Labirinto de palavras

A busca da própria voz é a angústia e a delícia de todo bom escritor
01/10/2008

Eu estou em abstinência. Há trinta dias que não abro um livro, não ponho uma única palavra nos olhos. Isso não é nada para muita gente. Mas para mim, que abro livros buscando afagos e atritos na pele, na imaginação, nos doze sentidos, é muito. Para mim, que durmo melhor com a palavra escrita do que com a dita, que não vejo imagem ou situação que não rumine e sofra em palavras e silêncios, é um tempo impossível.

Tudo começou de um modo brusco, como sempre começam as surpresas. Assim é o inesperado. Fica a espreita como quem não quer nada e depois dá o bote, sem deixar brecha nem tempo para gente se defender.

Eu estava num sarau literário. Todo mundo lia o texto de todo mundo entre chopes, risadas, petiscos, elogios ao vento, acanhamentos sinceros e cegas vaidades. Tudo ia bem, até que escutei na voz de alguém um texto que me chamou atenção. Não porque fosse bom ou ruim, mas porque me despertava uma sensação estranha, uma dor aguda nos dedos, uma aflição de pegar canetas e riscar paredes. Agüentei nem sei como a leitura acabar. Cada palavra era um pequeno incêndio. Cada página virada uma ânsia desconhecida. Quando acabou, perguntei enfim de quem era aquele texto, e todos riram, como se a pergunta fosse absurda. O inesperado então baixou sem dó nem piedade: o texto era meu, disseram.

Meu?!

Mas…

… como eu não reconheci o meu próprio texto?

Entendam. Mesmo sabendo que eu não o via faz tempo, que alguém o tinha na gaveta e resolveu, sei lá por quê, ler sem me avisar, mesmo assim: se eu não reconheci o meu próprio texto, ele poderia ter sido escrito por qualquer pessoa.

E pior: ele nem me soou vagamente conhecido, ele apenas me despertou uma sensação estranha, como quem encontra um filho sem saber que é seu e tem um sentimento fundo, sem identificação. Uma espécie de reconhecimento anônimo. Vontade de ao mesmo tempo abraçar e de virar as costas.

Peguei com tremor o texto maldito, o filho bastardo, e revirei, farejei, virei do verso e do avesso. E vi: lá estavam as sombras de todos os escritores que me marcaram, numa miscigenação estranhíssima. Um ser amorfo que era tudo e nada, sem a marca de seu criador: eu.

E eu? Procurei em cada frase. E eu? Remexi entre as vírgulas. Eu? Vasculhei nas entrelinhas. Eu? Fuxiquei o enredo. O tema. O ponto de vista. O discurso. Os personagens. A linguagem. E eu?

Não. Eu não estava ali.

Um silêncio de leitura
Já dizem por aí que ando roendo os dedos, cuspindo unhas, fechando bares, chutando latas, mordendo asfalto, incendiando resmas de papel, jogando teclados pela janela e assassinando PCs. Mentira. Tudo mentira. Apenas entrei de jejum de livros e ando arrastando os chinelos pela casa, olhando com espanto as estantes, ruminando um silêncio de leitura.

Sempre achei que ler me ajudaria a escrever. Li de tudo, engolindo estilos, mastigando imagens, saboreando frases, despudoradamente. E do que me serviu toda essa dedicação de entranhas? Para me perder num labirinto de linguagens e estilos? Para escrever um texto sem dono, sem voz própria, sem assinatura, sem eu?

Que exagero! riu minha amiga-que-não-é-escritora, substituindo a minha caneca king size de café por uma xícara single de chá de camomila. Sério. Eu lia, crente-crente que me alimentava: absorvia sensibilidades, engolia estéticas, estabelecia referências. Não! Elas que me absorveram, elas que me engoliram, entende? As estéticas e as referências me abduziram! Minha amiga-que-não-é-escritora fez seu diagnóstico: O seu caso é muito simples. Crise criativa. E, antes de sair: você só precisa digerir tudo isso. Minha amiga-que-não-é-escritora é nutricionista. De novo a sós com a estante, percebi que minha crise criativa era mesmo caso de má digestão. Estava com leituras do dedão do pé ao cocuruto da cabeça. Não havia um único espaço vazio, para que algo realmente meu pudesse se criar. Enjôo. Muito enjôo.

Vomitei. É uma metáfora, por favor. Vomitei palavras, muitas. Num jorro incessante. Escrevi de tudo. Posso dizer que todos os escritores passaram pela minha mão. Me senti um médium que incorpora ao mesmo tempo em que finge incorporar. Finge e nunca foi tão verdadeiro. Repete o que já existe como se o criasse. Será que é isso? Será que é a consciência de estar fazendo algo que já foi feito que nos faz sentir como se não estivéssemos realmente fazendo aquilo, mas como se cantássemos a música de outra pessoa? Como se todo o nosso esforço criativo não passasse, no fundo, de uma imitação? E será que é justamente dessa consciência da imitação, essa angústia moída de não ouvir a própria voz, que surge, lá no íntimo, alguma coisa genuína? Um mínimo traço de autenticidade que irradia, no papel, um caminho? Algo que só quem está inteiro no que faz, e de verdade, pode fazer? E será também essa consciência que nos traz aos poucos a sensação de que essa coisa genuína, pessoal, só surge porque se conheceu outras, para então, conscientemente, se destacar delas, e, enfim, ser?

No labirinto de palavras, entre frases e parágrafos que não me pertenciam, escrevi de repente: estou aqui. Nunca senti que colocava no papel uma coisa tão minha. Como o caminhante que só reconhece o próprio caminho porque se perdeu em tantos outros.

Foi preciso voltar bravamente à estante e aos livros para encontrar num deles a confidência de um autor lido em todo o mundo, há dois séculos: a busca da própria voz é a angústia e a delícia de todo bom escritor.

O jejum estava terminado.

Claudia Lage

Claudia Lage é escritora. Autora do romance Mundos de Eufrásia, entre outros.

Rascunho