Do realismo ao picaresco

Com sólida coesão ideológica e temática, a obra de Jorge Amado se sustenta por permitir várias e até contraditórias leituras
Jorge Amado por Osvalter
01/07/2008

A notícia tomou de surpresa o mercado editorial no ano passado. Depois de quase quarenta anos a obra de Jorge Amado abria a possibilidade de deixar a Record. Num breve leilão promovido pelos herdeiros, o legado de trinta e quatro livros ficou sob os cuidados da Companhia das Letras. Imediatamente a editora se jogou na missão de dar uma nova roupagem aos livros, inclusive comum grande trabalho de restabelecimento dos textos originais.

O resgate da obra iniciou de maneira imediata e logo chegaram às livrarias os cinco primeiros volumes da nova coleção: Mar morto, Capitães da areia, A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, Dona Flor e seus dois maridos e Tocaia grande. A escolha desses livros denuncia o primeiro acerto da reedição. Eles passeiam da fase inicial até a maturidade do escritor e, assim, abrangem o que se convencionou definir como os dois momentos distintos do conjunto da obra, a primeira ligada ao realismo social e a segunda mais libertária e picaresca.

A padronização gráfica é outro acerto embora se torne lamentável que apenas Dona Flor e Quincas Berro Dágua tragam interessantes cadernos de ilustrações, uma pena que se adensa no caso de Tocaia grande, belissimamente ilustrado em sua primeira edição, em 1984.

Jorge Amado não lia seus livros depois de publicados. Isso fez com que alguns erros fossem perpetuados nas sucessivas reedições. Há um que se tornou clássico. Num determinado momento do romance Gabriela, que já no título se apresenta com cheiro de cravo e cor de canela, a personagem aparece pálida como o luar. Paloma Amado que começou a resgatar os textos originais há alguns anos descobriu que, depois de um grande susto, a bela morena ficou pálida como o luar. A leitura dos cinco romances demonstra que foi um trabalho bem-feito e que respeita e, ou seu modo, faz justiça à obra do escritor. Outro acerto.

Mas certamente o acerto maior é dar a Jorge Amado o seu real lugar na literatura brasileira. Adorado pelos leitores, mas olhado de lado pela academia, Jorge foi injustamente acusado de escritor menor.

A verdade é que sua obra — toda sua obra —, além de uma profunda preocupação social, traz intensas inovações lingüísticas e narrativas. Só que o próprio Jorge Amado se valia dessa cara virada acadêmica para brincar de anti literato. Quando Zélia Gattai começou a escrever, ele aconselhou a que não se fizesse um literato, mas escrevesse como quem conversava, e isso mesmo ele fazia. Essa oralidade foi a base de seu sucesso e da rejeição acadêmica.

Complexo de vira-lata
Por ser um escritor de fácil e agradável leitura, Jorge Amado foi atingido pelo que Nelson Rodrigues denominou de complexo de vira-lata, onde tudo que vem de fora é bem melhor do que o que aqui produzimos. Ou daquela síndrome do sucesso de que se queixava Tom Jobim, onde as pessoas, sobretudo os artistas, que fazem sucesso logo são taxadas de menores e acusadas de fazerem concessões para ganhar dinheiro.

Jorge Amado chegou a fazer algumas concessões ao logo de sua carreira. Há duas que são bem visíveis. A primeira é O cavaleiro da esperança (1942), a biografia de Luiz Carlos Prestes, que escreveu a pedido do Partido Comunista. Embora se trate de uma obra laudatória, cumpre seu papel ao narrar uma aventura pessoal profundamente marcada por convicções extremas. O texto patenteia a obsessão ideológica que levou Prestes a renunciar a tudo. Oficial do Exército mete-se na famosa Coluna que percorre o país numa marcha insana, mas que de prático não tem nenhum resultado. Chamado para liderar a Revolução de 30, prefere ficar ao lado dos vencidos e isso o marcará para sempre em uma vida de exílios e muitas renúncias. Toda a saga é narrada em tom de heroísmo, mas cabe ao leitor exercer seu senso crítico diante da obra.

A outra concessão é o livro de viagem O mundo da paz (1951), uma descrição de suas andanças de exilado pelos países do bloco comunista, sobretudo a União Soviética. O texto está impregnado pela cegueira ideológica. Tudo ali é uma maravilha, pois a solidariedade acabou com todos os problemas impostos pela miséria e a opressão. Jorge não estava sozinho neste barco. Homens de profundo senso crítico, como Graciliano Ramos, também escreveram loas ao comunismo. E não são poucos os que os comparam a André Gide, que depois de viajar à Rússia se deitou em críticas ao regime e até rompeu com o partido comunista na França.

A verdade é que só o distanciamento pode oferecer olhos para uma leitura real da realidade. E isso faltou a Graciliano e a Jorge. Gide, por sua vez, não era melhor profeta que nossos escritores. O que mais o chocou no mundo soviético foi o profundo moralismo que ia de encontro frontal à sua sede de liberdade. Jorge também teve tempo para entender este entrevero e baniu o livro de sua bibliografia. Aliás, o segundo banimento. Antes ele renegara a novela Lenira, escrita juntamente com Dias da Costa e Édson Carneiro e publicada em 1930, um ano antes de O país do carnaval (1931).

Vale um parêntese para lembrar que o crítico Wilson Martins acusava em Jorge um afastamento tardio do stalinismo:

De forma geral, o ‘nordestinismo’ convencional e documentário, social e socialista, já estava sendo superado por Rachel de Queiroz (As três Marias, 1939), José Lins do Rego (Água-mãe, 1941) e Graciliano Ramos (Angústia, 1936). Nesse desenvolvimento, Jorge Amado é uma clara exceção, pois só se liberta do ‘realismo socialista’ em 1958, depois de vencer a passagem traumática e dilacerante da desestalinização. 

Senso de renovação
Quanto à questão da vendagem, em defesa de Jorge fica sua permanência no topo da lista dos autores mais vendidos, lugar onde outros tantos tiveram passagem tão efêmera, como José Mauro de Vasconcelos e J. G. de Araújo Jorge, para ficar em dois exemplos. Essa permanência tem uma razão de ser e a hipótese mais provável aponta para o constante senso de renovação que há na obra do baiano, além da disposição de não fugir de temas polêmicos e sempre atuais.

Ao romance inicial, O país do carnaval, seguiu-se Cacau (1933) e Suor (1934). Nessa trilogia informal já se denuncia toda obra do escritor. Ela, a obra, estaria voltada para desvendar a realidade de miséria vivida pelo povo baiano, exatamente num momento crucial da economia brasileira, quando o país vai perdendo suas características rurais para ganhar a urbanidade industrial. Este processo de transição vai deixando no limbo da história saveiristas, jagunços, malandros românticos, prostitutas estendidas nas janelas dos castelos. E esse é o mundo de eleição de Jorge Amado. Um mundo aparentemente envelhecido, mas que ele renova ao denunciar aí a gênese de algumas misérias atuais.

O país do carnaval fala de ética, ou da falta dela ao contar as venturas de Paulo Rigger, o filho de um dos barões do cacau que volta de Paris com uma amante, disposto a transitar pelo poder de comprar até elogios aos seus dotes intelectuais. Aliás, o mote das futilidades e panelinhas literárias volta em Farda, fardão, camisola de dormir (1979).

Voltando ao romance de estréia, a francesa trai Paulo Rigger comum trabalhador negro, Honório, e o moço volta para Paris culpando o país por suas dores. E Jorge já começa a nos ensinar das hipocrisias sociais e do fascínio europeu sobre a exótica tropicalidade.

Cacau é a luta social na zona cacaueira do sul da Bahia que volta a inquietar o escritor bem mais maduro e bem mais poético de Tocaia grande (1984). Ao analisar o Romance de 30, Wilson Martins aponta bem os problemas iniciais do escritor ao escrever, “depois desse proletariado da cana e do algodão, apareceria o proletariado do cacau na obra de Jorge Amado, que tão bem poderia representar todo o movimento, pois nele o ‘romance social’ não é apenas a manifestação artística do escritor, mas a forma de expressão ideológica do político”.

Inseguranças
Suor é a miséria dos homens que lidam com o trabalho semi-escravo da estiva no cais de Salvador, espaço natural que permeia toda obra soteropolitana do escritor. Nos três, programados para voltarem às livrarias a partir do próximo ano, percebesse as inseguranças e mesmos as inconsistências do romancista inicial. Mas também já se destaca todo o encaminhamento de seu trabalho voltado para a análise da vida a partir dos ditames do realismo social.

Já no romance seguinte, Jubiabá (1935), Jorge se aproxima da maturidade. Nele encontram-se todos os elementos da obra amadiana, uma obra, segundo Afrânio Coutinho escreve na Enciclopédia de literatura brasileira, “construída dentro do trabalho renovador do Modernismo, na sua segunda fase (1930-1945), caracterizada pelo predomínio da prosa de ficção. Parte ela do fundo regional — a área da cultura cacaueira do sul baiano ou da cidade de Salvador — situando os problemas humanos e sociais desencadeados no quadro regional”.

E assim se faz o romance, tendo Salvador como convergência de todos os deserdados da Bahia. Ele narra a vida de Balduíno, de menino no Morro do Capa Preta a estivador e líder grevista. É a formação política e revolucionária do protagonista que interessa o tempo todo. Mas ele tem como guia e orientador Jubiabá, o pai-de-santo que comanda o morro onde nasceu Balduíno. Partindo deste elemento, o autor se vale de todo imaginário religioso e mítico do Nordeste para adensar sua literatura. A partir de então esta passa a ser sua marca mais visível.

Mesmo ainda ferrenhamente preso aos preceitos ideológicos de sua eleição, o escritor avaliza as crenças mais profundas do povo, seus sentimentos religiosos e suas superstições. Como diria Pedro Arcanjo, o protagonista de Tenda dos milagres (1969), “meu materialismo não me limita”. E isso é que dá graça ao trabalho do escritor, a possibilidade de ser lido por várias vertentes. Até mesmo a vereda da sensualidade, que muitos leitores ainda confundem com pornografia.

Mar morto (1936) é bom exemplo dessa junção de sincretismo religioso, crítica social e sensualidade à flor da pele. O romance conta a história de Guma, um saveirista criado no cais de Salvador. Seu pai, Frederico, foi um marítimo que “desonrou” uma moça. Grávida e abandonada, ela é expulsa de casa pelo pai e termina por se prostituir. Frederico morre em seguida e o menino passa a ser criado pelo tio, o velho Francisco. Ainda uma criança de quinze anos, Guma amadurece e substitui o tio no leme do saveiro. Sonha viver um grande amor e o vive nos braços da valente Rosa Palmeirão, que usa uma navalha na saia, um punhal entre os peitos e já bateu em muitos soldados. Vive esta paixão até que conhece Lívia, o amor que ele pediu a Iemanjá.

O romance não tem o final feliz dos contos de fadas. Jorge Amado não era um romântico inveterado. Mas nele vive-se todo o drama social das famílias famélicas do cais, do médico e da professora que pensam que ainda há salvação para o mundo, da revolta constante dos marítimos. Isso tudo ponteado pelas festas religiosas do Senhor do Bonfim, de Nossa Senhora da Conceição da Barra e de Iemanjá.

A interessante junção da religiosidade e da falta de perspectiva social num mesmo espaço romanesco demonstra que o escritor já em sua fase inicial criticava a passividade da gente do povo. Seus heróis são valentes com o mar, mas se submetem aos caprichos dos homens da terra. Guma morre ao atender um desses apelos e pouco se recompensa sua família, que continua determinada a seguir o ciclo natural das tragédias e dos encantos das águas.

Carga realista
Certamente um dos mais conhecidos e debatidos dos romances do escritor baiano é Capitães da areia (1937). Sua popularidade se deve ao realismo com que descreve a vida humilhante e degradante dos meninos abandonados à própria sorte nas ruas de Salvador. Zélia Gattai conta nesta nova edição que o escritor chegou a dormir no trapiche com os menores de rua e daí viria esta forte carga realista do romance.

A temática que envolve esses meninos em si, além de polêmica, é fascinante. Aliás, ainda hoje ela é tratada com pudores e melindres. Vale lembrar o qüiproquó provocado pelo cronista José Carlos de Oliveira ao publicar na revista Manchete de 21 de novembro de 1953 uma crônica, reproduzida no livro O Rio é assim, em que dizia:

É notória a sórdida situação dos SAM (Serviço de Apoio ao Menor). É mesmo preferível (que Deus nos perdoe) deixar as crianças na rua. Elas se degradam na rua, mas de maneira inconsciente, apenas como resultado de estarem na rua. No SAM elas serão degradadas por nevrose. Não conheceis o caso do rato que, submetido a torturas morais e libertado numa sala, põe-se a dar com a cabeça na porta fechada, até cair quase morto? Assim age o SAM. 

Dezesseis anos antes, Jorge Amado fazia a mesma denúncia e a mesma ousada proposta como solução para um problema que persiste ainda hoje. Tudo a partir da história de Pedro Bala e seus amigos. Eles são os Capitães da Areia, um grupo de meninos que vive de furtos e outros golpes nas ruas de Salvador. A visão naturalmente é benevolente e as crianças são apresentadas como vítimas que precisam de somente poucas chances. Aliás, o talento individual de cada um acaba por salvar muitos deles. Já a caridade sempre vem envolvida pela nódoa do interesse.

O Sem Pernas é um que chega a receber o carinho de uma senhora bem intencionada, mas não consegue domar sua crescente revolta por enxergar nessa proteção apenas o conforto para a perda prematura de um filho verdadeiro.Embora em alguns momentos o realismo jorgeano termine por denunciar também o personagem que já não consegue, depois da vasta experiência das ruas, viver como um “menino burguês”.

Jorge Amado por Ramon Muniz

Fascínio pelo panfleto
É um jogo duro a vida dos meninos; e Jorge aponta que o único caminho seria a educação e a luta contra as injustiças, caminhos seguidos pelo Professor e por Pedro Bala, o líder dos meninos. Numa visão marcantemente ideológica, o escritor termina por filiar Pedro ao Partido Comunista. E aí exerce seu fascínio pelo panfleto.

Nesse romance Jorge começa a se libertar de um dos grandes problemas de sua obra inicial. Em muitas entrevistas, ele declarou certo arrependimento por ostentar, no início de carreira, orgulho pela capacidade de escrever um romance praticamente de uma única sentada. Esta pressa resultava em descuidos como a entrada de personagens que não diziam a que veio e que sumiam da mesma maneira misteriosa com que apareciam nas tramas. Em Mar morto há um tio de Guma que surge, reacende as feridas do velho Francisco e deixa uma medalha para Lívia, mas o leitor não fica sabendo que feridas são aquelas, de onde ele veio, porque voltou, enfim, um personagem solto e desnecessário.

Na maturidade, o escritor reconhecia esta necessidade de trabalhar melhor seu texto, de ter um cuidado mais apurado com sua obra. Entrevistado por Alice Raillard, ele confessa: “hoje meu trabalho me custa mais esforço que antigamente, porque tenho uma visão muito mais clara dos meus limites, e, por outro lado, porque trabalho com cada vez mais profundidade”. Ele tinha aprendido a necessidade de fazer uma obra e não apenas escrever livros. Aliás, chegou a dizer isso a João Ubaldo Ribeiro quando este, diante do sucesso do romance Sargento Getúlio, pensou renegar o livro. E seguiu o próprio conselho tornando seu trabalho cada vez mais renovado e renovador.

Na mesma entrevista a Alice Raillard, declara que “o romancista tem que saber renunciar ao truque e ter a coragem de continuar a quebrar a cabeça, até encontrar a solução certa”. Esta é a linha que o faz mudar, para muitos, radicalmente o curso de seu trabalho a partir de Gabriela, cravo e canela (1958). Quatro anos antes, com o romance A luz no túnel, ele fechava a trilogia Os subterrâneos da liberdade e a fase político-social de sua obra, abrindo as portas ao picaresco, ao alegórico.

Essa mudança não é assim tão radical nem tão brusca. Os dois momentos se entrelaçam sem prejuízos para nenhum deles. O que parece mesmo ter acontecido foi a vontade real de mudança e o convencimento de que a literatura, antes de ser um instrumento de lutas engajadas, é uma arte e como tal deve ser tratada.

Hipocrisia burguesa
A novela A morte e a morte de Quincas Berro Dágua (1961), escrita já na chama da nova fase, é exemplar. Nela se denuncia a intensa hipocrisia das famílias burguesas que vêem a ascensão social como único objetivo da vida. Quincas é um antigo funcionário exemplar que abandona a família para se dedicar à vida de farras em torno do cais de Salvador. Depois de sua morte, os amigos fiéis o levam para uma moqueca num saveiro e aí o defunto desaparece nas águas do mar.

Pescando sempre na realidade suas narrativas, o realista Jorge Amado também aqui se apresenta. O defunto que passeia com os amigos, denuncia Affonso Romano de Sant’Anna no posfácio, aconteceu de verdade no Rio de Janeiro com o cearense Wilson Plutarco Rodrigues Lima. E mesmo o berro de Quincas não é dele. Jorge confessava que, durante uma intensa bebedeira em Olinda, Zélia, preocupada com o avançado porre do poeta Carlos Pena Filho, colocou água no lugar da vodca que ele bebia. O sonetista percebeu a troca logo que bebeu e soltou o tal berro dágua.

Liberdade sexual, espelho da realidade, crítica social, tudo nisso já está em sua, digamos, primeira fase e permanece na renovação. O que muda é mesmo o cuidado com a narrativa e a linguagem, onde se adensa seu lirismo quase poético. Buscando suporte na obra do próprio Jorge há uma cena do romance Dona Flor e seus dois maridos (1966) que definiria bem os dois momentos de sua obra.

As mulatinhas Catunda, desafinadas e modestas, pareciam um soar de guizos, um trinado de pássaro, um raio de sol, corpos de viço e saúde em comparação a Jô e Mô com seu lamento sem esperança. As Catundas dançavam em preceito aos orixás, aos alegres e íntimos deuses negros, vindos da África e na Bahia cada vez mais vivos. As negras americanas dirigiam sua súplica aos austeros e distantes deuses brancos dos senhores impostos aos escravos no lanho da chibata. Umas eram o riso solto, as outras o pranto desolado.

Até Gabriela, Jorge era o austero defensor dos oprimidos e, a partir daí, sem negar suas crenças, botou uma alta dose de humor e leveza em suas letras.

Dona Flor, como romance, é uma obra completa. Tem um grande enredo: a história do morto que volta para continuar os prazeres de suapaixão. O enredo é desenvolvido de maneira bem delineada, sempre buscando elos entre os acontecimentos e tecendo um painel rico e alegórico da Bahia. Os personagens, embora chapados, sem profundidade psicológica desnecessária, vivem seus dramas na medida em que lhes exige a trama, o que os aproxima da vida real. Por fim, tem doses bem intensas de imaginação e inventividade, desafiando o leitor a percorrer suas páginas pelo simples prazer da leitura.

O romance tem ainda uma brilhante junção entre o real e o esotérico. Todos os personagens têm suas crenças e porelas conduzem sua vida. Vadinho acredita na sorte; dona Flor, na paixão; Dionísia, em seus orixás. Este jogo de crenças não tem limites racionais. Acreditasse pela força da crença, o que dá fórum de veracidade ao doce absurdo do morto que, desregrado em vida, volta pela saudade de seu amor. E este sistema de crenças é que dá dimensão psicológica aos seus personagens, que, como retrato popular, não carece mais que isso. Aliás, lembra Edilberto Coutinho, “mais que qualquer coisa, Jorge Amado adota o ambiente do povo pobre do Brasil, narrando o sofrimento do trabalho no eito da fazenda de fumo ou cacau, as proezas do cangaceiro que se revolta contra um sistema social injusto, a retirada dos sertanejos flagelados pelas secas”.

Divertida e conseqüente
Esta leitura lírica, e até onírica, da realidade fez crescer, e muito, a obra de Jorge Amado. Embora permanecesse como um escritor de causas — o que o motiva a escrever Tieta do agreste (1977) é a defesa dos santuários ecológicos e a denúncia contra a poluição ambiental —, sua literatura torna-se mais divertida e conseqüente. Foi a partir de Tieta que se buscou a preservação de Mangue Seco, um pedaço do litoral entre a Bahia e Sergipe.

É como o mesmo escritor engajado, apenas com a linguagem mais apurada e a narrativa mais bem cuidada, que Jorge chega à maturidade. Um de seus últimos livros, Tocaia grande (1984), caminha nesta trilha. O romance inicia com um breve texto que reafirma tal compromisso.

Digo não quando dizem sim em coro uníssono. Quero descobrir e revelar a face obscura, aquela que foi varrida dos compêndios de história por infame e degradante; quero descer ao renegado começo, sentir a consistência do barro amassado com lama e sangue, capaz de enfrentar e superar a violência, a ambição, a mesquinhez, as leis do homem civilizado. Quero contar do amor impuro, quando ainda não se erguera um altar para a virtude. Digo não quando dizem sim, não tenho outro compromisso.

Este compromisso foi levado à risca desde sua obra inicial. Era o compromisso com os quase párias sociais, como o coronel Natário, que armou a tocaia onde depois se ergueria a cidade de Irisópolis, um lugar síntese da zona cacaueira. O romance nasce recheado pelos ingredientes tão caros ao escritor: aventura, sexo, injustiça social. E aí deixa rastros para que os críticos falem numa repetição, numa variação sobre o mesmo tema. Jorge, no entanto, se renova e demonstra uma capacidade inventiva sempre afiada. O coronel Natário ganha dimensão na sua fidelidade a um código de honra somente capaz de se fazer concreto dentro de uma estrutura de abertura de novos espaços econômicos, onde a lei da sobrevivência dita as regras e as éticas. E tudo descrito com uma forte linguagem lírica e honesta. A serenata promovida pelos ciganos, e que promove um momento de intenso pudor na cidade, é um dos mais belos instantes da nossa literatura.

No romance, segundo depoimen todo escritor a Gilson Rebello, o apuro narrativo chegou a sacrificar todo o início do trabalho. “Em Tocaia grande o grande herói era um garçom de cabaré. A história ficou muito engraçada, mas estava sobrando no livro, como se fosse, por exemplo, o terceiro braço de uma pessoa. Mas o livro tem que se impor por si. Ou você vê isto, ou não vê. Aí, tirei essa história. Voltei a trabalhar o texto desde o começo. Era como se fosse um buraco, não podia jogar terra. Tive de começar tudo de novo.”

Rubem Braga estava pleno de razão quando disse ser este o melhor e mais intenso romance de Jorge Amado.

Obra com uma sólida coesão ideológica e temática, a literatura de Jorge Amado se sustenta por permitir várias e até contraditórias leituras. Ela é sociológica por ser um painel social realista. Desafiadora pela multiplicidade de sentimentos, indo da opressão à plena liberdade. Lírica por não ter medo de desvendar as faces belas dos desvalidos. Renovadora por buscar sempre a dianteira dos interesses humanos. Inventiva por não encontrar limites para as possibilidades da imaginação. Uma obra plena e divertida.

Nota
Para escrever este texto, o autor se valeu dos seguintes livros e publicações: Enciclopédia de literatura brasileira, direção de Afrânio Coutinho, Brasília: FAE, 1995; Conversando com Jorge Amado, de Alice Raillard, Rio de Janeiro: Record, 1990; O personagem principal, de Gilson Rebello, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1993; Criaturas de papel, de Edilberto Coutinho, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980; Pontos de vista, de Wilson Martins, volumes I e II, São Paulo: T.A. Queiroz, 1991/1995; Cadernos de literatura brasileira – Jorge Amado, São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1997; O Rio é assim – A crônica de uma cidade (1953-1984), de José Carlos Oliveira, organizador: Jason Tercio, Rio de Janeiro: Agir, 2005.

Dona Flor e seus dois maridos
Jorge Amado
Companhia das Letras
486 págs.
Capitães da areia
Jorge Amado
Companhia das Letras
283 págs.
A morte e a morte de Quincas Berro Dágua
Jorge Amado
Companhia das Letras
117 págs.
Tocaia grande
Jorge Amado
Companhia das Letras
471 págs.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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