Em terra de faca, quem tem cego é rei

“Faca cega” reúne parte da imensa produção poética de Glauco Mattoso
Glauco Mattoso, autor de “Faca cega”
01/06/2008

A série Mattosiana chega para alegrar os fãs de Glauco Mattoso que, como eu, se perdem constantemente (o que é ótimo!) pelos mais de 2 mil sonetos publicados no site do poeta. São literalmente milhares de versos à minha disposição e isso me deixa particularmente confusa. Não sei quanto à senhora que me lê, mas a mim muito me agradam os livros impressos do tipo para-folhear-e-pingar-gordura-do-almoço.

Dessa vez, sonetos e textos inéditos (e outros nem tanto) serão publicados de acordo com uma organização temática da obra do mais produtivo escrevedor de sonetos que o país já teve. As grandes promessas da série Mattosiana para este ano são duas: o ensaio O sexo do verso: machismo e feminismo na regra da poesia, teorização formal completíssima sobre os aspectos sonoros do soneto (já disponível em http://normattoso.sites.uol.com.br/) e Rudimentos de sadomasoquismo comparado, que mistura ensaio, conto e poesia em uma das apresentações mais cruéis da escrita mattosiana. Mas eu estou aqui mesmo é para falar de Faca cega, primeiro volume da série.

O livroé composto por quatro ciclos de poemas. O primeiro, Faca cega, compõe-se de dez sonetos. Conta a história de Chinelo, deficiente visual vítima do cunhado carrasco com quem a irmã se casara por interesse. A cena se repete na obra de Glauco: conforme é de praxe, manda quem pode, obedece quem não tem visão. Bugre, “o mais raquítico dos rambos”, faz o cunhado de gato e chinelo:

SONETO #1 — Primeiro Ciclo

“Chinelo” é como o chama o Bugre, agora
que está casado com a sua irmã.
É cego o rapazola, e seu afã
doméstico humilhar-se a toda hora.
Perdendo os pais e os olhos, ele chora
consigo, mas perante o Bugre é vã
qualquer lamentação. Já de manhã
lha calça e engraxa as botas sem demora.
A mana até concorda que o marido
desfaça do rapaz, pois, afinal,
faz jus o peso-morto ao apelido.
“Chinelo!”, chama o Bugre. O serviçal
ceguinho se ajoelha e, agradecido,
massagem faz num pé que cheira mal.

Mas, como bem sabe o poeta — e a senhora também, se curte SM —, quase nunca quem está por baixo se dá mal. Em um enredo engraçadinho, o ceguinho passa de escravo a herói e de pobre-coitado a milagreiro, sendo apelidado de Faca Cega e virando lenda…

Se Faca cega dá nome ao volume, não é meu ciclo preferido. É o segundo ciclo, construído por quarenta sonetos, que considero o mais interessante. No prefácio, o poeta dá toda uma atenção a esse ciclo, chamando-o de “mininovela em sonetos”.

Intitulada Um aproveitador descarado, é uma narrativa cujo protagonista é o já conhecido Zezão Pezão, personagem recorrente na obra de Mattoso, que corresponde ficcionalmente ao pé chato e cruel ideal de sua fantasia podólatra. A novidade é que Zezão Pezão assina esse ciclo, assumindo Glauco a voz do carrasco — fato raro em sua obra.

Segundo relatos do autor, o dono do pé chato de que foi vítima de humilhação quando criança converteu-se em elemento sádico arquetípico de sua fantasia masoquista — o que certamente levará a senhora a reconhecer em Zezão Pezão o personagem cruel das dezenas de sonetos ditos autobiográficos de Glauco Mattoso. Aliás, o autor declara, no prefácio de Faca cega, ser a narrativa em questão um “retrospecto de cunho autobiográfico”, além de observar, em um ótimo jogo de palavras: “Quanto ao lado ficcional, baseia-se parcialmente em fatos verídicos obtidos de várias fontes ou vivenciados por mais de dois depoentes, sendo o relato, portanto, menos fantasioso do que se suponha”.

Ora, a senhora há de sorrir. Afinal, o jogo entre vida e poesia construído por Glauco ao longo de toda sua produção poética é material para outras inúmeras reflexões. Como costumam dizer ultimamente: fica a dica!

SONETO #1 — Segundo Ciclo

Pequeno ainda, eu tinha como esporte
fazer outros meninos de cavalo.
Montava-lhes no lombo e, nesse embalo,
curvavam-se à vontade do mais forte.
Um deles, sem amigo que o conforte,
é a vítima ideal: posso tratá-lo
do jeito que quiser. Tudo que falo,
fará, pois seu azar é minha sorte.
Ceguinho ele não era, mas perdeu
a vista há pouco tempo. Mais gostoso
ainda, diante do olho bom, que é meu.
De quatro, ele rebela-se, queixoso,
mas lembra que é Sansão, e o filisteu
aqui sou eu: importa só o meu gozo.

O enredo de Um aproveitador descarado é tecido em torno de três partes, subtituladas, respectivamente, Antecedentes do aproveitador, com dez sonetos; Novas confissões do aproveitador, com vinte sonetos, e Últimas malandragens do aproveitador, com dez. Glauco, no prefácio, inclui o protagonista na linhagem dos heróis “sem nenhum caráter” e chama nossa atenção para a função eminentemente performática de sua poesia, que (aqui o cito) “permitindo ao autor mascarar-se em papéis que, autobiográficos ou não, desempenham tipos que todos conhecemos na vida real e que, sob a fantasia de gala representada pelo verso trabalhado, sobem ao palco e fazem o espetáculo”.

É por meio do “verso trabalhado” que a senhora poderá tomar conhecimento da vida de Zezão Pezão e de suas peripécias. Mulato, suburbano, órfão e abandonado, faz da companhia daqueles que o “adotam” seu meio de vida: solteironas, namoradas, casais e até um cego aposentado e solitário que “desempenha papel de verdadeiro escravo do aproveitador, para quem trabalha como pedinte em público e como massagista particular”:

SONETO SEM DOR NEM DÓ (#14)

Ficou cego? O problema não é meu!
A minha vista é boa! Eu aproveito
a vida como quero! Foi bem feito
você perder a pose! Se fodeu!
Tá achando tudo escuro que nem breu?
Tem mais é que sofrer! Eu me deleito
sabendo que não tenho esse defeito
nos olhos! Cê que chore o que perdeu!
Enquanto eu vejo o mundo livremente,
você tem que chupar a minha rola
calado! Se eu gozar, você que agüente!
E tire da cabeça a idéia tola
de que outros vão ter dó! Cê tá impotente!
Quem pode põe-lhe a pica, e eu posso pô-la!

Qualquer semelhança entre o cego sonetado e nosso poeta que transforma virtuosamente perda em lucro não é mera coincidência. A humilhação do cego retorna nesta segunda parte como leitmotiv: ao ceguinho resta a desdita e a obediência a quem tem dois olhos sãos.

Não será diferente nos dois últimos ciclos de Faca cega: são parcerias — “pelejas” — em que dois de seus alunos de uma oficina poética se exercitam na arte do verso fescenino espezinhando quem servindo se satisfaz. O primeiro, Danilo Cymrot, paulistano de 1986, é partidário dos limericks e das décimas, glosando brilhantemente contra o mestre. O jovem estudante de direito e músico, já familiarizado com a escrita humorística, é provocado pelo professor:

Já dei aula prum Danilo
que só pensava naquilo.
Na lição de casa
a caneta vaza
e goza a glosa no estilo.

Ao que responde, habilidoso:
Um cego de Xique-Xique
pra gozar tem seu trambique:
pede ao seu pupilo
fixado naquilo
que o goze num limeirique.

A peleja, no entanto, é construída por décimas e a famosa “deixa”: o desafiado que rime o primeiro, o quarto e o quinto versos com o sexto do oponente, medindo a técnica e o veneno da língua. Nesse jogo, Danilo glosa como gente grande o clássico “Buceta, cu e caralho:/ três instrumentos de foda”.

Igualmente digno de nota é o Epistolário escatológico de Leo Pinto, que fecha o volume em grande estilo. Leo Pinto, nascido em Londrina, em 1980, sob o nome de Leônidas Pellegrini, é exímio sonetista e é por meio dessa forma fixa que maltrata o “pertinaz masô”, que, obviamente, com tudo goza e de toda sorte de nojeiras se compraz. Se a senhora quer conhecer melhor a obra de Leo Pinto, dou a dica e recomendo o sonetário mais pornográfico que eu conheço: http://pintolibertino.blogspot.com. Em seu blog está a “peleja” completa entre mestre e discípulo, da qual faz parte o soneto a seguir:

ENDEREÇADO [LEO PINTO, 18/2/2007]

Senhor Glauco Mattoso, hoje postei
um par de meias sujas no correio,
e de antemão lhe peço por e-meio
seu parecer ao mimo que enviei.
Não quero me gabar, mas caprichei,
eu acho, pois usei-as mês e meio
sem tirar, reforçando-as com o alheio
fedor de pés pros quais as emprestei!
Este presente que vai pra você
recende a queijo, bacalhau e atum,
sem perder o seu natural cecê…
Espero, enfim, que goste do bodum,
e aguardo uma resposta receber.
Um abraço do Pinto, e até mais ver!

Ufa! Agora resta à senhora perder-se por mais milhares de versos em http://glaucomattoso.sites.uol.com.br enquanto espera pelos próximos volumes… Até!

Faca cega
Glauco Mattoso
Dix Editorial
120 págs.
Rafaella Lemos
Rascunho