Desconstruir vidas

"A invenção do crime", de Leida Reis, propõe um romance policial em que o culpado não seja um assassino
Leida Reis por Nilo
01/05/2010

O romance policial tem normas próprias, escreveu Tzvetan Todorov, e quem tenta transgredi-las com o intuito de embelezar a forma corre o risco de praticar “literatura, não romance policial”. Independentemente do que está por trás ou adiante do pensamento do lingüista búlgaro — o debate sobre “literatura de gênero”, aliás, de tão redivivo, ocupou considerável espaço na edição de abril do Rascunho –, o fato é que o romance de enigma e o romance noir estão entre os campeões de vendas no Brasil e no mundo, desafiando conceitos e preconceitos.

Não sou entusiasta de histórias exclusivamente calcadas na busca pela superação metódica de um enigma ou na identificação de uma ocorrência misteriosa; nem de histórias que apresentam um crime a ser desvendado por um protagonista (em geral um detetive); tampouco aquelas que envolvem violência brutal, paixão desenfreada, sexo bizarro, maníacos etc. Então, ou estou sendo superficial — para não dizer “ignorante” — ao explicitar meus condicionamentos, ou o romance de estréia de Leida Reis é um híbrido altamente convidativo. Desarmado, defendo a segunda opção. A invenção do crime tem cacoetes, sim, mas procura reler, reciclar e até superar as idiossincrasias da tradição deflagrada por Edgar Allan Poe.

Isso é especialmente positivo numa contemporaneidade mutante, em que as identidades nacionais estão em choque permanente com as tradições e os sistemas estáticos. Qualquer produto literário tem de lutar por afirmação ainda mais bravamente do que há 30 anos. Parâmetros não faltam. A ficção cinematográfica brasileira, por exemplo, tem sido alvo de comparações freqüentes com o cinema argentino. Críticos argumentam que nossos vizinhos seriam mais eficazes no quesito “narratividade” por acreditarem mais na inteligência do público.

Por analogia, os debates sobre o excesso de experimentalismo formal na literatura brasileira dita “culta” (em detrimento da difusão e circulação) constituem um alerta: para formarmos novos leitores, precisaríamos de uma literatura tão aprofundada quanto “menos linguística”. Talvez não haja nada de aviltante ou agressivo nisso. A arte vive às custas do real, seja para repeti-lo, seja para transcendê-lo. Por outro lado, a arte não consegue acompanhar a velocidade do real, que se reinventa minuto e minuto. Daí que não é obrigação do escritor reinventar-se em cada obra. A invenção do crime é a invenção de um crime, não a invenção da roda.

Leida deve ter-se inspirado em Robert Louis Stevenson, Edgar Allan Poe, Agatha Christie, Conan Doyle, Georges Simenon e outros. Mas ela não parece uma típica autora de tramas policiais. Sua narrativa, aliás, ironiza o “típico”. Além disso, explora bem a temática do crime globalizado exercido sem freios por networks sinistramente entrelaçadas, utilizando de mecanismos de fazer gelar o sangue dos mais imaginativos. Com uma visão de mundo plenamente afinada com as implicações psicológicas e morais da criminalidade (e da narrativa criminal), Leida demonstra saudável propensão à pluralidade.

Prisioneiros
Seus personagens não são prisioneiros de esquemas. São prisioneiros, na verdade, de um criador — no caso, um escritor “semiesquizofrênico” — povoado de fantasias e contradições primárias. Em seu cérebro eminentemente matemático, às vezes binário, transitam: um contrabandista de armas na Líbia que não é morto pelas armas que traficava, mas tem de “parar de reger a orquestra”; um garoto carioca cujo futuro não chega nunca e, após o assassinato da mãe e da irmã, decide tornar-se executor; a cruel artista plástica de uma aldeia romena que se envolve no tráfico de ópio e constrói uma lança artesanal com a qual pretende atravessar o pescoço de um promotor intrometido; e o intrigante Herói, que não salva nem redime. Seu único papel é evitar a morte biológica de seus alvos, ou algo assim.

Escolheu esse caminho como uma arte. Por ser o único a fazer isso. Era possível anular um grande traficante, um exímio policial, uma pessoa qualquer, sem que fosse necessário acabar com sua vida. Era isso que provava para si mesmo. Se nascera num dia fora do tempo, 25 de julho, teria que ser alguém fora do mundo. Incomum teria que ser o seu ofício, e nele se especializou. Agora não, é preciso matar. Chegou o momento e dele não pode fugir. Ou pode?

O Herói é uma espécie de Frankenstein do narrador, que nutre curiosidade obsessiva por sua criatura maior. O desejo do criador é produzir uma obra em que não há um assassinato. O sujeito propõe, então, “o primeiro romance policial em que o culpado não é um assassino”. (Seria esta a maneira escolhida por Leida para se inserir originalmente no gênero?)

O assassino, na verdade, afirma, é apenas um “desconstrutor”:

Ele desconstrói vidas, verbo que sequer existe no dicionário que uso, mas que define a sua ação. Há suspense, há vítimas, mas não há assassino, porque o Herói inventa o seu crime, rouba, falsifica, frauda, prende sem autoridade. Mas não mata.

O semiesquizofrênico conta-nos que decidiu ser escritor porque tem o hábito de investigar a vida das pessoas e não havia o que fazer com as descobertas, exceto colocá-las no papel (“quando era do papel que os escritores viviam, pois agora registramos nossa arte na memória do computador, mas os livros ainda são o nosso melhor meio de contato com os outros, sem os quais não existimos”).

Ao colocá-las no papel, vê-se meio que obrigado a fornecer pistas sobre o funcionamento de sua própria inventividade, numa clara referência às pressões contemporâneas para que prestemos mais atenção aos processos. Os resultados finais, por encobrirem o “como”, seriam enganosos, artificiais, vagos. Esta, aliás, é uma grande sacada de Leida Reis, que também reavivou em seu livro a metáfora da criatura que adquire vida própria, desconfortando o criador.

Homem feliz
O Herói é “um homem feliz, seco e áspero como a música do deserto”, mas, em termos sociológicos, ele é tão anônimo quanto a maioria dos mortais. Apenas não pode existir porque seu trabalho é exatamente fazer com que deixem de existir perante a sociedade os pais, os comparsas, os amigos e inimigos. No fundo, o escritor, que se diz “covarde demais para aceitar ordens”, teme que o Herói, aproveitando-se da tortuosidade do discurso, apague-o.

É impossível escrever início, meio e fim, pelo menos para mim. Viver em função de um personagem e ordenar sua vida não é fácil para alguém como eu. O que faço é cozinhar pedaços em panelas separadas, com temperos diversos, e depois juntar tudo numa travessa. Claro que quando monto o prato, nada sai como deveria, ou como planejei, se é que alguma vez cheguei a planejar um livro. Todos saíram de mim como sonhos. Ou chegam. Como gratuidades recebidas à noite, sem que se espere.

A invenção do crime não tem um começo, um meio e um fim. Talvez seja possível ler os capítulos fora de ordem, como em O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar, ou como nos hipertextos da era digital, de certa forma. As peças se encaixam por remissão, e nesse engenho reside outro mérito de Leida. Entretanto, o projeto de fundo (“um investigador transfigurado em escritor”) revela-se excessivamente influenciado por exotismos, mirabolâncias e metalingüismos tolos, deixando escapar perspectivas filosóficas importantes, como a da “existência não cientificamente manipulada”.

A invenção do crime
Leida Reis
Record
160 págs.
Leida Reis
Mineira de Patrocínio. Jornalista formada pela UFMG. Editora e cronista do Hoje em Dia. Em 1991, aos 25 anos, lançou a coleção de contos The Cães Amarelos.
Sergio Vilas-Boas

É escritor e jornalista. Autor de Perfis, entre outros.

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