Entre Borges e Menen

O jantar em um dos esplendorosos absurdos arquitetônicos da América e a dança manquitola do presidente
01/05/2010

12.04.1992
Estou voltando de uma viagem ao Chile e à Argentina. O embaixador brasileiro no Chile, Guilherme Leite Ribeiro, me diz que a situação financeira do Itamaraty e das embaixadas é braba. Ouço dele o que ouvi do embaixador Alberto da Costa e Silva, na Colômbia, de que estão tirando dinheiro do próprio bolso para pagar despesas das embaixadas. Nosso embaixador na Argentina me manda um fax dizendo que não tem gasolina no carro para mandar me buscar no aeroporto.

Sugiro que comece a alugar as embaixadas para festas, ia render um bom dinheiro.

Ontem, jantar no Museo Nacional de Artes Decorativas cujo convite dizia pomposamente: “Cena de Agazajo a los Diretores de Bibliotecas Nacionales de Iberoamerica y altas personalidades que han asistido a la inauguración del nuevo edificio de la Biblioteca Nacional de la República Argentina, de 10 de abril de 1992”.

Em minha mesa está Iris Rossing que trabalhou com Jorge Luis Borges na BN argentina durante o longo tempo em que ele ali foi diretor a partir de 1955. Haviam me dito que no período em que ele lá esteve, inúmeros livros desapareceram da biblioteca, talvez devido ao fato de ele já estar cego ou pouco interessado na administração. Peço a Iris que me conte estórias de Borges. Tento motivá-la brincando, insistindo para que solte a língua. Faz esforço, mas conta pouco, não sei se por pudor ou se porque não tem muito o que narrar.

Coisas assim:

1. Borges uma vez lhe falou durante quase três horas de como fazia uso da pontuação em seus textos.

2. Uma vez examinando funcionários/bibliotecários para um exame de seleção, chamou-a a um canto e disse: “Ouça, não sejamos tão duros com eles. Todos têm alguma coisa de bom, que se pode aproveitar”.

3. Para bibliotecárias fazia conferências de graça.

4. Quando lhe perguntavam sobre seus diplomas dizia ter “un oscuro bacharelato en Ginebra”.

5. Para Iris, ele “se fué a morir en Ginebra porque odiava homenajes”,

6. Marguerite Yourcenar pegou um avião e foi vê-lo quando estava para morrer em Genebra. Segundo Maria Kodama, os dois ficaram a sós durante duas horas.

7. Quando ganhou o Prêmio Cervantes, na Espanha, alguém que o recebeu disse: “Bueno, no tiene el Premio Nobel, pero nosotros lo tenemos”.

(Lembrei a ela uma boutade de Borges sobre o Nobel. Dizia: “No concederme el Nobel es una vieja tradición nórdica”)

8. Muita gente vinha visitá-lo, até o Rei Balduino, da Bélgica.

9. Dizia: “Los peronistas no son buenos ni malos, son incorregibles”.

O edifício onde ocorre o jantar é um dos esplendorosos absurdos arquitetônicos da América. Pertenceu a um rico chileno que se matou aos 41 anos. Lembra-me o Hearst Castle — aquele do Cidadão Kane, que vi na Califórnia, e foi totalmente importado e construído de peças importadas de vários castelos europeus.

Já neste “castelo” onde jantamos, há salões romanos, outro em estilo Luiz XV. A ceia foi no salão medieval com lareira imensa, gobelins, que estiveram na coroação de Luiz XV. Há um El Greco — Jesus con la luz a cuestas — um Rodin pequeno, meio ruim. Dizem ter um Corot. Há um Mateos Cerezo, que pensaram algum tempo ser um El Greco.

Neste jantar me pedem para discursar agradecendo ao Ministro da Cultura pela recepção.

Ontem houve um almoço na Quinta de los Olivos, com o Presidente Menen, seus ministros e convidados principais da inauguração da Biblioteca Nacional. Menem estava descontraído. A cantora de tango Biba Bidart, um veterana, descontraiu o ambiente: sentou-se no colo de Federico Mayor (da Unesco), tirou o Ministro da Economia — Cavallo — para dançar e a seguir arrastou o próprio Menen para a pista. Este parece um boneco. Tem a cabeça grande. Dizem que fez implante de cabelos. E que é pintado.

Lembrou-me dos tempos de Juscelino Kubitschek, que conheci, e era chamado de “pé de valsa”. Como até um argentino ao meu lado comentou, Juscelino dançava melhor.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

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