Encoberto pela retórica

Palavrório excessivo em "Luzia-Homem", de Domingos Olímpio, esconde boa parte de sua inegável força literária
Ilustração: Robson Vilalba
01/05/2011

Luzia-Homem, de Domingos Olímpio, publicado em 1903 — quatro anos depois do lançamento de Dom Casmurro (1899) e 15 após O Ateneu (1888) —, não nos dá apenas a certeza de que as melhores conquistas literárias podem ser transmitidas mas nem sempre assimiladas. Inserido no chamado Ciclo das Secas — classificação tão ampla quanto imprecisa, em que se reúne de O sertanejo (José de Alencar) a Grande sertão: veredas (Guimarães Rosa) —, o romance, talvez por seus próprios defeitos, tornou-se vítima de análises incoerentes. Luciana Stegagno Picchio (História da literatura brasileira), por exemplo, tão sóbria em seus julgamentos, chama a protagonista Luzia de “virago”, qualificando-a de “granguinholesca”. Ora, para quem efetivamente leu o romance, a impressão é de que a ilustre filóloga piemontesa sofreu algum tipo de lapso. Apesar da aparência masculina e da força surpreendente, Luzia está a anos-luz de ser fanchona ou lésbica, pois não tem inclinações sexuais, trejeitos ou quaisquer hábitos masculinos. Alguns estudos acadêmicos contemporâneos, baseados numa interpretação feminista, artificial e “politicamente correta”, também perpetram o mesmo erro, tentando achar pêlo em ovo. Outro absurdo é querer inserir a personagem na estética do Grand Guignol, idéia sobre a qual nem me darei ao trabalho de comentar, tamanho o seu despropósito.

Com relação ao tópico da índole sexual, se há um juízo crítico merecedor de atenção, é o de Lúcia Miguel-Pereira (Prosa de ficção — de 1870 a 1920), que analisa a protagonista sob a ótica correta, chamando-a de “alma feminina prisioneira de um corpo másculo” e concluindo:

(…) a extraordinária pujança física não lhe permitia dar azo aos sentimentos bem femininos. Sem nenhuma tendência lésbica, pura e inocente, o seu retraimento provém sobretudo de ser, como um animal bravio, incapaz de submissão. Criada à solta no meio da natureza, dando-se a exercícios masculinos, era essencialmente livre, da liberdade da planta que cresce sem peias, do vento que sopra onde quer, da liberdade cujo preço é a solidão. “Desde menina fui acostumada a andar vestida de homem para poder ajudar meu pai no serviço. Pastorava o gado; cavava bebedouros e cacimbas; vaquejava a cavalo com o defunto; fazia todo o serviço da fazenda, até o de foice e machado na derrubada dos roçados. Só deixei de usar camisa e ceroula e andar encuerada, quando já era moça demais, ali por obra dos dezoito anos. Muita gente me tomava por homem de verdade”. Por isso, morto o pai, perdida a fazenda, tangida pela seca para a cidade, com a mãe enferma, não se podia confundir com a massa dos retirantes. Inspirava desconfiança. Tinha de pagar a superioridade de ser exuberantemente sadia e bela, altiva e honesta.

De fato, ainda que Luzia não se entregue a arroubos de paixão, seu amor por Alexandre torna-se, capítulo a capítulo, mais evidente. Condicionada pela educação severa, perseguida pelo preconceito da comunidade supersticiosa — que não hesita, aliás, em lhe pespegar a alcunha de Luzia-Homem —, introspectiva, retirante cujo sonho é viver no litoral, estigmatizada por sua aparência, a jovem, que se sente capaz de qualquer sacrifício por Alexandre e arrepende-se do ciúme incontrolável, confessa à mãe: “— Eu não sou nada… (…) Sou uma infeliz, que está sendo castigada, sou uma doida, que não sabe o que faz…”. Manifestando sua feminilidade a cada gesto de cuidado filial ou pelos próximos, essa mulher, também hábil costureira, é capaz de ficar ruborizada ao coser um par de ceroulas, pois lhe lembravam o amado, então preso injustamente:

Aquela tarefa, escolhida ao acaso, era um prolongamento da obsessão que a torturava; avivava-lhe, a cada ponto da agulha, a lembrança do prisioneiro a pungir-lhe o coração com o remorso de o haver abandonado num ímpeto de despeito, ciúme ou capricho pueril que ela tentava em vão justificar com o pretexto de preservá-lo da influência funesta com que a marcara o destino. Causava-lhe, também, imenso dó o haver deixado, com desdém, no parapeito da grade da cadeia, os cravos vermelhos, emurchecidos nos seus cabelos, ao calor do seu seio, onde os guardara carinhosamente como um talismã precioso.

Tais flores, aliás, que recebera de Alexandre, e que, movida pelo ciúme infundado, largara na prisão, ressurgem pouco antes do final, no Capítulo 26, contribuindo para a cena tocante, a partir da qual Luzia aceitará a proposta de casamento feita no início do livro:

Sentindo Alexandre a seu lado, quando ele saiu do quarto, Luzia, arrancada de súbito à meditação, fez um gesto de susto. A atitude do moço era a de quem hesita em dizer alguma coisa, de abrir-lhe o coração, sufocado de ternura. Vencendo, por fim, o enleio, ele tirou do bolso os cravos murchos, e, como criança medrosa recitando um recado, murmurou:

— Aqui estão as flores, que a senhora esqueceu no baldrame da grade da cadeia… Adeus… Até outra vez…

— Até… — suspirou ela, arquejante, guardando as flores no seio e apertando-as contra o peito, em frenético amplexo, enquanto ele lhe voltava as costas e partia.

“Seu Alexandre!…”

O moço estacou ansioso, não ousando encarar nela.

— Quero pedir-lhe uma coisa — disse a moça, caminhando para ele, vagarosa e humilhada. — Não repare… no que tenho feito… Sou má de nascença… Minha sorte é fazer os outros padecerem… Tenha dó de mim… Peço… Peço-lhe que me perdoe…

— Luzia! — exclamou ele, numa explosão de ternura, estendendo-lhe os braços para ampará-la, porque ela vacilava.

— Perdoe-me — repetiu a mísera, vencida, com voz angustiada, quase à surdina, estacando diante de Alexandre, que sorria.

Não bastassem esses trechos, que poderiam ser corroborados por vários outros, Domingos Olímpio não produziu uma só linha capaz de sugerir o interesse sexual de Luzia por mulheres. Teresinha, de corpo esguio e sensual, dorme dias seguidos, seminua, no mesmo quarto que a retirante, e o narrador nada insinua. Ao contrário, Luzia apresenta, da primeira à última linha do livro, comportamento exageradamente pudico. E analisem a relação da protagonista com Quinotinha — em tudo maternal.

Afirmar, então, como faz Wilson Martins (História da inteligência brasileira, vol. 5), que Luzia-Homem é “o romance da lesbiana que se ignorava” revela surpreendente erro de avaliação, nascido de uma leitura enviesada, própria não desse grande crítico, mas das panelinhas que nas últimas décadas tentam, a qualquer custo, instrumentalizar a literatura em benefício de suas ideologias.

Felizmente, Martins acerta ao apontar “o estilo retórico e advocatício”, contrapondo-se a Massaud Moisés (História da Literatura Brasileira, vol. 2), que não incorre no erro do safismo, mas escreve elogios rasgados à obra: “sobriedade, na estrutura e na forma”; “conciso, despojado”; “jamais cede à tautologia e ao exagero”; “o meio-termo é a marca fundamental desse romance”; etc. Enaltecimentos que, veremos, são incabíveis.

Beleza sufocada
Na verdade, o texto de Domingos Olímpio sofre de uma contradição dilacerante. A linguagem é retórica, às vezes rebaixando-se à logorréia, mas é possível distinguir, em meio ao empolamento, ao exagero de adjetivos, certa beleza sufocada.

Se fosse possível filtrarmos os excessos cometidos, por exemplo, já nos primeiros parágrafos, certamente restaria uma cena impressionante, na qual o narrador mescla à desolação da paisagem — o morro, antigo matadouro, enegrecido pelo sangue de animais, em que operários constroem uma penitenciária — o desamparo desses trabalhadores, retirantes que se submetem à labuta desumana em troca da ração diária e algum abrigo, eles próprios, assim, transformados em vítimas inconscientes de um novo abatedouro:

Esse concerto esdrúxulo de vozes humanas em cânticos e queixumes, de rugidos da matéria transformando-se aos dentes dos instrumentos, aos golpes dos martelos, de brados de comando dos mestres e feitores, essa melopéia do trabalho amargurado ou feliz, era, às vezes, interrompido por estrídulos assobios, alaridos de gritos, gargalhadas rasgadas e vaias de meninos que se esganiçavam: era uma velha alquebrada que deixara cair a trouxa de areia; um cabra alto de hirsuta cabeleira marrafenta, lambuzado de cal, que escorregara ao galgar uma desconjuntada e vacilante escada, e lançava olhares ferozes à turba que o chasqueava; era a carreira constante das moças e meninas para as quais o trabalho era um brinquedo; eram gritos de dor de um machucado, rodeado pela multidão curiosa e compassiva, ou os gemidos de algum infeliz, tombando prostrado de fadiga, pedindo pelo amor de Deus, no estertor da hora extrema, não o deixassem morrer sem confissão, sem luz, como um bicho.

É pena que, em grande parte dos parágrafos, a cada substantivo deva corresponder, necessariamente, um, às vezes dois ou mais adjetivos; e que o narrador recorra a expressões batidas, repetindo um vício infelizmente comum na literatura brasileira: o de, ao invés de narrar, discursar. Poucos escritores percebem que a literatura não é a arte da eloqüência — ou que, se esta se faz, por algum motivo, necessária, deve ser utilizada de forma comedida, sem transigir. A retórica, enquanto arte do bem dizer ou do persuadir sobre o certo ou o conveniente, é indispensável a qualquer discurso — não por outro motivo, aliás, era estudada, no antigo Trivium, com a lógica e a gramática —, mas o exagero no emprego de procedimentos enfáticos e/ou termos pomposos, longe de convencer, entedia e irrita o leitor, que intui, com sabedoria, o vazio sob o texto ornamentado. E, permitam-me o parêntese, não pensemos que desse mal sofrem apenas os escritores antigos. Não. Alguns dos prestigiados prosadores brasileiros contemporâneos acreditam-se donos de um discurso vanguardista, mas produzem, na verdade, retórica oca, insignificante — e não se incomodam, nem eles nem parte da crítica, de repetir, ad infinitum, as mesmas soluções (alguns, inclusive, parecem ter imaginação suficiente apenas para criar um único narrador, que reencontramos, com as disfemias de sempre, a cada novo livro).

Assim, quando o narrador de Luzia-Homem reutiliza a velha ladainha de olhar “com tristeza nostálgica o céu impassível, sempre límpido e azul, deslumbrante de azul” ou descreve a poeira como “corrosiva, a evolar em nuvens espessas do solo adusto, donde ao tênue borrifo de chuvas fecundantes, surgiam, por encanto, alfombras de relva virente e flores odorosas”, nosso ímpeto é fechar o volume, telefonar ao editor do jornal e pedir-lhe que nos libere da ingrata tarefa de analisar mais um enfadonho livro. Não o fazemos, contudo, por austeridade ou senso de dever, e cá estamos.

O romance de Domingos Olímpio também está repleto das cenas de pobreza, fome e retirantes macilentos que vemos repetir-se em nossa literatura. Tem o seu valor histórico por ser dos primeiros a enfocar o tema regionalista, mas o faz com os defeitos apontados. E não fosse a contradição de que falamos, seria ilegível.

Dissecação
O que salva a obra é a estrutura da trama — simples, previsível, mas convincente — e as personagens, que formam um quadro vivo, curioso. Luzia, sob cujos músculos esconde-se a “mulher tímida e frágil”; Alexandre, “dedicado e afetuoso”, vítima silenciosa, perfeito bode expiatório, sobre quem recaem maledicências de todos os tipos e que enfrenta resignado sua sorte e, logo depois, o final trágico; Capriúna, o antagonista vil e afrontador, “mal-afamado entre os homens e muito acatado pelas mulheres, graças à correção do fardamento irrepreensível, os botões dourados, o cinturão e a baioneta polidos e reluzentes; todo ele tresandando ao patchouly da pomada, que lhe embastia a marrafa e o bigode, teso e fino como um espeto”; Teresinha, heroína medrosa, corroída pela culpa, breve intermediária entre a divindade e os mortais, “loura, delgada e grácil, de olhar petulante e irônico”, requebrando “em movimentos suaves de gata amorosa”, que encontra redenção numa guinada do destino; Raulino, “vigoroso e arrojado”, salvo por Luzia e sempre grato a ela, ardente contador de histórias, a quem caberá a última fala do livro, um “gemido de intensa amargura”; a intrometida Romana e seu séquito de fofoqueiras, semelhantes a um coro tragicômico, prontas a intervirem por meio de comentários difamadores, espalhando a cizânia aos quatro ventos; a beata professa Dona Inacinha, a armar “sobre o nariz rubro e adunco, grandes óculos de latão com as hastes ligadas em torno da cabeça por um cadarço preto, lustroso de banha”; Matilde, esposa do promotor, uma das personagens mais sábias e compassivas da nossa literatura; e toda uma série de figuras menores, originais, inseridas e retiradas da trama com precisão.

Extraordinária força lateja, portanto, sob o palavrório que contamina a narrativa — e a leitura só pode ser uma dissecação lenta e paciente. Somos, no entanto, premiados com ótimos trechos, plenos daquele sentido do romanesco que poucos escritores têm.

Diálogos e devoções
Alguns diálogos são perfeitos, não apenas graças à forma ou à linguagem, mas por acrescentarem elementos esclarecedores, dispensando a intromissão do narrador onisciente. No Capítulo 9, Teresinha e Luzia conversam sobre um tema banal — mas é por meio dessa pequena circunstância que Domingos Olímpio cria um universo tipicamente feminino, dando naturalidade e verossimilhança à história:

Teresinha apareceu à porta do quarto, bocejando e fazendo cruzes sobre a boca escancarada:

— Credo!… — murmurou. — Pegou-me o sono que não foi graça… Bom-dia, Luzia… Você é muito faceira com esses cabelos…

— Bom-dia, Teresinha! — respondeu Luzia com uma das madeixas presa aos dentes para lhe poder desembaraçar a extremidade.

(…)

— Que inveja tenho dessa cabeleira! Que é que você fez para crescer assim?

— Nada… Água do pote e pente duas vezes ao dia…

— Qual! Isso é do calibre de gente… Eu tenho usado tudo quanto me ensinam; óleo de coco, enxúndia de galinha, uma porção de porcarias… Cheguei até a botar, nos meus, remédios de botica. Foi mesmo que nada… Sempre ficaram nestes rabichos que nem me chegam às cadeiras…

— Veja só. Ninguém está contente com a sua sorte… Eu, por mim, não se me dava que os meus fossem como os seus. Dariam menos canseira para os desembaraçar e alisar todos os dias…

– Enfim, cada um como Deus o fez…

– Por que não ensaboas com raspa de juá? Todas as moças, na redondeza de Ipueiras, têm cabelos lindos, que crescem depressa — dizem — por causa da água de lá, que é virtuosa, e da tal raspa…

— Vou experimentar…

E que elogios fazer ao diálogo, no Capítulo 15, entre Dona Matilde e Luzia? Vejam como, à medida que a mulher do promotor expõe seus sentimentos, Luzia descobre a si mesma, desvenda as afeições que não conseguia entender ou expressar. Trata-se de uma composição notável.

Outro ponto que merece atenção é o tratamento que o autor concede às devoções cristãs e às crenças primitivas, às superstições. Elas estão presentes em todo o romance, mas o Capítulo 10, em que Teresinha visita a parteira Rosa Veado, é um retrato fidedigno da religiosidade popular brasileira.

Terminamos o romance afeiçoados à Luzia, personagem massacrada pela aparência, pela condição de retirante e por dúvidas existenciais às vezes pueris, mas que jamais atenuam sua bondade sobre-humana, sua verdadeira incapacidade para o mal e a angustiada luta que empreende a fim de manter a própria inocência. Belo tema, bela mulher — soterrados sob uma linguagem em grande parte maçante.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Manuel de Oliveira Paiva e Dona Guidinha do Poço.

Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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