Canalhice e afetação

Aventura de João do Rio no gênero epistolar mostrou-se repleta de lugares-comuns e sem reflexão
João do Rio por Fábio Abreu
01/05/2013

A correspondência de uma estação de cura, de João do Rio (pseudônimo de Paulo Barreto), obra publicada em 1918, pertence a um gênero praticamente desconhecido em nosso país, o das narrativas epistolares. Tratada como “romance” pela crítica, não passa, entretanto, de um conjunto de crônicas travestidas em cartas, o que fez surgir uma noveleta na qual, segundo Antonio Candido, “a felicidade do método é superior à relativa banalidade do tom e da visão de mundo”.

A história desse gênero pouco valorizado no Brasil confunde-se, na Inglaterra, com o surgimento do próprio romance. Quando o impressor Samuel Richardson aceitou, em 1739, a encomenda dos livreiros Rivington e Osborn de escrever um volume de cartas que servisse como modelo a leitores sem grande preparo para a escrita, não previa o resultado da sua concordância. A concepção da obra obrigou-o a elaborar contextos inusitados, a fim de diversificar os modelos e criar um manual o mais completo possível. Esses exercícios de estilo estimularam sua imaginação, a ponto de fazê-lo escrever o romance epistolar Pamela, que se tornou uma das obras mais influentes do século 18 (também produziria, seguindo o mesmo gênero, dois outros romances de sucesso: Clarissa e The history of Sir Charles Grandison).

A importância do romance persiste até hoje. O crítico Frank Kermode mostra, no ensaio Richardson and Fielding, que a prosa epistolar em geral e a obra de Richardson anteciparam questões colocadas, séculos mais tarde, por Joseph Conrad e Henry James, como a do desaparecimento do autor, pois a técnica de escrever por meio de cartas permite às personagens que falem com suas vozes características, sem a intermediação de narradores. Não por outro motivo, estudiosos consideram Richardson um dos criadores do romance psicológico, já que as cartas e o diário de Pamela apresentam os complexos sentimentos e reflexões de uma jovem de quinze anos.

O que foi grandioso nas mãos de um impressor inglês — e se aperfeiçoou com Rousseau (Julie ou la nouvelle Héloïse, 1761), Goethe (Os sofrimentos do jovem Werther, 1774), Chordelos de Laclos (As ligações perigosas, 1782) e Ugo Foscolo (Ultime lettere di Jacopo Ortis, 1802) — tornou-se, contudo, medíocre sob a pena de João do Rio.

Difamadores
As cartas que compõem A correspondência de uma estação de cura pertencem a diversos missivistas instalados em Poços de Caldas, famosa estância hidromineral na primeira metade do século 20. A elite carioca e paulista, impedida de ir à Europa pela Guerra de 1914, ocupa o melhor hotel do município mineiro e entrega-se aos divertimentos possíveis: jogatina, banhos sulfurosos, shows noturnos, cavalgadas — e mexericos, intrigas, a nobilíssima arte de falar mal uns dos outros.

De carta a carta, das fofocas irônicas do dândi Antero Pedreira às lamúrias de José Bento, misto de empresário artístico e reclamador profissional, passando pelas teses naturalistas do neurastênico Teodomiro Pacheco, os narradores repetem o mesmo exercício: caluniar e rir, à socapa, das pessoas com as quais convivem diariamente.

A confiar no que diz Lêdo Ivo na “Apresentação” de Cinematógrafo (Crônicas cariocas), o cronista conhecia bem a classe que descreveu:

o gordo e triunfante e bebedor de champagne João do Rio transitava nos salões mundanos e nas embaixadas, com os seus ternos de fazenda inglesa, o seu monóculo, e a sua frase cintilante. E, em grandes e demoradas viagens, respirava a brisa dos transatlânticos.

Além de, completa Ivo, posicionar-se “ostensivamente ao lado dos ricos e bem-nascidos” e cortejar “desembaraçadamente os comendadores portugueses que costumavam abastecer-lhe os bolsos sempre furados de dissipador incorrigível”.

Infiel ou não à classe que o sustentava, João do Rio alinhavou essas crônicas em que o exagero, as repetidas maledicências e o tom monocórdio da correspondência ativa dos difamadores destroem qualquer possibilidade de verossimilhança.

No que se refere à psicologia dos personagens, não há conflito entre o papel que desempenham em sociedade e o que realmente pensam, pois são incapazes de realizar qualquer mínima autoanálise. Com exceção de algumas das cartas de Teodomiro Pacheco e das escritas pela jovem Olga da Luz, o olhar dos narradores está sempre voltado aos supostos defeitos de outrem.

A obstinação para descrever casos frívolos concede à narrativa irrefreável tendência ao episódico, o que faz a noveleta se dissolver numa clara falta de unidade estrutural. A única trama curiosa, citada em algumas cartas, é a sedução da inocente Olga da Luz, dona de imensa fortuna, pelo imoral Olivério Gomes — e a tentativa, dos outros pretendentes, de atrapalhar o possível noivado, trazendo a Poços a amante de Olivério, uma prostituta. Tudo transcorre, no entanto, em clima de vaudeville.

Ou seja, se o tema é ordinário, o método, diferente do que argumentou Antonio Candido, mostra-se frouxo, debilitado. Mais razão tem Lúcia Miguel-Pereira (em Prosa de ficção), para quem o livrinho “nem chega a merecer o título de novela”.

Falsa elegância
Em meio à coleção de pedantismos e ao persistente tom de zombaria, surgem ilhas de curiosidade, como a carta do Capítulo XIII, na qual Teodomiro narra a história bem-humorada do caboclo que se alimenta apenas de café — um faquir do interior mineiro. No entanto, a maior parte dos capítulos pouco acrescenta para formar um eixo consistente.

O lugar-comum predomina, como no Capítulo XXXV, assinado pela casamenteira Maria de Albuquerque, em que João do Rio plagia, sem pudor, certo episódio de A dama das camélias. Além dos chavões, não faltam figuras melosas, pois os narradores escrevem mal; e se repetem, tamanha a semelhança de sentimentos ou, quem sabe, a falta de criatividade do autor: o luar tem a “doçura de lírios diluídos” numa carta de Antero Pedreira, que completa: “[…] Sobre as árvores, recamando as colinas, abrindo no espaço o êxtase azul da luz, ligando céu e terra no mesmo espasmo, o luar esplendia”; imagem que surge, sob o mesmo véu de preciosismo, na carta seguinte, assinada por Olga da Luz: “[…] Faz um esplêndido luar, desses luares que choram sobre a terra”.

O máximo de reflexão que essa manada de pulhas alcança — sem nunca revelar a menor chama de integridade — é dizer, num rompante:

[…] A esposa deve ser inteligentíssima sempre. As amantes pouco importa. Ça ne compte pas… Para que o amor não fosse uma cacetada seria preciso que as esposas fossem a tal ponto inteligentes que deixassem o ciúme para diversão das amantes estúpidas… […]

Dos ricos aos falidos, dos aristocratas aos sanguessugas, todos usam linguagem semelhante — nos discursos da elite há mais anglicismos e galicismos, recurso que o autor utiliza para demonstrar a elegância de certos personagens. E todos são vis, mesquinhos, afetados.

“Espuma inconsistente”
Na resposta que escreveu à crítica de Viriato Correia, em julho de 1918, João do Rio diz que

o romance em língua portuguesa, depois de Eça e de Aluísio de Azevedo […] chegou à indigência impossível de leitura. Total ausência de idéias, uma história qualquer dividida em capítulos e nesses capítulos o que eles chamam de observação natural. Coisas enfim que não interessam a ninguém.

E defendia — depois de afirmar que Machado de Assis era “autor de volumes que poderiam ter todos o título geral de Memórias” — a tese de que,

artisticamente, a individualidade é tudo. A individualidade começa pela técnica. Há mil modos de fazer uma jarra. Criar o seu modo e pôr-lhe o sangue das suas idéias é sempre fazer jarras mas de outra maneira.

Tais superficialidades demonstram como a avaliação errônea e a incompetência podem levar um escritor a resultados grosseiros.

Monteiro Lobato, nos comentários que fez sobre o livro — e que podem ser lidos no volume Crítica e outras notas —, aponta o “linguajar cambaio”, a “charrice” das “idéias simiescas” e a “pretensa elegância canalha”. Lúcia Miguel-Pereira classifica o texto do cronista como “espuma inconsistente”. Ambos estão certos. Errados são aqueles que elogiam tais coisas.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Valdomiro Silveira e Os caboclos.

João do Rio
João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto nasceu a 5 de agosto de 1880, no Rio de Janeiro, falecendo na mesma cidade, a 23 de junho de 1921. Ingressou muito jovem na imprensa carioca e pertenceu à redação de vários jornais, deixando vasta colaboração, ainda que efêmera, só parcialmente reunida em volume. Suas crônicas alcançaram grande popularidade — e livros como As religiões do Rio (1906) e A alma encantadora das ruas (1918) têm ainda valor documental. Como teatrólogo, teve grande êxito a sua peça A bela Madame Vargas. Pertenceu à Academia Brasileira de Letras.
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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