Contém uma boa história

Resenha de “Quiçá”, de Luisa Geisler
Luisa Geisler, autora de “Quiçá”
01/03/2013

Começou assim: alguém me disse que Antonio Prata era o melhor cronista brasileiro contemporâneo, o que me fez antecipar a leitura de Meio intelectual, meio de esquerda. Não tive o que desmentir: tinha até uma crônica muito bonita — O salto — que descobri ter sido publicada originalmente na revista Capricho. Em minha doce bolha de preconceito, acreditava que as leitoras da revista (notou o preconceito?; é como se dissesse “menino não lê isso”) se limitavam a avaliar seu colírio favorito (garoto bonito, gatinho, um pão) e a amar Justin Bieber. Que mundo estranho esse: literatura de qualidade pode se infiltrar em qualquer lugar.

Quiçá é o romance de estréia de Luisa Geisler. Ela foi colunista da Capricho.

Os protagonistas
Clarissa é uma menina de onze anos. Gordinha. Boa filha. Excelente estudante. Arthur é um jovem suicida fracassado. Bem magro. Rebelde. Um turista na sala de aula. Uma boa combinação: ela, quieta, sem amigos, se trancando no quarto-QG enquanto se desenrolam as festas dos pais publicitários; ele, atento, sem nada a perder, forçando uma abertura no casulo-bunker da prima e falando palavrão. Um ano de convivência na cidade grande, só para ele se esquecer um pouco da vontade de cortar os pulsos. Segundo Lorena, mãe de Clarissa, um ano de má influência para a filha.

Não dá para saber ao certo quem é o maior beneficiado, afinal: ele, ela ou o gato de estimação, Zazzles, que não tinha entrado na resenha.

Dualidade
Há algo de elegante na técnica narrativa utilizada por Luisa. Descobrir como ela funciona demanda algum tempo. Há uma dualidade nos capítulos que se alternam: os ímpares, começam e terminam com pequenos parágrafos relativos a um almoço em família na cidade interiorana de Distante, enquanto o “miolo” deles revela ao leitor o que ocorreu durante o sabático de Arthur em São Patrício — portanto, há outra dualidade, interna e eminentemente geográfica, em tais capítulos; os pares, nos lembram da quantidade de histórias que continuam a ocorrer pelo mundo enquanto suspendemos a descrença, mergulhamos num romance e convivemos por horas com personagens antes desconhecidos. Os capítulos pares são contos, fluxos de consciência, diálogos, entrevistas, citações literárias, entre outros olhares para uma realidade exterior à relação Arthur-Clarissa, o que pode gerar alguma controvérsia: há quem aprecie isto e quem creia ser algo ambicioso demais. Ou despropositado.

O fato é que alguns dos melhores momentos do romance se encontram nos capítulos pares. Outro fato: eles tornam a frase na quarta capa — “Um ano, um dia, a vida inteira, tanto faz: tudo acabará com a morte, a única verdade, a única certeza.” — bastante apropriada e sincera, não mero truque de marketing.

Potencializar
O livro não é sem defeitos, contudo. Creio que um processo de edição mais longo e cuidadoso — isto é, não pautado pela pressa em anunciar e publicar os vencedores do concurso literário — poderia potencializar a força da obra. Talvez isto seja o preparador de originais em mim falando mais alto, mas estou certo de que a coloquialidade do texto de Luisa talvez perca aquele leitor que demande citações bonitas e descontextualizáveis — pelo menos um “tudo vale a pena/ se a alma não é pequena” a cada parágrafo.

Frases como “Eu queria estar ali pro ataque epilético e pro trauma, pô” não dizem nada a quem não as leu em seus microcosmos (págs. 63 e 64); do contrário, sua força é inegável. Outro exemplo: o uso da linguagem publicitária e a escolha de nomes fantasia para restaurantes (“Pearwasp Neighborhood Grill and Bar”; “Big Daddy’s”) e cidades (“São Patrício”; “Distante” — esta fica entre a “Nordestina” de Adriana Falcão e a “Tão, Tão Distante” de Shrek) poderiam ser levados um pouco além e, assim, adquirirem o caráter de mantra — tal como na obra de Chuck Palahniuk, um dos escritores contemporâneos estadunidenses que, creio, mais usa o artifício. Mais e melhor.

Não é uma questão de corrigir, mas, sim, de potencializar. Mais ou menos como uma “televisão (Full HD, conexão à internet, com 3D, 52 polegadas)”.

Reviravolta
O livro termina com uma surpresa. Costumo ser um leitor mais atento, mas, decerto devido à fluidez da narrativa, não me preocupei em captar as pistas que me foram dadas. Pensando bem, a verdade é que tenho andado esquecido de algumas características romanescas tradicionais. A reviravolta é um exemplo: o leitor comum gosta, mas não vejo muitos livros contemporâneos brasileiros dispostos a utilizá-la sem ironia, mas como algo intrínseco à qualidade literária da obra. Michel Laub é uma clara exceção. Luisa parece seguir esse caminho.

Não, não vou revelar se Clarissa faz uma tatuagem no final do livro. Findei a leitura torcendo para que, no futuro, Clarissa decida fazer suas próprias festas e comprar, ela mesma, as flores.

Além da capa
Já vi muitos darem gostosas gargalhadas de luto pelos rumos da literatura nacional ao descobrirem que a escritora que ganhou duas vezes o prêmio SESC de Literatura escreve para a Capricho. Eu os julgo silenciosamente, tal qual um personagem do filme Magnólia. Penso em como muitos deles também são misóginos e não vêem qualidade alguma no que é escrito por um jovem — essas coisas são mais difíceis de serem admitidas publicamente. Por isso, talvez, destacam tanto a publicação da editora Abril.

Já imaginou quanta coisa boa você ignora por conta das capas multicoloridas? Desde que li Luisa, me assusto um pouco toda vez que passo por uma banca de revistas.

Quiçá
Luisa Geisler
Record
240 págs.
Luisa Geisler
Nasceu em Canoas (RS). Ex-colunista da revista Capricho, venceu o prêmio SESC de Literatura, na categoria Conto, em 2010, com o livro Contos de mentira. Em 2011, repetiu o feito, na categoria Romance, com Quiçá. Em 2012, foi a mais jovem selecionada da edição especial da Granta para “Os melhores jovens escritores brasileiros”.
Arthur Tertuliano

É escritor e mestrando em estudos literários pela UFPR. Escreve no blog O Leitor Comum.

Rascunho