Depois daquela guerra

“Os pichicegos” aborda a capacidade do ser humano de abandonar valores e ideais quando submetido a condições extremas
01/06/2008

É providencial que Os pichicegos — Malvinas: uma batalha subterrânea, de Rodolfo Fogwill, tenha chegado ao Brasil somente 25 anos após seu lançamento clandestino na Argentina. O romance é tão bom que merece uma leitura descontaminada do calor da guerra, o que seria impossível um quarto de século atrás.

Ainda que algumas cópias clandestinas também tenham circulado em nosso País na época da Guerra das Malvinas, o livro ficou distante das livrarias e de grande maioria dos leitores, o que podemos considerar um privilégio. Em 1982, ano da batalha, vivíamos, assim como os argentinos, sob o anseio do fim da ditadura militar, o que transformaria Os pichicegos em um libelo contra a guerra e contra os militares. Não que a função não lhe coubesse, mas o livro é muito mais que isso — Os pichicegos é puríssima boa literatura.

A maior qualidade do romance de Fogwill é justamente a sua isenção política, ainda que tenha sido escrito por um argentino, na Argentina, durante os últimos dias da guerra contra o Reino Unido pela posse das Ilhas Malvinas. Em nenhum momento de Os pichicegos há questionamento direto da guerra ou dos militares, mas Fogwill criou um relato ficcional tão forte que, indiretamente, o leitor é induzido a uma repulsa a qualquer guerra ou a qualquer ditadura belicosa.

Os pichicegos são um grupo de desertores do exército argentino, que trocam a guerra contra os britânicos pela luta pela sobrevivência no inverno congelado das Malvinas. A exemplo do pichi, animal similar ao tatu, eles criam um abrigo secreto subterrâneo, para escapar do frio e das patrulhas argentinas, que não perdoariam os desertores.

Os pichicegos só deixam ou retornam à toca à noite, para não serem flagrados. Para sobreviver, trocam favores com os ex-inimigos, traindo não apenas a pátria, mas também os soldados argentinos. Para receber alimentos, agasalhos ou pilhas para lanternas, eles fornecem aos britânicos a localização de alvos estratégicos que são destruídos pelos aviões ingleses.

No plano real, a trama de Os pichicegos caminha no sentido contrário a tudo que os generais argentinos sustentavam como justificativa para a guerra, como o nacionalismo, a soberania, o patriotismo, e é por razões óbvias que o livro foi proibido na Argentina.

Tradição
Na ficção, Os pichicegos faz jus às maiores tradições da literatura argentina, com sua fantasia, com sua narrativa seca e sem escrúpulos, com seu paralelismo à realidade. No livro, não há tempo nem espaço para um pichi ferido, que é abandonado à morte. Também não há comiseração dos pichis pelos soldados argentinos que serão vítimas das informações repassadas aos britânicos. Mas qual a diferença entre essas mortes e aquelas causadas pela ditadura argentina?

Esqueçamos os militares argentinos e as Malvinas. Os pichicegos é o melhor romance sobre a Guerra das Malvinas, sem ser sobre a Guerra das Malvinas. Os pichicegos é um livro sobre a capacidade do ser humano de abandonar valores e ideais quando submetido a condições que extrapolam qualquer estoicismo. A fome, o frio, o medo e a ameaça torturante da morte deram origem aos pichis, semi-homens, semi-animais, que tiveram que criar um mundo à parte para sobreviver, um mundo com um novo código de organização e de condutas.

Na guerra, o jargão militar chama o campo de batalha de teatro de operações. Os pichicegos vivem num teatro do absurdo. No espaço apertado e escuro do abrigo subterrâneo, resta aos pichicegos passar as horas conversando, enquanto aguardam o fim de uma guerra pela qual não lutam. São homens sem grandes afinidades, vindos de diferentes lugares da Argentina para um lugar que a Argentina quer para si, mas eles não entendem exatamente por quê. São diálogos banais, centrados na oralidade e não no significado. Com o uso acentuado da linguagem oral, Fogwill deixa que os personagens dêem seu testemunho, que revela cada vez mais a sua incompreensão sobre o que fazem naquela ilha.

Os pichicegos é um grande contraponto dentro de si mesmo. O homem é capaz de criar uma coisa tão estúpida como uma guerra e, ao mesmo tempo, hábil para criar um livro que tira todo o sentido da guerra. Obviamente, não se compara aqui Fogwill aos generais argentinos. Mas, no romance, talvez sem querer, foi o que o próprio Fogwill fez. Os generais argentinos, e outros tantos generais mundo afora, nos dão a guerra. Fogwill está entre os escritores que transformam o teatro de operações em teatro do absurdo.

Em tempo: os argentinos perderam a batalha de 40 dias, que teve mil mortos. As Malvinas continuam sob domínio inglês, com o nome de Falklands. A real existência dos pichicegos permanece um mistério, mas isso pouco importa. A literatura sobreviveu à guerra.

Os pichicegos — Malvinas: uma batalha subterrânea
Rodolfo Fogwill
Trad.: Maria Alzira Brum Lemos
Casa da Palavra
144 págs.
Rodolfo Fogwill
Nasceu em 1941, em Buenos Aires. Formado em filosofia pela Universidade de Buenos Aires, transita pela poesia, pela ficção e pelo ensaio. Escreveu Os pichicegos em 1982, durante a Guerra das Malvinas. O romance foi proibido na Argentina e circulou clandestinamente no Brasil e em outros países da América Latina. Atualmente, Fogwill colabora para jornais e revistas, como El País, La Voz del Interior e La Nouvelle Revue Française.
Paulo Krauss

É jornalista.

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