Leão-marinho encalhado

Encontramos o pai estirado no chão de terra. A boca virada para baixo. A poeira aspirada com sofreguidão
Ilustração: Hallina Beltrão
01/05/2013

Encontramos o pai estirado no chão de terra. A boca virada para baixo. A poeira aspirada com sofreguidão. O corpo não agüentou o repuxo da subida. Patinou e estatelou-se. O vizinho alertou: “O pai de vocês está caído lá na rua”. Fomos eu e o irmão. O pai bufava, sem forças para arrastar-se até em casa. A derrota a poucos metros da linha de chegada. Um leão-marinho encalhado na aridez da cidade grande. Os olhos injetados de pavor nada diziam. Ou talvez pedissem um socorro envergonhado. Um de cada lado — gruas desajeitadas —, carregamos o pai. Descobri o peso do corpo que me gerara. Pesava muito para meus braços de criança. O irmão era mais forte. Parecia não se importar com a incômoda carga. Empreguei muita força para sustentar mais aquela vergonha. É muito difícil desencalhar um leão-marinho doméstico.

Lembro bem do gosto adocicado. Homens e mulheres se reuniam aos domingos para beber vinho de garrafão com açúcar. Tínhamos acabado de abandonar a roça. Pato Branco era uma pequena cidade no Sudoeste do Paraná. A ditadura militar começava a agonizar no fim da década de 1970. Não sabíamos o que era ditadura. Até hoje, o pai e a mãe nada sabem sobre repressão, torturas, exílio. A ignorância, às vezes, nos protege do mundo e de suas barbaridades. O pai virava o vinho no copo. A mãe tascava açúcar e mexia com rapidez. Em redemoinho, as partículas brancas cambaleavam levando uma Alice inexistente. O líquido viscoso era bebido com alegria. Baco festejado na miséria. As crianças ficávamos à volta, correndo, brincando, perturbando a diversão adulta. Eu tinha quatro anos. É uma das muitas lembranças que me atormentam. Sorrateiro, escondido por debaixo da mesa e das cadeiras, emborquei os fiapos abandonados pelos adultos nos fundos dos copos. A gosma de açúcar e álcool descia-me pegajosa goela abaixo. Poucos tragos surrupiados e conheci o primeiro porre. Muitos outros viriam. Aos quatro anos, iniciava a maldição que nos acompanharia vida afora. A mãe cuidou de mim — uma criança bêbada num domingo à tarde.

Colocamos o pai debaixo do chuveiro. Tivemos de encostá-lo à parede sem azulejo. Ficou sentado no chão frio, recostado a um canto. O equilíbrio era delicado. O irmão cuidava para que não caísse de cara no piso. Eu lavava o pai. Jogava água fria na cabeça. Ele cabeceava — boi insatisfeito com o matadouro —, tentando negar a ajuda inevitável. Enchia as mãos em concha e atirava contra o rosto e o peito. De cueca, o pai parecia ainda mais desprotegido. Na cozinha, a mãe fazia café bem forte. Eu temia que o pai vomitasse. Daria ainda mais trabalho. Eu e o irmão não falávamos, resignados com a maldição. Passamos todo o resto da vida em silêncio. Nunca lhe perguntei nada sobre aquela noite. Talvez nem lembre. Eu lembro. Sempre lembro. A água escorria pelo corpo do pai. Evitava olhar para o sexo flácido, escapando pela cueca molhada. Quando criança, sempre imaginava que o pai havia me colocado dentro da mãe. Vi numa revista. O homem e a mulher pareciam sofrer para fazer um filho. Até achava que o ditado “ser mãe é padecer no paraíso” fazia algum sentido. Eu sou parecido com a mãe. O irmão, com o pai. A irmã está morta. Se parece com todos os demais mortos.

Encontraram o avô paterno morto. Estatelado na rua. Não deu tempo de arrastá-lo para baixo do chuveiro. Na roça, o chuveiro era uma lata furada com prego. A água descia da serra ou era despejada com balde ou chaleira. Dar banho no pai é sempre mais complicado às margens do fim do mundo. O avô foi levado direto para o cemitério. Acho que o banharam antes do enterro. Trabalho desnecessário. Carne limpa também apodrece no caixão.

Há treze anos, não bebo. O pai também parou há algum tempo de emborcar a cachaça diária. O irmão ainda preserva a tradição familiar. É um conservador. É estranho — e chato — parar de beber, transformar-se em abstêmio. De repente, você vira um alienígena. No Natal de 2000, disse não várias vezes, disfarcei, inventei um mal-estar. Menti para não beber. Depois, continuei fugindo das garrafas e copos ao meu redor. Assombrações de gosto amargo. Ninguém acreditava. Além de bêbado, mentiroso. Após alguns meses, já não havia mais salvação: abandonara de vez o álcool e suas tempestades. Minhas entranhas não arderiam em permanente combustão. Tenho quarenta anos. Meu filho logo terá quatro. Ele já sabe que o pai não bebe. Aos dozes anos, não precisará me arrastar até o chuveiro.

Seremos sempre a lembrança de um leão-marinho encalhado.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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