Ficção e experiência

Para o bem ou para o mal, o autor escreve sobre a realidade que sofreu e de que se alimentou
O argentino Ernesto Sabato, autor do romance “O túnel”
01/06/2011

O resgate da infância, disse Ernesto Sabato a respeito do que era para ele a ficção, ou a ânsia de uma sensação ínfima de eternidade, ou de possibilidades criativas, de libertação. Ainda a necessidade humana de traçar outros caminhos, lançando ao mundo personagens que parecem de carne e osso, mas que pertencem somente ao universo dos fantasmas. Frutos da nossa imaginação, que assombram, mas também nos representam sem nos comprometer. Máscaras, simulacros, onde forjamos uma realidade que nos diz mais do que a nossa. Disfarçados de outros, alcançamos a nós mesmos. Verdadeiros artifícios da expressão humana. Como atores no palco, estamos ali e não estamos, somos e não somos. To be or not to be, exclamou o jovem Hamlet, ciente de que seria necessário enlouquecer, ou representar a loucura, para recuperar a própria lucidez diante da realidade cínica e cruel diante de seus olhos. Não sustentou o artifício até o fim, ou ao menos não saiu impune da própria encenação. Ninguém sai, e que não se tire disso nenhum ensinamento, disse uma vez o escritor Henry Miller. A arte nada ensina, senão a significação da vida. Não importa quem somos, e se é verídico ou não o que contamos, importa que existimos, e neste fato reside o frágil elo que nos une. Tudo que passa por nós, verdade ou invenção, forma a nossa existência. Nós somos ao mesmo tempo o que nos acontece e o acontecimento. O tempo é um rio que me arrebata, disse Borges, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo. O mundo, desgraçadamente, é real; e eu, desgraçadamente, sou Borges.

André Gide ouviu de um amigo, também escritor francês, que não lia outros escritores para não perder a originalidade. Se já era difícil ser original no berço da civilização, imaginava as dificuldades das Américas. Ernesto Sabato riria do comentário, pois para ele é ingênuo pensar que só por pertencer ao berço da civilização se está mais protegido da influência. Nascemos, e nos influenciamos, comentou o escritor. Tudo se constrói sobre o que já foi feito anteriormente. Os próprios conquistadores, ao pisarem em terras americanas, imergiram em outra cultura, da qual não saíram ilesos. Do mesmo modo os nativos, ao encontrarem os conquistadores, já eram outros. Todos modificados, à força bruta ou à força da própria natureza. Não há nada no humano que seja puro, disse uma vez Julio Cortázar. Na arte ou em qualquer outra coisa. Para o bem ou para o mal, o escritor escreve sobre a realidade que sofreu e de que se alimentou. O modo como faz isso é outra questão, é o próprio ofício do escritor, que inclui também a escolha do seu tema. Para Cortázar, isoladamente o tema não basta para produzir boa literatura. Para produzir boa literatura é preciso construir significados. Significação determinada em certa medida por algo que se encontra fora do tema em si, por algo que está antes e depois do tema. O que está antes é o escritor, com a sua carga de valores humanos e literários, com sua vontade de fazer uma obra que tenha sentido; o que está depois é o tratamento literário do tema, o modo como o escritor ataca o seu assunto e o situa verba e estilisticamente. Encontrar a medida e o equilíbrio entre o exercício estético e a comunicação do essencial de uma história é para Cortázar um dos principais desafios do escritor. De nada valem o fervor, a vontade de comunicar uma mensagem, ele disse, se se carece dos instrumentos expressivos, estilísticos, que possibilitem tal comunicação. Da mesma forma, nada adianta o virtuosismo estético sem conteúdo. Para Ernesto Sabato, toda a técnica é legítima se útil para os fins almejados, dentro do universo específico daquele livro, e ilegítimas as imitações e inovações feitas por pura imitação e inovação. É preciso dar um passo a frente, ainda que com os pés virados para trás. O importante é vislumbrar novos continentes, mesmo que já habitados. Proust disse que, muitas vezes, a originalidade consiste em usar um chapéu velho tirado do sótão.

Quando começou a publicar seus livros, em 1954, Carlos Fuentes escutava constantemente a seguinte frase funesta: “O romance morreu”. Toda a sua geração se debruçava sobre a máquina de escrever sob os augúrios dessas palavras, que, entretanto, diante das páginas escritas e das idéias efervescentes, pouco significavam de concreto. Ainda assim, Gabriel García Márquez era um dos escritores que buscavam compreender a frase imperativa, que não admitia debates e ponderações. Os antigos territórios do romance tinham sido anexados pelos territórios da comunicação imediata, disseram-lhe. A imaginação do mundo não acompanha mais o romancista. A proliferação da informação e dos seus meios de entretenimento alcança veloz e facilmente as pessoas, e isso lhes basta, concluíram. García Márquez concordou que nunca haviam estado tão bem informados, bem comunicados e instantaneamente relacionados como naqueles tempos, mas, tampouco tinha uma época gerado sentimentos tão desoladores. Nunca haviam se sentido tão incompletos, oprimidos e sozinhos. Nunca a informação os havia alcançado daquele modo tão desconectada da expectativa e da experiência. Os dados e as imagens sucediam-se, abundantes, repetitivos, mas sem estrutura nem permanência em nossa vida interior. Fuentes continuou: o que pode dizer o romance que não se pode dizer de nenhuma outra maneira? O que pode dizer a linguagem literária a respeito de tudo que não é dito através da informação? Dizer, informar e informar-se, basta como experiência?, questionou o escritor.

Na época em que trabalhava em Madame Bovary, Flaubert escreveu em uma carta: “é delicioso quando se escreve não sermos nós mesmos, mas poder circular por toda a criação à qual se alude. Hoje, por exemplo, homem e mulher juntos, amante e amada ao mesmo tempo, passeei a cavalo por um bosque, em um meio dia de outono, sob as folhas amareladas; eu era os cavalos, as folhas, o vento, as palavras que se diziam e o sol vermelho que faziam entrecerrar as pálpebras, afogados de amor”. É graças à linguagem romanesca que como leitores temos acesso à beleza do momento narrado pelo escritor, não apenas sua experiência criativa, mas a sua percepção dela em relação ao mundo. Algo que a informação e a tecnologia não fazem e nunca poderão fazer. Não por incompetência, mas porque não é de sua natureza. Já a ficção, disse Ernesto Sabato, essa expressão híbrida do espírito humano que se encontra entre a arte e o pensamento, entre a fantasia e a realidade, pode deixar um testemunho profundo deste transe que é a existência e, apesar dos inúmeros e inúteis decretos de morte, talvez ainda seja uma das únicas criações que pode fazê-lo.

Claudia Lage

Claudia Lage é escritora. Autora do romance Mundos de Eufrásia, entre outros.

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