Inventário do passado

"Os destituídos de Lódz" não consegue ultrapassar o exercício básico de ficcionalização da História
Steve Sem-Sandberg, autor de “Os destituídos de Lódz”
01/03/2013

Os destituídos de Lódz, do sueco Steve Sem-Sandberg, é um longo romance que ultrapassa as quinhentas páginas. Seu objetivo principal é dar conta da caracterização minuciosa da rotina de um gueto polonês durante a II Guerra Mundial. O gueto de Lódz foi o segundo maior gueto construído pelos nazistas — sendo o maior deles aquele feito em Varsóvia. Ao contrário daquele de Varsóvia, no entanto, o gueto de Lódz ganhou destaque e sobrevida por ter se tornado um importante centro de fabricação de suprimentos para o Reich: desde plantações de legumes, passando por uniformes, sapatos e placas pré-moldadas para construção, tudo era feito pelas mãos dos judeus ali mantidos prisioneiros. A fama e a importância da cidade se mantiveram também depois da guerra: a principal escola de cinema da Polônia é justamente em Lódz, e formou cineastas como Roman Polanski, Andrzej Wajda e Krzysztof Kieslowski (que fez um filme sobre a cidade quando estudante).

Durante todo o ano de 1943 e no primeiro semestre de 1944, Hans Biebow contemplava um império que, para um gueto, podia gabar-se de parecer, a ponto de confundir, com uma cidade de trabalho bem azeitada. Noventa por cento da população trabalhava em fábricas e oficinas que o pobre Rumkovski criara sob as ordens de Biebow. A produção era eficiente, os resultados muito bons. Em 1942, a administração do gueto apresentou um lucro total, após as depreciações, de quase dez milhões de marcos alemães, uma soma astronômica.

O romance de Sem-Sandberg segue os passos do dirigente do gueto, Mordechai Chaim Rumkowski, um judeu que, nos quatro anos de duração do gueto, manobrou a linha tênue que separa a sobrevivência da subserviência. Mas afirmar que o fio condutor do romance é apenas a figura do presidente é falso: Rumkowski funciona, na realidade, como um núcleo gravitacional que dá a medida para as digressões que formam o conteúdo bruto do romance. O livro por vezes se apresenta como uma costura bastante aparente de vários relatos — todos eles “factuais”, retirados de diários de sobreviventes, de teses de historiadores e, principalmente, das notícias resgatadas do jornal publicado no gueto, o Crônica do gueto. A impressão ganha força à medida que o livro vai chegando ao seu final: Os destituídos de Lódz é precisamente um inventário dos “destituídos”, e ganha volume nesse lento acúmulo de vidas resgatadas — o afinador de pianos, o vendedor ambulante de unguentos, o construtor clandestino de rádios, os plantadores de beterrabas, os órfãos.

Ponto de fusão
O romance se apresenta como uma expectativa, um improviso que vai, pouco a pouco, ganhando corpo em direção a uma incerteza: que fim levará o gueto na versão ficcional? O livro é construído pela escalada dessa incerteza:

No sótão mergulhado na penumbra, vigas suportavam um teto alto de onde pendia uma espécie de corda. Nos cantos, espalhavam-se colchões e cobertores, sob os quais viam-se inúmeros utensílios domésticos. Schmied avançou direto para a parede mais baixa, no fundo do desvão, e ajoelhou-se diante do que parecia ser uma lareira. Com um canivete começou a desencaixar alguns tijolos enegrecidos pela fuligem. Por trás de um amontoado de entulhos, havia uma cavidade retangular, e dentro dela — quase invisível por causa da nuvem de poeira — um aparelho de rádio, construído à mão, com o material disponível.

“Fui eu que construí tudo isso”, explicou ele, com uma voz rouca de pó e orgulho. “Com peças antigas que Kleszczewski conseguiu para mim”.

Além da progressiva costura de histórias heterogêneas — que compartilham apenas esse mesmo solo de nascimento que é o gueto —, o romance é formado por esse “sentimento da contingência” que aparece no trecho acima. Ou seja, não há absolutamente nada que possa ser rejeitado como inútil ou desnecessário, pois nunca se sabe o que será fundamental para a sobrevivência no dia de amanhã. A vida no gueto, tal como a apresenta Sem-Sandberg em seu romance, é um exercício permanente de atenção aos detalhes e de aprimoramento da percepção — uma espécie de evolução cognitiva que surge como fruto da opressão, da violência e da privação. A narrativa, portanto, é carregada dessa urgência, desse insondável desejo de prosseguir mesmo diante da catástrofe (e, freqüentemente, em direção à catástrofe, como acontece nas várias passagens nas quais os habitantes do gueto devem se preparar para as deportações).

E o tempo todo, às vezes de forma mais direta, às vezes de forma velada, Os destituídos de Lódz coloca em cena a perversa contradição do gueto: os prisioneiros raramente se voltam contra os nazistas, preferindo canalizar a energia da raiva e da insatisfação contra eles próprios. Os grupos de recém-chegados são hostilizados pelos veteranos; cupons de comida são roubados; dormitórios são saqueados; mulheres são estupradas; o próprio presidente do gueto ordena a movimentação de boas-vindas:

Além das roupas e das malas perdidas, muitas famílias, mais tarde, relataram ter ficado sem objetos pessoais de valor, como cordões de ouro, pingentes e anéis. Um dos membros da comunidade relatou, ainda, que os homens do presidente se apoderaram do casaco de inverno que ele estava vestindo, arrancaram do bolso de seu colete seu relógio com corrente e roubaram as botas forradas de sua mulher.

O pior de tudo é a polícia formada por judeus para reprimir, espancar e torturar judeus, o famigerado Sonderkommando. Nas palavras de Sem-Sendberg, no glossário que serve de apêndice ao romance, Sonderkommando“designa as forças especiais da polícia judaica do gueto, que ajudavam a Gestapo a encontrar e apreender os objetos de valor dos judeus e, mais tarde, a entregar para as autoridades alemãs as pessoas escolhidas para serem deportadas ou mandadas para campos de trabalhos forçados”. “A partir desse dia”, o dia em que a polícia começou a operar com violência no gueto, diz o narrador de Os destituídos de Lódz, “a traição lançou sua sombra insidiosa sobre o gueto, colocando judeu contra judeu. Nenhum operário podia ter certeza de que não lhe tirariam a carteira de trabalho e não o deportariam do gueto, mesmo que ele nada mais tivesse feito além de reclamar seu direito ao pão de cada dia”.

Essa é a terrível “zona cinzenta” de que fala Primo Levi em sua obra, um espaço de indeterminação criado pela máquina nazista no qual vítima e carrasco se confundem. É para esse espaço que confluem as histórias que Sem-Sandberg usa para montar Os destituídos de Lódz, especialmente no que diz respeito à caracterização do dirigente Rumkowski. É essa figura dúbia que dá o tom ao romance, é sua trajetória que confere uma imagem apreensível dessa “zona cinzenta”. O filósofo italiano Giorgio Agamben, ao comentar os escritos testemunhais de Primo Levi em seu livro O que resta de Auschwitz, escreve que nessa zona “o oprimido se torna opressor e o carrasco, por sua vez, aparece como vítima”. E mais: trata-se de “uma alquimia cinzenta, incessante, na qual o bem e o mal e, com eles, todos os metais da ética tradicional alcançam o seu ponto de fusão”. “Essa infame zona de irresponsabilidade”, finaliza Agamben, “é o nosso primeiro círculo do qual confissão alguma nos conseguirá arrancar e no qual, minuto após minuto, é debulhada a lição da temível banalidade do mal, que desafia as palavras e os pensamentos”. 

Incompletude
Os destituídos de Lódz é uma gota d’água nesse vasto oceano que é a literatura sobre a II Guerra Mundial — mais uma peça dentro desse imenso panorama que procura rastrear os contornos dessa “infame zona de irresponsabilidade” de que fala Agamben. O que há de particularmente sutil nesse romance é que, em sua construção, ele emula e espelha a própria configuração desse cenário tão complexo de “representação” da história. Há uma incompletude deliberada, um procedimento que faz parte de um gesto maior, que aponta, por sua vez, à reflexão sobre os limites da memória e do testemunho — duas esferas da experiência histórica que são, por definição, incompletas. A própria feição final do romance de Sem-Sandberg indica esse direcionamento: boa parte de seu conteúdo é retirado do já mencionado jornal do gueto, de pronunciamentos gravados ou relatados por sobreviventes além, é claro, dos vários diários, depoimentos, artigos e compêndios consultados pelo autor. Tudo isso é condensado no trato minucioso de Sem-Sandberg com os detalhes, desde a geografia e topografia do gueto (a edição vem com mapas) até a grafia das patentes da SS e dos nomes dos inúmeros dirigentes, encarregados e burocratas que aparecem pelo caminho.

Existe uma linha, no entanto, que o livro de Sem-Sandberg não ultrapassa: a que demarca os gêneros, os pertencimentos, as disciplinas e os discursos. O autor almeja a vasta recepção (“dedica-se na ficção a escrever romances documentais sobre episódios controversos da história européia”, diz a orelha do livro) e, por isso, deve deixar a leitura fluida, e a “nota explicativa” para o final do volume. Não há experimentação, portanto, no que diz respeito à complexa infiltração do discurso histórico factual no registro ficcional — há apenas a corroboração das categorias estanques do senso comum (a cronologia, a fabulação, as digressões oniscientes do narrador, etc.).

É preciso ressaltar que Os destituídos de Lódz não é um livro inocente, ingênuo em suas propostas técnicas — há, por exemplo, um importante uso de fotografias ao longo da narrativa. Mas existem obras que, com projetos semelhantes, alcançam uma força estética muito superior àquela apresentada por Sem-Sandberg. No que diz respeito ao uso das fotografias, lembrar o nome de W. G. Sebald é inevitável — ele apontou um caminho em sua ficção que suplanta o recurso meramente ilustrativo visto em Os destituídos. Na ficção de Sebald, as imagens não funcionam como acessórios ou como pontos de descanso da narrativa, muito pelo contrário: as imagens questionam a fabulação e apelam de forma paradoxal e confrontativa ao pacto de “suspensão da descrença” que todo leitor assina (freqüentemente de forma inconsciente) quando inicia um romance. As imagens do gueto que Sem-Sandberg coloca em seu livro funcionam, por outro lado, como gatilhos de reflexão: levam o leitor, de uma forma muito sintomática, para longe do relato, em direção à Grande História, e não em direção ao exercício de mescla de vozes e temporalidades que poderia estar ocorrendo nas páginas do romance.

Mas os grandes adversários de Sem-Sandberg no campo da ficção histórica são Laurent Binet, Hans Magnus Enzensberger e Jonathan Littell. São eles que armam o cenário dentro do qual Os destituídos de Lódz se insere. Binet com HHhH,Enzensberger com Hammerstein e O curto verão da anarquia, Littell com As benevolentes: obras como essas implodem as fronteiras que delimitam a circulação dos discursos e dos procedimentos de ficcionalização. Nesses três autores, não há espaço para o relato e outro para a reflexão sobre o relato — a evocação histórica se dá a partir de uma literatura que questiona e reconstrói permanentemente seus processos, ao invés de investir na autonomia dos campos e na restrição das esferas de compreensão.

São formas distintas de conceber o passado (e sua influência e sobrevivência no presente) que estão em jogo nessas ficções. Os destituídos de Lódz mostra o passado com distanciamento, tomado como tese e como objeto, em torno do qual vai posicionando uma série de detalhes informativos que geram, no fim das contas, um romance. Certa ficção contemporânea, contudo, mostra uma abordagem mais produtiva: o passado como estranheza, como osso duro de roer, como fantasma, como tarefa sempre incompleta, sempre por vir.

Os destituídos de Lódz
Steve Sem-Sandberg
Trad.: Jaime Bernardes
Companhia das Letras
600 págs.
Steve Sem-Sandberg
Nasceu em 1958, em Oslo, Noruega, e cresceu perto de Estocolmo, na Suécia. É jornalista, escritor e tradutor. Apesar de Os destituídos de Lódz ser seu primeiro livro traduzido no Brasil, sua produção literária é vasta, incluindo ensaios, peças e romances de ficção científica. É também autor de uma trilogia sobre figuras femininas que marcaram a cultura do século 20: Ulrike Meinhof, Lou Andrea-Salomé e Milena Jesenská.
Kelvin Falcão Klein

É crítico literário, autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas (Modelo de Nuvem, 2011). Escreve em falcaoklein.blogspot.com.

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