Amsterdã ou Amsterdam

Conto de Neuza Paranhos
01/08/2008

Eram gatos tão velhos que sofriam de antiguidade. A anciã-mor do Sião tinha vindo ao mundo em 1976, os três machos lhes ficavam devendo uns invernos. Você, que sempre gostou de gatos, não lhes cresceu afeto, nem eles fizeram questão, bem postos na dignidade de suas patas arqueadas. Faltavam dentes com que mastigar e Pieter os alimentava com uma papa verde-orgânica que deixava você com asco. Você nunca viu Pieter encher as tigelas, ao lado da geladeira. Quando chegava ao apartamento, no fim do dia, elas estavam parcialmente comidas. De manhã, quando acordava, podia ver da cama as tigelas vazias. E os anciões encolhidos no sofá de veludo bordô, ciscando os olhos recobertos por uma película esbranquiçada. De tão velhos, não reagiam conforme você deixava a cama espantando sonhos, abria a mala e tirava o nécessaire, encardia as meias até o banheiro. Enquanto escovava os dentes, dava falta de chuveiro. Para tomar banho, havia um ritual constrangedor a cumprir, que consistia em aparecer as seis no apartamento ao lado, onde morava Daniele, mulher de Pieter. Os gatos não podiam ver, mas pressentiam sua boca cheia de espuma e torciam para que você morresse logo e os aliviasse de suas malas e andanças. E você andava. Como você andava! Se adiante alguém perguntasse o que tinha feito em Amsterdã, responderia: andei. Você seguia as ruas de canais pacíficos e ia fazendo parte da paisagem. Na mochila, um caderninho para quando faltasse conversa. Você conversava consigo que Amsterdã queria dizer “dama de Amstel”, uma dama que sonhava em água corrente. Você pausava num banco à beira do canal, a copada fresca em chiaroscuro, e esperava ver a dama sonhar antigo. Não aparecia dama nenhuma porque Amsterdã ou Amsterdam tem outros significados, foz bifurcada do rio Amstel ou coisa assim. Daí você seguia pelas vias concêntricas, de sabê-las assim por conta dos mapas. Uma prece de olhos fechados vez por outra, para que o deus do acaso orientasse melhor que os panfletos turísticos colecionados no fundo da mochila. Uma vez, ao abri-los, estava diante de uma pessoa. Corpse, não convinha dizer. A brancura e a magreza da criatura destacavam olhos de um azul quase branco, as pupilas sumidas. Ela ergueu o braço emperrado e articulou o maxilar com dificuldade. Money. Você não achou boa idéia abrir a mochila que continha a carteira, como se estivesse no guichê do Rijksmuseum. E lembrou de uns trocados no bolso do vestido. Estendeu a Corpse, que os tomou com uma agilidade que afogaria em despeito os anciões da Elizabethstraat. Então, indecisa entre seguir ou girar nos calcanhares, Corpse optou por ir em frente, sabe-se lá com que idéia. Você ficou uns instantes olhando, depois fechou os olhos. Tornou a abri-los e ela ainda não tinha sumido na esquina. Repetiu o esconjuro e a amsteldama jazia no leito de águas correntes.

Você chegou em casa pouco antes das oito, sem direito a banho, se arrastou pela escada até a sobreloja e entrou direto no apartamento de Pieter. Os anciões estavam aninhados na cama de ricas cobertas imundas, como se Pieter fosse um rei medieval de higiene escassa. Pieter era um hippie velho com idéias sobre hospitalidade que diferiam das de Danielle, sua jovem esposa. Você tocou os cachimbos alinhados na estante de livros empoeirados e escutou um diálogo gótico no apartamento ao lado. Por que raios uma menina de hábitos burgueses se encanta com um hippie pobre, confuso, vinte anos mais velho? Dono de um apartamento sujo, habitado por gatos antiqüíssimos? Havia uma janela de vidraças ao lado da estante que dava para a superfície de um poço interno que se erguia por mais dois andares. Do outro lado, a janela de Danielle. Pieter usava essa via para transitar entre os apartamentos. Danielle nunca visitava o apartamento de Pieter, para seu alívio. E Pieter só aparecia quando você não estava, para alimentar os Anciões do Sião. Havia coisas sobre o amor que você não entendia.

O clima tinha desistido de estar tão formoso e ruminava vento frio e garoa, de um jeito a lhe fazer mal. Você abiu a geladeira e deu com uma cabeça de alho. Tirou um gomo e engoliu sem mastigar, para espantar resfriado. Talvez fosse tarde demais, que seu corpo reclamava nas juntas o tanto de andanças. E pedia cama. Você tomaria um copo de leite morno pensando em C, mas não tinha ânimo de nada, muito menos descer até o café da esquina. Olhou os anciões e pensou na melhor forma de espantá-los do leito. Bateu com as tigelas semicomidas umas nas outras, apetitosamente, mas eles não se moveram, velhos e sábios que eram. Ficou cismando um pouco, e concluiu igualmente ruim dividir a cama com as criaturas ou dormir no sofá. Irritada, se lançou na cama em bote de onça amazônica, braços arqueados felinos. A anciã-mor soltou lá seu bafinho enfado. Só. Então você bateu com força os punhos no colchão e puxou as cobertas com violência. Eles fugiram e foi a primeira vez que você anotou como eram tortos, já que quase sempre estavam dormitando sobre as patas encolhidas. E sentiu um prazer que se confundia com piedade.

Cruzes, como sou má, pensou, sem saber que isso diminuiria conforme o tempo lhe roesse os instintos. No fim, caso você descendesse da mesma estirpe dos gatos, teria que se conformar em sonhar com a morte. Feito sua avó de olhos azuis embotados, tão feliz a avó, a lhe dizer eu gosto da vida, eu gosto.

E os siameses sequer se moviam, nada, conforme os camundongos riscavam ponta-a-ponta o quarto e sala sem chuveiro de Pieter. Mas de repente foram obrigados a fugir dos seus trovões. Você, uma criatura vinda de distantes plagas só para lhes infernizar a vida e privar dos cheirosos edredons de Pieter, que para despertar o olfato dos velhos siameses, o cheiro deveria ser acre, encorpado feito um vinho de safra. Você duvidou uns instantes se conseguiria dormir ali mais uma noite, e notou uma placa de pelagem caindo da anciã-mor, na região lombar, perto do rabo. E se perguntou se havia ficado ali um pedaço de carne viva ou o quê. Ela errou o salto em direção ao sofá e estatelou no tapete persa. Reclamou o fiasco num miado grosso de siamês frustrado, um miado feio de horroroso. Faltou xingar a porca vida que persistia débil num bicho doente de antiguidade. Ainda mais que os outros não tinham errado o salto e estavam nem aí, de bundas juntas para espantar o frio.

Tinha uma divisória sanfonada separando quarto e sala. Com um certo esforço de trilhos e relinchos você conseguiu fechar. Estava meio emperrada, denotava que Pieter não tinha o hábito. E os siameses, naquele apartamento, dormiam onde lhes aprouvesse. Quando o frio apertava, seus bafinhos queriam a cama morna. Você realmente não queria nem saber se eles tinham reumatismo. O aquecimento na sala já não gemia quenturas suficientes no encanamento povoado de fantasmas? Que se fizessem companhia, uns mortos, outros quase. O que aquelas múmias holandesas poderiam querer consigo, você se culpava, enquanto procurava no fundo da mochila a garrafinha para lhe salvar a noite. Um frasco abaulado de Baileys comprado no freeshop em Heathrow, o licor podre de doce na goela, uma delícia. E para cúmulo dos cúmulos, uma voz gótica cheia de ahrs e ohrs anunciou Billie Holliday no seu walkman-rádio-toca-fita, o mesmo que em Londres despertava curiosidade nos moços bonitos do metrô. De onde mesmo você tinha inventado esse walkman pré-histórico?

Uns goles de Baileys e você achando tudo engraçado. Sua sorte era não possuir muita resistência para drogas, qualquer tipo de droga, pensou enquanto se lembrava da criatura querendo seu money à beira do canal da Amsteldama. E das seringas espatifadas em vidrinhos coriscos na manhã do parque Vondel. Os zumbis que se erguiam dentre as moitas floridas conforme o sol esquentava. E você indecisa em saber se aquilo representava perigo ou se tomava sol pelada. As européias de cabeça raspada tinham abandonado os cabelões por conta do feminismo e da praticidade. Você mal conseguia ponderar se era bom ou ruim ser antiguidade, ainda que rara. No quarto de Pieter, na Elisabethstraat, Billie Holiday, uma camélia branca espetada nos cabelos, acompanhava sua febre. 

I wished on the moon
For something I never knew
Wished on the moon
For more than I ever knew

Você guiou os dedos indicador e médio da mão direita e seu corpo espasmou umas vezes. Você usou os mesmos dedos para delinear gueixas concupiscentes na cúpula do abajur. Quando estava perto de dormir, os anciões se pegaram numa briga medonha de miados góticos. Você se encolheu nas cobertas de fedor e cerrou os olhos com força.

A manhã seguinte aromatizava um cheiro bom de estrebaria em um pedacinho do edredom a lhe encantar as narinas. A divisória sanfonada estava fechada e não havia sinal audível dos anciões. Você virou o corpo em direção à janela para entender o tempo ruim e a manhã adiantada. Testou a garganta e com satisfação percebeu o alho realmente eficaz. O rangido da janela da sala anunciou Pieter. Ele foi reparando que não via sua cara havia dias e você explicou que estava se divertindo horrores em Amsterdã. Em seguida, dedurou a briga de gatos. Pieter passou-lhes um pito de ahrs e ohrs, as nucas sujeitas, as garras contidas, cada qual sua vez. Eles se entregavam com deleite, piscando os olhinhos siameses em meneios de filhote. Depois, convidou: almoço em 12 minutos. Você foi lá em dez minutos e ficou fazendo hora antes de bater na porta. Pieter abriu. Havia um relógio na cozinha, você estava atrasada cinco minutos, de acordo com o relógio deles. A televisão estava ligada num programa em que três holandeses gordinhos, de meia idade — dois homens e uma mulher — se agitavam na dança mais hilariante que você já tinha visto em toda a sua vida. Mas você se eximiu de rir porque Danielle assistia com expressão neutra, como se fosse o canal de notícias da BBC. Danielle desligou o aparelho, mostrou o seu lugar à mesa e ocupou o dela, em frente. Pieter apareceu com purê de batatas e brócolis cozidos. Salada de cenoura e rabanetes. E ele também se acomodou e serviu purê de batatas no seu prato. A comida estava saborosa, você reconhecia, apesar de sentir falta de um prato principal, como se houvesse um frango escondido no forno. O almoço seguia sem assuntos palpitantes. Você contou que tinha percorrido algumas ruas de canais bonitos e que tinha pegado um resfriado por conta do tempo. E lembrou de dizer que tinha comido um dente de alho pra espantar resfriado. Pieter não entendeu direito, que ele era tão ruim de inglês quanto você. Danielle traduziu she stole your garlic, que você tinha roubado o alho de Pieter. Uma colherada de purê desceu robusta pela sua garganta e você passou a desejar o fim daquele almoço.

Mais um dia sem banho, arhs, orhs. Você voltou ao apartamento de origem e improvisou uma higiene fria. Vestiu o que de mais quente havia em sua mochila, e não bastava, teria que enfrentar o vento gelado das ruas concêntricas de canais escuros onde jazia Corpse, a Amsteldama. A anciã-mor ciscou enfado de olhos baços. Caso fosse uma tigresa, lhe comeria com prazer. Em vez, era o tempo a lhe devorar as carnes. O espelho oxidado sobre a cômoda refletia vocês duas no quarto de Pieter, denotava um quadro do Rijksmuseum. A cama de grossas cobertas malcheirosas, as tralhas garimpadas em lojas de segunda mão, a poeira inventariando o tempo: uma guerra, outra guerra, uma família escondida no armário, um cachimbo de haxixe, uma moça ciosa de bugalhos. Havia coisas sobre o amor que você não sabia.

Neuza Paranhos

É escritora, jornalista e estudante de Biblioteconomia na Universidade de São Paulo. Publicou a coletânea de contos Av. Marginal pela Editora ComArte e trabalhos no mesmo gênero na revista Cult, na versão eletrônica de Le Monde Diplomatique Brasil e em outros periódicos on-line.

Rascunho