Poema de Octavio Mello Alvarenga

Leia o poema "Já me esqueci" de Octavio Mello Alvarenga
01/01/2009

Já me esqueci

Já me esqueci
será mesmo que não me lembro?
Já me esqueci como se faz uma letra
como se fez a primeira letra
no Jardim de Infância
da rua Espírito Santo, em Belo Horizonte.

Foram tantas professoras
(ou tão poucas, em
minha belorizontezinha de mil novecentos
e trinta, trinta e dois)

Lembrar de meu avô
Ele sempre retornava de uma viagem:

da Amazônia, do Nordeste, do outro lado do Atlântico
naturalmente preparando outras

Já ia me esquecendo
como se escreve
ou como se escreviam as primeiras letras.

E lá vem o Gullar
chegado do Maranhão

Gente do céu! Como é sujo e mau e fedorento
o Maranhão dele

Tão diferente do Maranhão de nossa bisavó,

(Como é que se chamava, Luli?
nossa bisavó maranhense, que veio pro Rio
abriu aqui o laboratório Abreu Sobrinho
e tinha um filho que foi meu padrinho?)

Já ia me esquecendo dos riachos, dos riozinhos, das peixes fêmeas pulando
contra a correnteza para desovar lá nas cabeceiras.

O rio da minha infância corria em São João del Rey.
Nunca foi o ribeirão do Arrudas, de Belô, com águas poluídas.

O rio de minha infância, insisto,
nem sei se existe mais, porém corria por baixo da ponte do Rosário.

E as águas do tempo me levam num redimunho da memória
até tia Heloisa, na rua dos Goitacazes
que me dá a mão e
vamos descendo até a esquina, onde
fazemos uma curva entrando pela rua Espírito Santo
até o Jardim de Infância Bueno Brandão.

(qué que posso fazer? Os nomes em Belorizonte
são esses, a cidade
há cidade mesmo?
foi traçada na prancheta
e quanto ao mais
pergunte ao Pitanguy, por exemplo,
ou ressuscite meu amigo Fernando Tunes,

— enquanto fico aqui, nesta página,
chorando
e recordando seu riso feliz
a biblioteca enorme
sua alegria em sanar alguma dúvida
recordar um acorde ou um trinado daquela ópera
“escuta aqui este disco, que beleza”
tantos discos ele foi juntando pela vidafora)

Obrigado, Poema Sujo.

Afinal você é um poema limpo.
Na sujeira que apresenta há tanta fresta
de luz, puxando a memória.

E depois de Tieloisa, que foi nossa vizinha e mãe do Fernando
foi a vez de dona Julieta
Julieta Magalhães Lopes
do grupo escolar Barão do Rio Branco, no bairro dos Funcionários

Meu pai pode afinal construir uma casa
bem defronte da chácara de dona Nininha
que mancava, ordenava, e tinha uma filha que tocava piano
e tinha o Hero, que imitava locutores de rádio —

e foi na chácara que aprendi a derrubar mangas
com pedaço de pedra ou de tijolo
ou de bodoque

que também servia pra matar passarinho.

Aí o poeta de lá tem razão.
A safadeza do caçador,
que traz codorna ou perdiz pra casa
é a mesma safadeza do menino que mata passarinho com bodoque.

(Você que me lê, nunca usou bodoque?
Nunca matou passarinho?
Prefere a tourada espanhola?)

Meu amigo Figueiró dirá
Freud explica.

Explica? Explica o bodoque?
A empregada que deseja aprender datilografia
entra em meu quarto
e outras coisas
também aprende. Aprendemos juntos.

Voltemos à cidade. Ao bairro dos Funcionários. Ao número
Isto! O número da casa: sete, quatro, nove.
(que me acompanha pelas ruas, nas placas dos carros,
puxando da memória: se lembra da casa?
se lembra dos irmãos, das irmãs
do pai chegando, lendo ou saindo pra Santa Casa?
— às vezes ele saía quando eu estava voltando da Zona)

Voltemos à Belo dos coqueiros da Praça da Liberdade
depois de subir Bahia, aos pares, pra puxar angústia
nos bancos da madrugada,
ou conferir o último livro ou o artigo que o jornal do Rio
tinha publicado. Aquele artigo do doutor Alceu

Te lembra, Figueiró?
Disfarcemos.

Então o que vai saindo
o que me provocou o maranhense
é um raio de sol cantando em verde
numa varanda coalhada de gatos.

Será um poema? Voltei ao tempo
ao tempo em que levava montes de páginas datilografadas ao meu amigo Jacques?

Será que ainda
ou sempre
será que o sujo quer dizer verdade
ou limpeza?

Rua do Sol, por exemplo,
recorda Dona Sol, moça do Recife

Praia Grande
ah! meu Deus
são tantas, foram tantas, é um convite para que
o mar daqui e de sempre nos ensine
que nada há de resistir ao sabonete das águas.

O poema se faz e se completa. Limpo. Claro. Estival
como a varanda de gatos cheia de sol.
E o mar lá em baixo, chamando.

Octavio Mello Alvarenga

É autor de Rosário de MinasRoncardoSexta-feira, 16, entre outros.

Rascunho