🔓 Desencontros

“Cada grande livro redefine a função da literatura.” — Jérôme Ferrari
O escritor francês Jérôme Ferrari em Paraty, durante a Flip 2013
09/07/2013
O escritor francês Jérôme Ferrari em Paraty, durante a Flip 2013
O escritor francês Jérôme Ferrari em Paraty, durante a Flip 2013

A ausência e a decadência são pontos-chave do primeiro romance do francês Jérôme Ferrari publicado no Brasil. O sermão sobre a queda de Roma narra a chegada de dois amigos desiludidos com a vida em Paris a uma pequena aldeia da Córsega, a fim de cuidarem de um bar. Apesar de não se afirmar como um romance histórico, a narrativa mescla as catástrofes do século 20 e a ruína do império francês com a decadência do poderio da Roma Antiga. Sermões de Santo Agostinho (354-430) perpassam a obra, vencedora do prêmio Goncourt de 2012 — o mais prestigiado da língua francesa — e que inaugura a coleção “Fábula” da Editora 34. Convidado da Flip 2013, Ferrari nasceu em Paris, em 1968, estudou filosofia na Sorbonne e trabalha atualmente como professor de filosofia em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes. Estreou na literatura em 2001, tendo lançado sete obras de ficção desde então. Neste Inquérito especial, realizado em Paraty (RJ), Ferrari fala sobre sua trajetória como escritor, sua biblioteca “móvel” e os desencontros que a literatura lhe proporciona.

Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Comecei a escrever desde cedo, com 16 anos. Aos 26, escrevi um conto e pensei que ele poderia ser publicado. De fato, meu primeiro livro publicado foi uma coletânea de contos. Desde então nunca deixei de escrever, mas também não deixei de lado o trabalho como professor. Nunca tive o projeto de ser apenas um escritor.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Acho que não tenho manias, nem sigo regras enquanto escritor. Como leitor, sou muito eclético. Gosto de coisas que são bem diferentes entre si. Como escritor, tenho temáticas obsessivas, por exemplo a questão metafísica, tanto na literatura quanto na filosofia.

Que leitura é imprescindível no seu dia-a-dia?
Preciso estar cercado de livros de filosofia e literatura. Já parti duas vezes para morar em outros países, e não levo apenas alguns livros, levo toda a minha biblioteca.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Se tenho um projeto, sento e escrevo. Não existem obstáculos.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
O princípio é o mesmo. Eu abstraio tudo o mais e me concentro na leitura, assim como acontece na escrita.

O que considera um dia de trabalho produtivo?
Um dia bastante produtivo é aquele em que consigo escrever quatro laudas. Normalmente eu retomo a leitura do que escrevi no dia anterior, mas não consigo ficar um dia inteiro sentado escrevendo.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Duas coisas: uma delas é perceber que aquilo que está escrito tem uma vida própria, não se pode mudar o que está lá; o sentimento de quando me dou conta de que o romance começa a existir. A segunda é quando, ao ler o que escrevi, percebo que não é uma maneira de eu me apresentar, mas de ver o que existe de estranho em mim mesmo e que vem à tona ao escrever.

Qual o maior inimigo de um escritor?
Escrever em função daquilo que se espera de um escritor. Se o escritor faz isso, ele está fazendo um produto, não literatura. Vira puro marketing e ele não é mais escritor.

O que mais lhe incomoda no meio literário?
Conheço pouco o meio literário. Sempre morei fora da França, e assim vejo apenas o lado bom.

Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Giosuè Calaciura, autor do romance Malacarne. É um escritor italiano, siciliano, que trata da máfia, mas de forma sensível, poética e inovadora. Não é a literatura que conhecemos sobre o tema.

Um livro imprescindível e um descartável.
Não acho elegante para um escritor indicar um descartável, então indicarei dois imprescindíveis: Vida e destino (tradução livre), romance escrito em 1959 por um autor ucraniano chamado Vassili Grossman e publicado após sua morte. O segundo é o romance Zone, do francês Mathias Énard.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Já tomo muitos cafés com escritores vivos, mas não tenho nenhum desejo em particular de convidar alguém. Não é porque eu tenha gostado de um livro que tenha vontade de me sentar com o escritor.

A literatura tem alguma obrigação?
Não. Ela pode ter muitas funções. Uma delas é a de descortinar a realidade. Mas cada grande livro redefine a função da literatura.

Qual o limite da ficção?
Acho que não é possível fixar um limite a priori para a literatura ou qualquer outra forma de arte.

O que é um bom leitor?
Aquele que aceita encontrar no texto algo que não seja ele mesmo.

O que te dá medo?
A condição humana.

Rascunho