Poemas de José Antonio Cedrón

Leia os poemas traduzidos "De uma anotação incompleta", "A questão", "Leitura de fim de ano", "Enquanto baixam as águas", "Estamos legitimando a derrota"
01/05/2010

Tradução: Ronaldo Cagiano

De uma anotação incompleta

A mulher do lenço branco
passa ao lado do foco luminoso da estátua.
Além da praça, abre o punhado de acelgas
e a casa se enche com o vapor da água
como quando povoada por abrigos familiares
e cachecóis tecidos nas viagens.
É a hora selvagem dos livros
que alguém verá algum dia
(e sem reconhecer)
quando fundarem de novo esta cidade
outra vez sobre terra e sobre ossos.

A questão

Não falo daqueles golpes
sobre a testa
a cal, marca de pó no reboco fino
o tijolo e o vazio sobre o rosto
senão atrás, debaixo
de profundas bases interiores.
Conduzimos esta superfície aos limites
de sua profundidade
a estas mesmas margens indecifráveis

o difícil enigma que nos faz duvidar
(frente ao espelho)
que esta mão é uma mão
que esse barulho é a chuva
e o suspeito segue pelo fundo.

Leitura de fim de ano

Este vinho que passa pelas tuas mãos
traz esta noite cartas
que já foram lidas muito antes

então olho como eu te olhava
do outro lado do oceano
onde os que não estão falavam destas cartas
que lemos esta noite
porque as traz o vinho.

Enquanto baixam as águas

rememoras aqueles ares que agitavam as vidas.

Agora não há referências que tocas com as mãos
(acaso semelhanças de sonhos repetidos).
O grande barco afundou
e de seu corpo permanecem, ainda flutuando
silêncios e madeiras.
Cruzam o novo dia com o que fomos:
ar, caminho, gritos
que não chegam a terra.

Estamos legitimando a derrota

e vai chegar seu medo
para deixar-nos sem direção, enquanto
a noite passa
e o cheiro do lixo atravessa o oceano.

Nossos avós dormem o sonho da guerra
no fundo da morte que viveram.
Hoje toda sua justiça nos pertence:
nem o vinho que tomamos o desmente.

Corpo

Fizeram-te inimigo do que levas.
Dos séculos de ensinamento contra tua vontade
a minha. Dois mil anos.
Esse estranho, meu corpo, era a sombra intrusa
Que castigam os deuses do céu e da terra.
O outro, oculto.
Não levou tempo conhecer-nos
separar o silêncio da vontade que nega
para dar-nos palavras de um idioma
em constante perigo de extinção.
Nesta independência inseparável
sejamos você e eu.
O dia que escureça, não faremos despedida
me dizes, companheiro.
nos rendemos juntos.

Pequena coisa

Se não tivesse asas como tem
se não falasse e cantasse
se não fosse de festa e de velório
se não amasse suas pernas como ramificações de um menino
se não tivesse acaso componentes políticos
estaria dizendo que o coração
é só o coração
não esta nódoa que muda passos casamentos viagens
não este pássaro foragido em uma maleta
pesada como um povo
não esta sombra que emigra na má hora
em que vai.

José Antonio Cedrón
Nasceu em Buenos Aires e começou a publicar em 1970, colaborando em revistas e periódicos. É autor de Viaje hacia todos (1971), De este lado y de otro (1985), Actas (Prêmio Nacional de Poesia do México, 1986), Cuaderno de tránsito (1994), El negocio de la fe (1995) e Vidario (2006). Tem poemas traduzidos em francês, inglês e português. Vive entre Buenos Aires e Cidade do México.
Ronaldo Cagiano

Nasceu em Cataguases (MG). Formado em Direito, está atualmente radicado em Portugal. É autor de Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016), O mundo sem explicação (Poesia, Lisboa, 2018), Todos os desertos: e depois? (Contos, 2018) e Cartografia do abismo (Poesia, 2020), entre outros.

Rascunho