitor ache que eu esteja levando a sério demais sua literatura ao fazer uma leitura tão ampla. Mas as coisas — este é o ponto crítico — ficam realmente sérias quando percebemos que Inês Pedrosa é só uma entre uma turminha de escritores de língua portuguesa que só sabem fazer isto: pensar errado em escrita frouxa. É preciso, pois, comparar não só a portuguesa Inês Pedrosa, mas também o moçambicano Mia Couto e o brasileiro Sérgio Sant’Anna, a exemplo, com um inglês como o Ian McEwan de Reparação. Sei que é covardia. É como pôr um grupo de pivetes a desafiar o King Kong. Isso, não obstante, não deixa de sugerir um remédio: o casto chicotinho da língua de Camões.

A eternidade e o desejo
Inês Pedrosa
Alfaguara
181 págs.
Inês Pedrosa
Nasceu em Coimbra, Portugal, em agosto de 1962. Trabalhou na imprensa, no rádio e na televisão, e é colunista do semanário português Expresso. É autora de contos, crônicas, ensaios biográficos e antologias, e publicou os romances A instrução dos amantes (1992), Nas tuas mãos (1997) — vencedor do Prêmio Máximo de Literatura — e Fazes-me falta (2002). A eternidade e o desejo é o seu primeiro livro ambientado no Brasil.
Ronald Robson

É escritor e jornalista.

Rascunho