Ainda é possível pensar em ética na tradução?

Não vivemos mais a era dos grandes embates entre as teorias de tradução
01/12/2008

Não vivemos mais a era dos grandes embates entre as teorias de tradução. Não há mais escolas literárias, não há mais escolas tradutórias (embora, por outro lado, vivamos a época das escolas de literatura, das escolas de tradução). Ninguém mais de filia, filiar-se é perigoso — comprometer-se é perigoso. Se posso apostar na indefinição, e correr para o lado oposto quando me é conveniente, por que não fazê-lo? Corto com o gume mais afiado o flanco mais tenro do texto. Traduzo como quem retalha, dividindo para dominar não só essa tendência bravia e indomável do texto, em sua ânsia de proliferação, mas também leitores, editores e, principalmente, outros tradutores (críticos mais sedentos).

Não tenho tempo a perder. Ajo como procurador dos futuros leitores — que serão meus (nos meus sonhos, ao menos), e não do velho autor do original. O velho autor quero matar a pau e pedra, soterrá-lo sob o peso de sua própria erudição (que o torna impenetrável, e, para mim, invejável) — escondê-lo atrás de minha grande obra, que construí sobre escombros de letras trocadas, palavras esquivas, construções sintáticas canhestras. Construí com esses e outros lixos que garimpei no texto dele e nos textos de outros.

Os leitores serão meus — e deles não abro mão. Os direitos autorais também serão meus (se a editora não me fizer entregá-los a preço vil). Ajo como usurpador. Tomo o lugar do autor, sem escrúpulos, sem remorso. Torço para que não me apanhem em pequenas infidelidades (é que a preguiça às vezes me alcança e me domina, e o faz de forma tão irresistível que nem esboço reação).

Me imagino como uma espécie de Esdras, interpretando, entre pio e concentrado, textos sagrados para a plebe ignara. Suprema autoridade, mais alta que a dos reis da Pérsia, imbuído de toda a soberba que me insufla o conhecimento de arcanos inacessíveis.

Afronto puristas violentando o vernáculo com subversões as mais escandalosas. Que me inspiram as engenhosas sintaxes estrangeiras, me atiçam a veia agitadora que em mim andava latente. Digiro páginas e páginas; vomito só o sumo azedo do texto traduzido. Me embrenho no texto do outro, no texto da outra língua, para buscar ali inspiração para trair. Às favas com a fidelidade. Não sou fiel nem ao leitor nem ao autor nem a nenhum original. Uso todos eles para produzir um texto que será meu.

Não sonho mais. Agora faço, traduzo como quem escreve um texto novo, quase do zero, quase que só sob influxo de musas dissolutas. Elas não querem mais o texto do autor, se cansaram deles dois. Querem o novo, fomentar o novo, como eu. Ler bem, não leio. Não confesso que li. Não admito plágio publicamente, mas é quase plágio o que faço. Traduzo como quem rouba textos, pedaços de textos de vários autores, desses que há aos montes na internet. Não preciso abrir um livro sequer. Tudo está na rede; dispenso essas pilhas insalubres de livros poeirentos.

Sou espécie de estraga-textos. O que cai na minha mão não sai ileso. O que sai da minha pena passa por um crivo distorcido, lente embaçada em que vige o vício. Não viverá o viço de um texto vibrante. Domestico, pasteurizo. Vinga a massa pastosa de um texto insosso — que certamente agradará massa igualmente pastosa de leitores. Não antevejo um futuro para a tradução, para a minha tradução. Deixo tudo para trás. Que venha substituir-me a máquina de traduzir. Essa sim saberá fazê-lo, muito melhor que eu, muito melhor que nós.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho