Flores de estufa

Em O “Jardim dos Finzi-Contini”, Giorgio Bassani problematiza a questão judaica na Itália entre-guerras
Giorgia Bassani, autor de “O jardim dos Finzi-Contini”
01/12/2009

Giorgio Bassani é um dos autores italianos mais representativos da condição hebraica, não apenas durante a guerra, mas ao longo do curso trágico da história daquele povo, tratando, com pertinência, muitos dos temas que tangenciam o chamado sentimento hebraico da vida, como o do exílio, o do desenraizamento, o da ameaça subliminar que assombra os que conhecem de perto as várias faces da perseguição.

Nasce em Bolonha em 1916, mas passa a maior parte da juventude e da vida em Ferrara, cidade retratada como pano de fundo de muitas de suas obras. Filho de tradicional e abastada família israelita, convive, desde cedo, com a preservação e o respeito aos princípios e rituais do judaísmo. Acaba, como tantos outros, ingressando na militância antifascista, sendo preso em 1943, mas, logo em seguida, liberado, devido à inevitável queda de Mussolini.

Embora identificado com alguns autores que sofreram as conseqüências devastadoras do holocausto, Bassani não pode ser visto como um escritor engajado, que busca em seu fazer literário denunciar as atrocidades do regime nazista, nos moldes, por exemplo, de um Primo Levi, cuja obra principal É isto um homem? é devidamente classificada como literatura de testemunha (ver Rascunho 111, de julho de 2009).

O recorte proposto por ele — mesmo tendo como cenário a ascensão do nazismo e as conseqüências de suas terríveis leis raciais — busca problematizar as questões judaicas em si mesmas, em suas internas contradições. Assim é que teremos como protagonistas do romance O jardim dos Finzi-Contini, de um lado, os membros da mais alta aristocracia judaica da família Finzi-Contini: o professor e médico Dr. Ermano, a mulher Olga, sua mãe e seus dois filhos, Alberto e Micól, isolados dentro dos muros da majestosa mansão, conhecida por todos como magna domus; e, de outro, o mundo para além do muro, composto de pessoas comuns, incluindo os demais judeus, que vivem e sofrem, na pele, os conflitos daquele conturbado período histórico, mais especificamente 1938, momento em que culminam as discussões sobre temas raciais, levando à lenta segregação do povo hebreu em guetos e ao seu posterior confinamento e morte, nos campo de concentração.

De certo modo, vivendo sempre voltados para dentro, como flores cultivadas artificialmente numa estufa, e protegendo-se da dura realidade de fora, o comportamento desses indivíduos não difere, em nada, de situações bizarras de total alienação, em que se continua a manter a pose, ao redor da mesa bem posta de jantar, enquanto as revoluções e os bombardeios estouram ao redor.

A guetização do gueto
Essa necessidade de não se misturar aos demais é tão patente que as crianças Finzi-Contini, em vez de irem à escola judaica, como os outros de sua idade, recebem em casa os professores que lá ensinavam, indo ao estabelecimento apenas para fazer os exames finais. E quando crescem, já adolescentes, e os tempos mudam, restringindo o acesso dos judeus aos mais diferentes clubes e associações da cidade, o patriarca decide investir no aprimoramento da quadra de tênis da mansão, para que seus filhos não sofram com as inevitáveis discriminações provenientes do mundo de fora e continuem a viver com os mesmos glamour e conforto aristocrático com que estavam acostumados.

Mais do que a ironia criada em torno dessas situações-limite, inundadas de artificialismo, aumentadas pela lente paradoxal da realidade histórica em que se inserem, o eixo temático aponta a outro grave problema, que parece ser o da guetização do próprio gueto.

A palavra gueto, em sua acepção negativa, refere-se aos sucessivos confinamentos impostos ao povo hebreu, à época da guerra, passando, depois, a ser atribuída também a grupos específicos — nem sempre com sentido negativo — que se organizam conforme princípios e regras muito particulares, restritas apenas a seus membros.

De certo modo, ao se fechar, voluntariosamente, dentro dos portões de sua mansão, não querendo, nem mesmo, participar dos rituais da comunidade israelita da cidade de Ferrara, a presunçosa família dos Finzi-Contini se aparta de seus iguais, o que evidencia as contradições internas de um judaísmo nem sempre homogêneo e coeso.

Talvez, nessa aparente tensão, resida um dos aspectos relevantes a ressaltar neste romance de Bassani, que, no mais, se reveste de formas muito tradicionais, lineares, de andamento progressivo, hiper-saturadas de descrições exaustivas, em que não se estabelece nenhum tipo de inovação estrutural, no nível da linguagem, como talvez se pudesse esperar, tendo em vista a data de publicação da obra: 1962. No máximo, o uso pontual do discurso indireto livre cria um efeito intimista que liberta, em alguma medida, o texto, do cenário sobrecarregado de detalhes — ilustrativo inventário da cultura hebraica — de um período bem datado da história da humanidade.

Romance tradicional
As transformações culturais ocorridas na Itália, em meados dos anos 50, mais especificamente em 1956, com o desgaste da esquerda ― a princípio com a desestalinização e posteriormente com a crise da Hungria ―, além da ampla renovação cultural, tecnológica e científica, somada ao boom econômico e a um paralelo processo de industrialização e elevação do padrão de vida exigiam novas investidas nas expressões artístico-literárias. E, de fato, é o que veremos acontecer com uma parcela significativa de escritores que, mesmo atrelados, num primeiro momento, aos ideais nacional-populares da Resistência e do Neo-realismo (no primeiro pós-guerra), acabarão, por conta dessa transformação radical de mentalidades, experimentando novas possibilidades do narrar. Um bom exemplo parece ser o de Italo Calvino, que em 1959 publica a trilogia I nostri antenati (Os nossos antepassados), que o tornará conhecido internacionalmente, ousando inovar, e se assumindo, inclusive, como representante de uma literatura que se voltará ao fantástico, muito distante, formalmente, de sua postura inicial.

Ainda que certos críticos abalizados como Giorgio Bárberi Squarotti, I. Bignami e Christian Bec pretendam ver em Bassani uma voz dissonante e única daquele período, se é verdade que pode ser analisado como um autor situado “muito além do Neo-realismo”, por outro lado, para a década de 60, não se comporta com a mesma ousadia e inventividade dos que percebiam que era preciso inovar, sobretudo, os procedimentos narrativos.

Cair de pé
O narrador-personagem, que apenas se identifica com a inicial de seu nome, B., é quem nos faz entrar nesse universo completamente à parte, ao que, como um reles mortal, não resiste, especialmente devido aos encantos da menina Micól, por quem se apaixona e a quem continuará amando, ao longo dos anos.

Pelo viés de uma memória irretocável, B. busca recontar os áureos tempos da infância e da juventude (o paraíso perdido), em que pode desfrutar as tantas dádivas daquele castelo mágico, em companhia de seus habitantes.

A cena inicial se abre como um flagrante da memória — recuperando, em flashback, o ano de 1929 — em que tudo quer permanecer intacto, num constante exercício de idealização. É tão forte a presença de Micól, nesse lembrar, que poderíamos denominar o capítulo como sendo o Da aparição, em que a figura loura, de grandes olhos claros (um pouco como a idealizada Beatriz, em Vida nova, de Dante), surge no alto do muro da fortaleza em que vive, para livrá-lo da situação de derrota em que se encontra, devido a um cinco vermelho em matemática, o que, para ele, era motivo de imensa vergonha.

Desde então, estabelecem-se traços da personalidade frágil, demasiado humana de B., em contraste com os da menina, de apenas 13 anos, altiva e determinada, que persiste na adolescência e na mulher que virá a ser.

Enquanto ele, ao saber da nota insuficiente, atira-se ao chão e, com o rosto colado à grama, se debate numa crise compulsiva de choro e desespero, ela se lhe dirige do alto e o convida a subir o muro, a fim de que venha conhecer o magnífico jardim de sua casa:

Logo reconheci Micól Finzi-Contini pelo cabelo louro que tinha mechas e cachos num tom louro-nórdico, como a fille aux cheveux de lin, e que só podiam ser dela. Debruçava-se sobre o muro como se estivesse no peitoril de uma janela com os ombros para fora e apoiada sobre os braços cruzados. Ela devia estar a menos de 25 metros de distância (suficientemente próximo, portanto, para que eu conseguisse ver seus olhos, que eram grandes e claros, talvez grandes demais naquela época para o seu pequeno rosto magro de menina) e me observava de baixo para cima.

Nesse momento epifânico de peripécias infantis, que marcará para sempre a vida de B., Micól aparece como possibilidade de salvação. Importa notar que, ao vir ajudá-lo a galgar os obstáculos do muro, também acabará caindo e se machucando, mas a diferença é que, ao cair, a menina cai de pé, e as esfoladas que dá na perna nada significam, pois é forte e destemida.

A comparação que subjaz a esse primeiro encontro entre os dois personagens, tal como reconstituído por B., sinaliza já as diferenças que irão marcar todo o desenrolar da narrativa, em particular a posição de inferioridade do narrador — também ele judeu, mas inserido no mundo real, assimilado à comunidade ferraresa ― em relação a Micól Finzi-Contini e todo seu ar de aristocrática superioridade, determinada, inclusive, no modo singular de falar:

Era a primeira vez que falava comigo, ou melhor, foi a primeira vez que eu ouvi a voz dela. E imediatamente notei o quanto a sua pronúncia era parecida com a de Alberto. Os dois falavam da mesma maneira, destacando as sílabas de certas palavras das quais somente eles pareciam conhecer o verdadeiro sentido, o verdadeiro peso e, ao mesmo tempo, escorregando de forma estranha em outras que julgar-se-ia serem de maior importância. Eles tinham uma espécie de orgulho em se expressar daquele modo. Esta deformação especial, inimitável e totalmente particular do italiano era a verdadeira língua deles. Eles tinham até um nome para ela: finzi-continês.

Onde a verdade não entra
Aos poucos, ainda que tentassem viver na ilusão de que aquela verdade extramuros não lhes dizia respeito, a situação geral, para os judeus, piora e, nem mesmo a ornamental estufa protetora da magna domus, seu magnífico jardim e a quadra de tênis resistem ao inevitável devir.

A voz desse narrador vai e volta nos lapsos de tempo, que compreendem dez anos (1929-1939), dando conta de relatar os episódios de um período conturbado da história humana por meio de um olhar comovido e comprometido com o amor por Micól.

É esse mesmo narrador que nos faz entrar na mansão Finzi-Contini, que, também nos apresenta uma figura feminina, capaz de sustentar algum tipo de complexidade, num universo em que predomina a alienação dos que não suportam o peso da verdade.

Eugenio Montale, ao prefaciar a edição italiana do romance, percebe em Micól, a única personagem que, sob a aparência volúvel e mimada, guarda em si uma profunda consciência da realidade. A seu ver, ela, mais do que qualquer outra pessoa da família, ainda que fútil colecionadora de bibelots de vidro, e só capaz de se exprimir no semi-infantil jargão “finzi-continês”, é a única que sabe e compreende tudo que se passa ao redor.

Ainda que haja certo artificialismo, causado pelo excessivo ornamento descritivo do grand monde de uma aristocracia que não quer sujar as mãos de vida, talvez Micól, ao vir ao encontro de B., e enfim, ao nosso encontro, nos mostre que a queda é necessária e humana, ainda que se queira manter a pose e altivez dos que sabem cair de pé.

O jardim dos Finzi-Contini
Giorgio Bassani
Trad.: Paulo Andrade Lemos
Record
333 págs.
Giorgio Bassani
Nasceu em Bolonha, em 1916, mas passou a infância e a juventude em Ferrara. De origem judia, foi obrigado, vítima de leis raciais, a publicar seu primeiro livro sob o pseudônimo Giacomo Marchi. Militante antifascista, foi preso em 1943. Ao fim da guerra, trabalhou como roteirista e ator de cinema e, mais tarde, filiou-se ao partido socialista. Faleceu em 2000, na cidade de Roma, onde há muito residia.
Maria Célia Martirani

É escritora. Autora de Para que as árvores não tombem de pé.

Rascunho