Caminhos tortuosos

Resenha do livro "Linha de sombra", de Lúcia Bettencourt
Lúcia Bettencourt, autora de “Linha de sombra”
01/12/2008

O que é linguagem inovadora? Uma linguagem capaz de refletir a complexidade existencial, a partir da fusão conteúdo/forma, com tal força e inventividade que não pode ser reproduzida ou imitada? Se a resposta dada é admissível, Linha de sombra, de Lúcia Bettencourt, não atinge o clímax da criação. Os contos apresentam diferenças significativas entre si; alguns de muita qualidade; outros, desprovidos de densidade e de inovação da linguagem.

Os textos da autora têm parentesco com outras linguagens contemporâneas, que retratam situações e personagens a partir de um olhar limitado pelos seus próprios valores. Olhar que detém a palavra e os canais para expressá-la, que busca a redenção em relação ao sofrimento do outro, ao tentar revelá-lo através da arte.

Apresento ao leitor, concisa análise de grande parte dos contos, focando aspectos relevantes que a leitura do livro poderá suscitar.

Ikebana é um dos textos mais harmônicos da coletânea; uma mulher que se movimenta, outra que a observa. As duas se observam, na verdade, mas a narradora observadora é quem traça interiores da outra e de si mesma, numa delicadeza que é a própria narrativa, o contexto, a linguagem.

A predadora é outro conto bastante forte que introduz no mundo machista, de forma surpreendente, uma mulher sexualmente devoradora, em contexto um tanto quanto inesperado. A linguagem, embora, em alguns momentos, fique prejudicada pelo lugar-comum, opera-se com ritmo e imagens combinados, resultando um texto harmônico, com finalização excepcional.

Circo erótico é um conto inteligente e lascivo. Um homem que adentra um prostíbulo onde as mulheres são personagens de romances.

O noivado (um noivo ameaçado pelo rival, rouba para agradar a noiva e em seguida é roubado) expõe a vontade de transgredir, a vontade de mostrar o degradante, mas não atinge o propósito; não há densidade textual; os personagens não provocam com suas feiúras.

Em Ceia de Natal, a autora pincela personagens e situações com um olhar que valora a felicidade a partir de certos rituais e consumos da classe média; esquece-se, porém, de que as raízes de seus modelos estão fincadas em contextos sociais, históricos e culturais próprios.

Depoimento apresenta uma sucessão de acontecimentos sem atrativos. Um depoimento sem vida, como se a depoente mentisse; como se estivesse com pressa de acabar sua mentira. Mais uma vez o enredo é prejudicado pela ausência de densidade textual.

Do texto A carta, pode-se depreender a angústia do personagem, ainda que o mote para a criação do drama soe inconsistente: uma carta que não será aberta porque o personagem já conhece seu conteúdo condenatório.

O ovo é um belo conto, mas contém traços de puritanismo que o empobrecem. A menina leva o ovo para a empregada fritar. Carregar na concha da mão o “mistério” provoca nela emoções distintas.

Insônia e Medeia remetem literalmente aos textos clássicos Missa do Galo, de Machado de Assis, e Medéia, de Eurípedes. É um tipo de iniciativa muito arriscada. A autora não consegue a transfiguração do original em um texto novo.

Em Hemodiálise, a protagonista viaja para seu interior, sua origem, ao mesmo tempo em que recebe o tratamento da máquina. É um dor que se transmite.

Linha de sombra é parte de um caminho que a autora trilha em busca da originalidade. Percebem-se a força e a coragem para quebrar e reconstruir linguagens; ainda que tais elementos não resultem, necessariamente, em obra-prima. Os elementos tempo e insistência também são fundamentos na construção e reconstrução estética.

Linha de sombra
Lúcia Bettencourt
Record
112 págs.
Cida Sepulveda

É escritora e professora. Autora de Coração marginal, entre outros.

Rascunho