Dois irmãos

“Rio das flores”, de Miguel Sousa Tavares, deixa de ser um grande romance ao limitar-se apenas a um detalhado painel de época
Miguel Sousa Tavares, autor de “Rio das flores”
01/07/2008

O jornalista português Miguel Sousa Tavares estreou no romance com Equador, de 2003. Romance histórico, o livro contava a história de Luís Bernardo Valença, um janota mulherengo e boa vida que, em 1905, é encarregado, pelo rei D. Carlos em pessoa, de governar a ilha de S. Tomé. O livro tornou-se rapidamente um best-seller. O segundo romance de Tavares, Rio das flores, lançado recentemente no Brasil, vem seguindo a mesma carreira de sucesso. O contexto histórico, porém, é mais abrangente do que no livro anterior, e engloba praticamente toda a primeira metade do século 20.

Enredo: Diogo Ribeira Flores é um proprietário de terras alentejano que possui a “idade do século” e assiste às transformações políticas que Portugal atravessa entre 1900 e 1945: o fim da Monarquia, a instauração da República e o nascimento do Estado Novo e do salazarismo. Seu pai, Manuel Custódio, é um homem conservador e popular em sua comunidade, defensor de uma “única e segura sabedoria: a da continuidade das coisas, a da imutabilidade das verdades de sempre”. Desde o início do romance (no singular episódio em que o menino Diogo é levado a Sevilha pelo pai e seus amigos, a fim de perder a virgindade), fica estabelecido o descompasso entre a vida da província e os eventos que atingem o resto da Europa. Assediados por bandidos em uma estrada, a caravana precisa revidar com fogo, ao que o pai mais tarde comenta, orgulhoso:

Pensar que meia Europa se anda a matar na Flandres, com tanques, canhões, metralhadoras, granadas e aviões, e nós aqui, de regresso da Feira de Sevilha, pacatamente a cavalo, a defendermo-nos a tiros de caçadeira de um assalto de bandidos do mato! Estamos mesmo com um século de atraso!

Mas a pacata fazenda da família não estará, para sempre, isolada das forças históricas. Significativamente, Manuel Custódio morre um pouco antes do estabelecimento do Estado Novo, em 1926. A partir daí, seus dois herdeiros, Diogo e seu irmão mais novo, Pedro, passam a encarnar as angústias, contradições e transformações que o novo regime impõe ao país. Estabelece-se, entre os dois irmãos, o conflito mais importante do livro, já que eles representam modos de vida absolutamente opostos: Diogo é um homem educado, cosmopolita, crítico severo do salazarismo e de outros regimes ditatoriais emergentes na Europa; Pedro possui o conhecimento intuitivo e prático de quem sempre viveu de sua terra e é um entusiasta do regime salazarista, defensor dos costumes familiares e de certa ordem social.

Na literatura, o tema do conflito entre irmãos não é nova, e vem desde sempre. Na ficção moderna de língua portuguesa, Esaú e Jacó, de Machado de Assis talvez seja o caso mais célebre, motivo retomado recentemente, e com desdobramentos muito diferentes, por autores como Helder Macedo (em Pedro e Paula) e Milton Hatoum (em Dois irmãos).

Amores distintos
Miguel Sousa Tavares segue o mesmo caminho temático. Os irmãos possuem muito em comum, principalmente o amor pela terra; mas são amores distintos. Pedro é respeitado por todos, pois trabalha na terra e a entende como ninguém. É um lavrador e “de certa forma, sentia que, em muitos aspectos, a sua vida se confundia com a vida de tudo o resto que ali vivia, árvores ou animais, como se todos fossem filhos da mesma sementeira”. Sua orientação política é uma continuidade desses valores:

Salazar era o homem (…) que a Providência tinha posto no caminho dos portugueses para restaurar algumas noções essenciais, tais como os valores da honra, da terra, da família, do trabalho, o orgulho de pertencer a uma nação que tinha um Império espalhado pelo mundo e a um Estado que agora honrava os seus compromissos, pagava as dívidas, vivia com o que tinha e, acima de tudo, era soberano e fazia-se respeitar. Com Salazar, ele ganhara um líder; com o Estado Novo, ganhara uma causa e uma ideologia.

Diogo, por outro lado, contempla o campo com o espanto e a admiração de um visitante. Sob sua responsabilidade ficam, então, os negócios da família em Lisboa. E seu afastamento da fazenda aumenta à medida que a situação política em Portugal lhe parece mais insustentável. Por certo tempo, Diogo acredita que poderia se assentar e viver como grande proprietário: mas nem a esposa e nem os filhos o afastam do desejo por outras terras, desejo que culminará em uma irredutível fascinação pelo Brasil, para onde sonha partir, e fugir do “ar espesso e opressivo de um Portugal amordaçado”.

O leitor acompanha, então, a história dos dois irmãos e seus embates, longos diálogos em que defendem seus pontos de vista e valores, irreconciliáveis. Este enredo é alternado com digressões históricas, em que são detalhados os eventos políticos e sociais mais importantes do país, e em meio às quais o narrador externa algumas opiniões. Apesar de ser aparentemente impessoal (em terceira pessoa), a voz narrativa não se exime de comentar eventos e personagens, e sua leitura da história de Portugal está longe da neutralidade: critica duramente os caminhos políticos de Portugal, os métodos ditatoriais, a vigilância sobre o cidadão e os líderes que considera ineptos, incluindo o próprio D. Sebastião, o rei lendário, descrito como o “mais imbecil, incompetente e irresponsável governante de toda a história de Portugal”.

A História (grifada aqui com maiúscula para diferenciá-la da “história” ficcional, ou enredo) nos é apresentada linearmente, sem sobressaltos. O leitor mais afeito aos procedimentos literários ditos pós-modernos vai seguramente desconfiar de um texto que não desconfia de si mesmo. Assim como já fizera em Equador, Miguel Sousa Tavares cria um romance histórico tradicional, sem aquele olhar metaficcional e irônico sobre a História, que caracteriza grande parte da ficção histórica recente (e que alguns críticos definem como “metaficção historiográfica”). Não há, em Rio das flores, por exemplo, nada próximo à mistura entre fato, invenção e fantasia de um Salman Rushdie, às referências culturais eruditas e populares de um Umberto Eco, ou aos jogos metaficcionais de um John Fowles. Nesse sentido, Tavares se alinha na contramão de certa literatura portuguesa contemporânea, a de Mário Cláudio, Lídia Jorge, Lobo Antunes, José Saramago, Helder Macedo, dentre tantos outros autores que se apropriaram da História de Portugal para subvertê-la, misturando fato e invenção, parodiando figuras históricas ou misturando deliberadamente tempos narrativos.

Vasta pesquisa
O que não é necessariamente ruim. É inegável que um dos prazeres em se ler um romance histórico é aprender um pouco de História. O leitor interessado se deliciará com a cuidadosa reconstituição de época; a vasta pesquisa para o livro pode ser apreciada em detalhes como o modelo do carro de Diogo ou a descrição do dirigível Zeppelin, que cumpre um importante papel no enredo, inclusive simbólico. Também são esclarecedores alguns comentários históricos, como o episódio da revolta no Porto, em 1927, uma malograda tentativa de revolta contra a ditadura recém-instituída.

Rio das flores traz, inclusive, uma bibliografia, antecedida por uma nota explicativa: “este não é um livro de história mas sim um romance histórico (…) Todavia, o que é histórico ― nomes, lugares, factos ― corresponde rigorosamente ao que aconteceu”. Esta nota, por si só, não depõe contra o romance; afinal, parte do interesse do leitor, em livros dessa natureza, está em precisar (ou pelo menos tentar precisar) o que é fato e o que é invenção. Mas Miguel Sousa Tavares, valendo-se de uma valiosa e admirável pesquisa, termina por romper o almejado equilíbrio, em romances dessa natureza, entre a História e o entrecho ficcional. O autor dedica-se tanto à primeira que termina por relegar o enredo romanesco a um segundo plano. É assim quando passa algumas páginas reconstituindo a história do Copacabana Palace, ou a trajetória política de Luís Carlos Prestes: o interesse desses desvios está mais na ambição de registrar e comparar situações e vultos históricos de Portugal e Brasil do que enriquecer os personagens ou o enredo do romance.

Outra prova disso são algumas das discussões entre Diogo e Pedro, bastante didáticas, em que os personagens parecem estar a serviço da reprodução das opiniões políticas da época. É o contrário do que se espera de um romance histórico, em que (exatamente por ser um romance, e não uma reportagem) os eventos devam estar a serviço da caracterização dos personagens. Miguel Sousa Tavares, ainda que defenda o estatuto ficcional do seu texto, parece por demais apegado à reconstituição histórica, para criar personagens que sejam mais do que representantes de uma determinada situação política.

Verdade seja dita, a caracterização dos irmãos ganha uma nova dimensão quando Pedro se engaja na Guerra Civil Espanhola. Como o próprio Tavares comentou recentemente, em entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TV Cultura, existe em Pedro uma dimensão de compromisso ideológico que está ausente em Diogo. Ainda que equivocado, ainda que lute pelos fascistas, Pedro se engaja, enquanto Diogo termina por constituir o discurso do burguês esclarecido mas conformado, alheio à verdadeira ação política. Trata-se de uma nuance que enriquece o panorama histórico descrito com clareza e competência pelo autor. Mas que não basta para que Rio das flores seja um grande romance. Para tanto, precisaria ser mais do que o detalhado painel de uma época.

Rio das flores
Miguel Sousa Tavares
Companhia das Letras
623 págs.
Miguel Sousa Tavares
Nasceu em 1952, e atua no jornal Público e na TV1. Já publicou um livro de viagem, um infantil, e dois livros de crônicas. No Brasil, já foram publicados o volume de contos Não te deixarei morrer, David Crockett e o romance histórico Equador.
Gregório Dantas

Gregório Dantas é professor de literatura portuguesa da UFGD.

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