Discursos sobre Aleijadinho

Tese de doutorado de Guiomar de Grammont recusa a verdade histórica
Guiomar de Grammont, autor de “Aleijadinho e o aeroplano”
01/06/2011

Guiomar de Grammont é uma escritora que pesquisou seriamente os discursos construídos sobre Aleijadinho, escultor conhecido por seu sofrido heroísmo e sua singularidade física, artística e mental. Uma espécie de Quasímodo da antiga colônia, modelo do artista genial e índice das grandezas brasileiras, seus trabalhos foram reputados como símbolos do país e um dos nossos renomados pontos turísticos, além de se confundirem tanto com a identidade brasileira, como a paisagem carioca, a Floresta Amazônica e o carnaval.

O Aleijadinho referido é, sobretudo, um produto discursivo do projeto nacionalista romântico, mostra Guiomar de Grammont. Convém lembrar os vários empreendimentos de elaboração de uma imagem nacional realizados ao longo do século 19. Podemos citar a construção do IHGB (Instituto Histórico Geográfico Brasileiro), em 1823 e a monografia de concurso de Martius, intitulada Como se deve escrever a história do país, sob o propósito de modelar a abordagem da “história da pátria”. Nesse âmbito, o escalonamento de referências pátrias constituiu-se na primeira etapa da escrita sobre homens considerados notáveis, gerando grande interesse pelas biografias, tarefa bem adequada ao espírito romântico e muito freqüente no Brasil oitocentista. Antonio Candido informa que

a partir de informações esparsas, da tradição oral, de livros como os de Pizarro e Baltazar Lisboa, levantaram rapidamente a vida dos grandes homens. Era preciso fornecê-los à pátria como exemplo, pois todo esse movimento biográfico é animado de um espírito plutarquiano que conduzia ao embelezamento do herói.

A construção de um herói exemplificador como Aleijadinho se faz nesse contexto, condizente ainda com os clichês próprios da estética romântica: as noções de originalidade, de individualidade e de artista vitimado pelo destino norteiam a imagem do escultor formulada por Rodrigo José Ferreira Bretas, seu biógrafo romântico, que narra sobre um personagem mítico, com viés psicologizante, interpretado em conformidade com os pressupostos de grandeza nacional. Seu texto reaplica ao biografado os rotineiros estereótipos daquele momento com base na interpretação de fontes consideradas documentais. Tal interpretação se faz em versão grandiloqüente e, importa sublinhar, o tecido narrativo de Bretas pretende registrar os elementos constitutivos da elaboração de um modelo mítico. Isto quer dizer que a biografia de Aleijadinho é uma tópica incorporada na memória brasileira, retrabalhada com vistas a sustentar um tipo de explicação do passado, qual seja, o que faculta a representação heróica das personagens que teriam vivido grandiosamente naquela época.

Bem distante da pretensão de oferecer novos documentos às informações circulantes sobre a figura do biografado, Guiomar de Grammont se dedica a outra finalidade, segundo suas próprias palavras de declaração de método: “(…) o que fazemos é apresentar uma leitura completamente diferente não apenas desses documentos, mas também dos discursos que sobre eles foram feitos”. A pesquisa de fôlego bem empreendida pela autora oferece subsídios para o leitor articular as formulações de ordem romântica, norteadoras da perspectiva da história da literatura e das artes como um todo, com as convenções de preceptivas dos séculos 16 e 17, às quais não se aplicam os conceitos psicologizantes de autoria, intenção e originalidade. Por isso mesmo, não cabe a este trabalho comprovar a verdade sobre esta ou aquela versão. Seu propósito é demonstrar a elaboração de um mito romântico constitutivo de um programa artístico, crítico e historiográfico eternizado no século 20 e mesmo no 21.

Redescoberta do país
Para especificar a historicidade dessas práticas discursivas, a autora examina os pressupostos teóricos e ideológicos que as sustentam e que modelam o passado colonial de acordo com os programas nacionalistas então vigentes. Esta análise está organizada em cinco capítulos, além da introdução, a partir dos quais a pesquisadora discute a construção do paradigma da nacionalidade; a biografia do herói especificada por um gênero literário (a ficção encomiástica); e os discursos dos viajantes a Minas Gerais. Tais viagens foram executadas por Saint-Hilaire, dentre outros, no século 19 e, posteriormente, no século 20, pelo poeta suíço Blaise Cendrars, que, ao lado do modernista Oswald de Andrade, executou importante incursão ao território mineiro. Mário de Andrade enfatizará em seu discurso crítico a importância do trabalho atribuído a Aleijadinho no processo de “redescoberta do país”, parte integrante do projeto modernista. No penúltimo capítulo, a estudiosa discute o problema do estilo e da autoria em concomitância à tarefa de atribuir as obras ao escultor Aleijadinho e de que maneira isso toma parte da mitologia do personagem. Por fim, outra categoria de ordem romântica, a “originalidade”, mostra-se fulcral para o exame de uma persona de dotes extraordinários como o biografado em questão. Este problema, para ser bem dimensionado, é definido em oposição aos termos “emulação” e “cópia”.

Bastante informativo e oportuno, o trabalho de Guiomar de Grammont possui ainda como ponto alto a recusa da verdade histórica. O seu compromisso é reconhecer as práticas letradas que regem a produção de um discurso, de uma biografia em determinado momento. É uma tese de doutorado que combina o estilo acadêmico e a seriedade da pesquisa com uma escrita de alcance para além das fronteiras universitárias.

Aleijadinho e o aeroplano
Guiomar de Grammont
Civilização Brasileira
322 págs.
Guiomar de Grammont
Escritora e professora de filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto. O livro Aleijadinho e o aeroplano, publicado em 2008, é decorrente de sua tese de doutorado em Literatura Brasileira defendida na USP, em 2002.
Mirhiane Mendes de Abreu

É professora de literatura brasileira da Unifesp.

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