Famílias terrivelmente infelizes

Em “Galiléia”, Ronaldo Correia de Brito faz do sertão espaço-tempo universal de tragédia entre familiares
Ronaldo Correia Brito por Osvalter
01/01/2009

E estar com entes queridos se revela uma guerra? Assim, uma estrada. Então, três personagens. Um carro. E o seguir. Retornar ao território onde nem precisa fagulha para explosões. Tudo será ruim — e tudo já é péssimo. Reencontrar parentes. O avô no leito de morte. Mas a Indesejada não o visita. Apenas ronda, talvez na espreita. Tudo já pré-agendado? Maktub? Tudo, enfim, será intragavelmente indigesto. Assim se insinua a atmosfera de Galiléia, primeiro romance do reconhecido contista Ronaldo Correia de Brito.

Ressentimentos, feridas sem cicatrização e outros ecos de trombadas pretéritas entre seres com a mesma herança genética vão cobrar pedágio durante um predestinado encontro no interior de um estado sertanejo. A viagem, de três personagens, não é apenas deslocamento geográfico. Cada um sai de sua teia cotidiana e, estrada que se abre somada à imposição de um indefectível silêncio, surge, se faz, um peregrinar rumo a pontos interiores adormecidos de cada e todo humano-personagem nesta aventura ficcional.

O deslocamento físico não trará nada de novo para o front de cada um dos seres em trânsito. O trio já tem (tinha) dentro de si o próprio destino e o conhecimento a ser revelado: os demônios pessoais (apenas) se deflagram diante dos mais do que próximos entes não tão queridos assim. A tragédia, quase anunciada, já estava lá (sim), antes do início da viagem. Adonias, o médico formado no exterior que construiu trajetória em uma capital nordestina, é o personagem que narra e apresenta aos leitores idéias-força que iluminam a prosa que é literatura e faz pensar:

Por que retornei à Galiléia? Repito a pergunta a cada passo. Por que retornei à Galiléia? Por que retornamos aos lugares que nos expulsam como aborto indesejado? O que vim fazer aqui? Apenas cometer o crime que a família premeditou há anos.

Ao fruir (e usufruir) essa prosa elegante, o leitor pode até ficar sem norte, e isso não é problema. Quem narra? Importa pouco. Aquele narrador todo-poderoso morreu faz anos. Se quem enuncia é fulano, beltrano, sicrano que seja ou for, pouca diferença fará diante dessa irresistível interlocução autor-leitor que, entre algumas linhas e muitas entrelinhas, evidenciará um texto-matriz, a Bíblia, fonte que não cessa de alimentar literatura: “Ser o Caim eleito, o que desfere a pedrada conta o irmão. Matei por inveja, um passo, por inveja, dois passos, por inveja, três passos. Caio novamente”. O verbo cair, humanamente imperativo, acompanha todos, eu, você, nós leitores do Rascunho, os personagens de Galiléia, todos, a comunidade cai, se levanta, torna a cair e a cair e cair — e não há saída.

O universo-sertão, o imenso, vasto sertão, na realidade e na fábula de Correia de Brito, enreda os que nele vivem e, sobretudo, os que chegam, praticamente impedindo a saída imediata — como se todos estivessem, não no sertão, mas numa Amazônia ou em outro Saara (talvez mais ou menos fácil seja chegar; partir, ah: mais fácil passar dentro de um buraco de agulha).

Vasto sertão: ora direis, ouvir sertanices:

O sertão é anterior ao descobrimento. Já se fundara em Creta, no culto ao touro e na arte de domar a rês. Também se fizera sentir na Arábia das Mil e Uma Noites e em Israel, com o legado da Escritura Sagrada. O Oriente e o Ocidente se juntaram nos desertos de cá. Mouros e judeus mesclados na Ibéria continuaram se misturando com outras raças de gente, gerando a estirpe sertaneja.

E esses sertanejos, antes de tudo fortes que são, seguem. Um deles esteve até em Nova York. É um dos netos do patriarca de Galiléia. A lenda insinuava que viveu na metrópole como músico, em meio a jams sessions, fumaças e outras cenas de artista. Mas ele trocou estadas na capital do mundo entregando a carne jovem a outros homens de pele amolecida pelo inexorável fluir de ponteiros, que poderiam ser água se o relógio se chamasse clepsidra.

Ora, sertão, de onde fugir é tarefa mais do que hercúlea, eis sertão que se faz onde menos se supõe, nem bacalhau diria se dissesse:

A Noruega é um sertão a menos trinta graus. As pessoas de lá também são silenciosas, hospitaleiras e falam manso. Habituaram-se aos desertos de gelo, como nós à caatinga. A comparação parece sem sentido, mas eles também olham as extensões geladas, como olhamos as pedras. A nossa pele é marcada pelo sol extremo, a deles pelo frio. Acho que as pessoas são as mesmas, em qualquer latitude.

E se todos são iguais, mude o paralelo, a altitude, a latitude, o idioma até, esteja em Nova York, Noruega, Porto Alegre, São Paulo, Curitiba, Rio ou mesmo na Galiléia, uma fazenda-sítio-mundo-cão, lá, onde uma família se encontra: pronto, todos os dramas e crimes já têm um cenário para o desenrolar. Morte matada, adultério, incesto, passadas de perna, todas as rasteiras, apropriação indébita e indevida de bens alheios, truculências e silêncios de morte, tudo é possível, provável, os próximos estão próximos demais — como se dá nas ruas de Nova York, Noruega, Porto Alegre, São Paulo, Curitiba e Rio: todos fingem não ser irmãos, mesmo tendo no horizonte a hipótese de que a origem de todos é a mesma, ou não é?

A embriaguez cessa de repente. Sem a chance de partir, tudo parece sombrio e feio; o coração se tranca, a boca amarga. Os dançarinos passam cantando e arrancam o Santo dos meus braços. Tento alcançá-los, mas eles desaparecem. Sinto-me sozinho. Procuro alcançar o outro lado da praça e encontro a mesma paliçada de motos. Recuo porque não consigo transpô-la. Já não sei que direção tomar. Até bem pouco tempo, o mundo em volta de mim era compreensível e amável. Agora, seu significado me foge por completo.

E uma ave (ou nave?) de arribação passa, vejo pela janela, meio aberta, e sem náusea, nem mágoa, sonho estar diante de um fogão a lenha, tinto cabernet à vista, pastorear rebanhos que não me pertencem, esquecer que existem bugigangas e teses tidas como científicas, o passado viaja em mim, me viaja pelo e por meu sangue, mas agora sento apenas numa cadeira, estiro as pernas, busco apoio para a cabeça: “Soubemos notícias do avô Raimundo Caetano bem antes da travessia dos Inhamuns. A saúde dele agravou-se e a festa de aniversário poderá não acontecer”. É a frase primeira de Galiléia (que deveria ser resenhado neste espaço, frutificou este texto sabe-se lá o que é), romance que pretendo reler, agora.

Posfácio da resenha: Galiléia é lâmina afiada, vida seca, grande sertão: Brasil. Punhalada (incicatrizável) no leitor. Aquele soco no estômago que, se não mata, acorda. E, depois, aquele vazio pós-leitura de obra-prima, que nenhum outro livrinho preenche. Pancadão, batidão, um ão que não é qualquer som mas marca, fatal, e transforma (quem lê e é lido).

Leia entrevista com o autor.

Galiléia
Ronaldo Correia de Brito
Alfaguara
236 págs.
Ronaldo Correia de Brito
Nasceu no Ceará e mora em Recife. É médico formado pela Universidade Federal de Pernambuco. Desenvolveu pesquisas e escreveu diversos textos sobre literatura oral e brinquedos de tradição popular, além de ter sido escritor residente da Universidade da Califórnia, em Berkeley, em 2007. Escreveu os livros de contos As Noites e os dias (1997, Bagaço), Faca (2003), Livro dos homens (2005) e a novela infanto-juvenil O pavão misterioso (2004), todos pela CosacNaify. Dramaturgo, é autor das peças Baile do menino Deus, Bandeira de São João e Arlequim. Atualmente, assina uma coluna semanal na revista Terra Magazine, do Portal Terra.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho