“Abril em Paris” (2)

Do que eu menos estava precisando? De escuridão, minha cara. Bastava de escuridão na vida
01/05/2011

Vamos começar, outra vez.

Luiza na sala, ainda acordada, com uma garrafa de vinho — não de uísque, repito — pela metade, cantarolando? Penso se não imaginei isso, mas ouço o refrão, de novo: estamos sob a luz espalhada, no meio da vida de qualquer modo cinzenta, se você pensa na vida das pessoas satisfeitas com lojas e cotações da bolsa, coisas parecidas com o cinzento que não era Paris — para ela.

Estou falando disso porque tem a ver, no final tem a ver — mesmo que não fosse nisso que eu estava pensando, ao entrar e acender a luz, tudo que já foi dito ou visto como um rolo de filme voltando, numa mesa de montagem de três rolos de cenas cotidianas de um final de noite/começo de madrugada.

A mulher, sozinha, recordando uma canção famosa, meio cansada do expediente no comando das lojas que “você, meu amorzinho, vai herdar, algum dia” (ela enfatizava, e eu detestava a idéia, só a idéia já me retesava, em rejeição, recusa)…

Nos meus dezoito anos, fora posta a mesa ao lado da sala da diretora-presidente, já sabem — ou, se eu não disse, está dito (tudo precisa ser dito, nesta noite especialmente). E um verdadeiro “enxoval” de executivo havia sido comprado para o rapaz mimado, assim como uma garrafa do melhor champanhe fora aberta na noite da segunda-feira da minha triunfal-chegada-hesitante ao domínio Brentano.

Um mês depois, as gavetas ainda esperavam por meus papéis ali se acumulando, postos pela minha mão de “assessor especial” da dona, a doutora (de quê?) Luiza cheia de recriminações noturnas, meias-chantagens e até um ensaio de choro que não lograra me afastar do alistamento na Aeronáutica, longe de lojas herdadas e salas de “assessoria” descortinando a São Paulo ativa diante dos olhos do jovem assessor sem ter o que diabo assessorar ou fazer numa cadeia de lojas indo muito bem, obrigado.

Estou parecendo não sóbrio, alterado, e, realmente, eu não estava no meu natural um tanto abúlico, ao entrar. Sou aquele sujeito não por acaso chamado de “aéreo”, como se, de propósito, nascido para as nuvens, para as alturas dos aviões que eu não sei pilotar. Somente os vejo decolando, desde a vidraça da minha sala na ala burocrática do Controle, ou então aterrissando como aqui vim ter, na sala de Luiza longe de Paris, perto de mim e próxima de receber a notícia como uma bola murcha que quebra o vaso feio da mamãe. “Ainda bem.” (Para ser justo, é necessário que eu diga que a minha colação no aeroporto foi conseguida com a intervenção de um coronel aviador amigo da família, quer dizer, amigo de Luiza, ou mais do que isso: um enamorado dela, que nunca conseguiu mais do que receber cartões de Natal de agradecimento pelos votos recebidos. E o idiota já veio conversar sobre ela comigo, com o tom respeitoso de um oficial educado que não sabe nada da vida, não adivinha onde pisa, nem sabe o quanto esteve próximo de ser esbofeteado pelo insubordinado de plantão, ouvindo a sua confissão — sempre respeitosa — de amor não-correspondido etc.).

“Será sempre abril no meu coração, minha doçura. E não haverá mais lugar para ninguém, querido.”

Neste maio-meio-abril, então, eis que estou aqui, mais ou menos pronto para dar a boa nova à mi madre ainda mais bonita com o cabelo curto, bebendo, solitariamente, sob a luz apagada — que eu acendi com a mão gelada.

“Apague, seu bobão.”

Não apaguei. Do que eu menos estava precisando? De escuridão, minha cara. Bastava de escuridão na vida. E perguntei o óbvio:

“Ainda acordada, dona Lu?”…

Não se deu ao trabalho de responder. Os olhos redondos, brilhando como fios molhados numa estrada. Pensar nessas coisas me atrapalhava: estradas molhadas, poesia, música, óperas cantaroladas no carro (ela dirigindo de luva, preocupada com as placas de cidadezinhas do caminho para Nantes, o vento sobre seus cabelos mais longos, naquela época. Eu tinha quinze anos. Sempre terei quinze anos. E ela sempre terá a idade daquele abril.).

“Vou repetir: você fica lindo com essa farda.”

Sorri, agradeci. LuIza havia me ensinado a agradecer elogios (o sorriso era meio torcido, contudo). E o meu peito sem medalhas estava um pouco úmido, porque eu ficara no jardim, depois de sair da garagem, pensando que ela estivesse dormindo, a sala apagada.

“Você está molhado?”

“Você está bebendo?”

A cabeça de novo cabelo curto fez que “sim”. Eu passei a mão no ombro: molhado, sim (como eu sabia).

Sabia, também: ela, Luiza-Enérgica-Brentano, não me deixaria assim. Peitos molhados resfriam sujeitos magoados: Lu ficou de joelhos no sofá, a fim de alcançar o dólmã (a mão com o copo chamando-me para avançar), balançando a cabeça com a censura fingida de quem diz “está aí, parado, molhado!, vem aqui pra tirar”…

Era uma mulher de mãos decididas e hábeis. As unhas bem feitas não se quebravam.

Meu peito molhado-magoado poderia ficar resfriado. Então, farda fora, garoto travesso, menino molhado. Mas eu quebrava a cabeça para encontrar o melhor jeito de começar a frase: “Nós terminamos”…

“Ajude a tirar, tenente, se não quiser pegar um resfriado.”

Luiza ouvia quando queria ouvir. Agora estava atarefada, livrando-me da roupa por um braço, e ao mesmo tempo com o copo — que me atraiu. Peguei na sua mão, tomei um gole do vinho amornado talvez pela palma quente, pelos dedos de unhas quase da cor da leve mancha de batom no cristal de boa qualidade (o vinho, gelado, estaria melhor). Só depois que engoli, soltei o verbo, o nome-chave, a frase articulada, o fim anunciado:

“Terminei com Diana. Acabamos.”

Ela não estava bêbada — mas não entendeu. De imediato, não entendeu. Tomou também um gole com a mão livre, daquele mesmo lugar manchado de batom sobre o qual eu acabava de tomar do seu vinho, o gosto da cor das unhas (era um vinho doce), o “acabamos” solto no ar como um balão sobrado de uma festa de aniversário da qual ninguém houvesse se lembrado.

“Acabamos. Diana e eu. Terminamos, esta noite.”

Então, ela entendeu o que já havia entendido — talvez desde quando eu acendera a luz sobre a sua cabeça virada para a porta (Luiza adivinhava pensamentos e fomes).

“Você e Diana?…”

Eu, por ironia, a imitei (mal), no cantarolar de lembranças de amantes que se separam etc., april in Paris enchendo o saco.

Ela não pôde disfarçar o começo de uma recepção alegre da coisa sendo percebida como o que era: o fim do noivado, o adeus a uma nora (uma outra coisa que ela queria, no meio do que desejava com força — e conseguia. Sempre conseguia).

Fui vulgar, em resposta:

“Você tem mais uma razão para comemorar…”

Queria ser engraçado? Não era engraçado. Ela não gostava de Diana. Estivera bebendo, como se afastasse (ou convocasse) uma lembrança, antes de chegar o filho apanhado no jardim da hesitação, depois de olhar para a rua e não entrar, hesitante, com a chave na mão.

Ao vê-la, na sala (que era a cara da senhora proprietária), sabia o que eu seria: o portador da boa nova resvalando pela superfície recém-iluminada dos quadros que Luiza Brentano adquirira de alunos de paisagens do Sena, ao longo das margens de coisas boas e más — ela comprava de ambas —, sendo que havia também um retrato seu, meio na pose de Laura, a mão ao longo do vestido de noite do qual me lembrava (o da noite da Ópera), ela o tirando tão lentamente que eu pudera observar os gestos precisos, a forma como as roupas apertam uma mulher embelezada, pronta para uma festa da qual pretende voltar com a certeza de ter sido notada. “Está me olhando?”

A tela era vista logo da entrada, caso estivesse acesa a luz — como agora estava. Sei que estou me repetindo, porém é difícil prosseguir sobre coisas tão menores e tão maiores que você não sabe como escolher, começar e seguir narrando, numa noite sem novidades — uma noite sem novidades? —, nesta casa onde a luz se acendeu sobre um retrato.

Mais do que isso. A escuridão entrou com a minha farda molhada, vinda da umidade das voltas de carro, depois da briga com Diana Senna (Paris, again, o Senna com dois “n” correndo no bólido das associações vertiginosas entre filmes e passados, presentes e carros vagueando em busca de explicação para coisas às margens de rios poluídos e limpos).

Pensava nisso tudo? Pensava nela (em Diana), não em Luiza — que eu julgava na cama, lendo algum livro que me convidaria para ler, caso gostasse, ou vendo algum filme que também me convidaria para assistir, de novo, na intimidade do quarto feminino em todos os detalhes.

Na verdade, o que eu estava aguardando era a pergunta, sem piano e sem música: “vocês acabaram mesmo?”…

Ela, porém, não perguntou (para, talvez, ouvir como resposta indisposta: “é isso mesmo, acabamos, e sei que eu dei um baita passo errado”).

“Que horas são?” — foi isso, entretanto, o que Luiza indagou, já quase terminando de me livrar do dólmã. Olhei para o relógio atrás dela, ela também olhou, sorrimos:

“Vai, deixa eu tirar isso de vez, vai.”

Fiquei ali, pouco ajudando — exceto na garrafa. Gosto de vinhos frios, mas voltei a engolir daquele, enquanto ela forçava minha ajuda, os braços bronzeados (em casa) debaixo daquele tailleur seco, de falsa magra. Era vaidosa, e comprava os melhores equipamentos de ginástica, assim como se expunha ao sol artificial, como uma naturista à beira da piscina. Já fizera duas plásticas (“diga a verdade: eu estou precisando da terceira?”).

Terminou de arrancar o dólmã, com um olhar avaliador: “Você está precisando cortar o cabelo. Por que terminaram?”

Agora, sim, era eu próprio cantarolando para não responder sobre aquilo: “April in Paris, this is a feeling/ That no one can ever reprise”…

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho