A vida depois do livro

As exigências da literatura extrapolam (e muito) o racionalismo cotidiano
01/12/2008

Em um dia de verão, um escritor foi encontrado morto em sua casa, de casaco e luvas, boina e botas, como se, em vez de se vestir para o dia seguinte, ele houvesse inconscientemente se vestido para o dia de sua morte. E, por isso, sabia de alguma forma que apesar do sol aqui deste lado o que o esperava do outro era arrepiante, úmido e frio.

Na noite anterior, o escritor retornara pela primeira vez, desde que tinha dado o ponto final, ao livro que acabara de escrever, sem saber que aquela vez, além de primeira, era também a última. Se soubesse, talvez entendesse a sua necessidade urgente de lê-lo, a ponto de se levantar da cama, acender luz e computador, imprimir páginas, esperando impacientemente a tinta preencher o papel. Tampouco percebeu depois, com o livro na mão, que os seus dedos o tocavam com a saudade de uma vida inteira, como se se despedissem. Conscientes talvez de que era a última vez que tocavam naquelas frases e palavras, tão suas — íntimas, como é íntimo o corpo de quem se ama.

Nos últimos meses, ele havia se afastado do livro, na intenção de criar distâncias, para enfim voltar como quem retorna para casa após longa ausência. Mas o que sentia era maior do que rever as paredes onde se mora, a mesa onde se escreve e a cama onde se sonha. Havia se afastado tanto do texto, que o olhava aflito, como quem procura no rosto de um antigo amante o rastro do que um dia lhe pertenceu, os traços que reconhecia pelo tato, o percurso que se fazia de olhos fechados. Só então se deu conta de que havia imprimido duzentas páginas, não para revisá-las, mas, apenas e exclusivamente, para abraçá-las. Depois de tanta ausência, tinha a necessidade de confirmar de que existiam realmente e não eram apenas uma imagem na tela de seu computador.

O escritor então começou a revirar as páginas, pensando nos anos que havia levado para escrever aquele livro. Dias infinitos sentado diante do computador, o peso do mundo sobre os ombros, o caos que rege toda a vida ao redor, espirais de delícias e angústias, enquanto nos intervalos vivia a mesma vida de todos. Essa, próxima ao sonho e ao pesadelo, que nos acontece entre o acordar e o dormir. A cada página revirada, procurava a sua própria história atrás da que estava visível no papel. Esta frase foi escrita em qual circunstância?, se perguntava, quando escrevi este capítulo, o que estava acontecendo em minha vida? E a pergunta já se tornava uma angústia: quando saía de frente do livro, para onde eu ia, afinal?

Mas não encontrou, no papel, nada além do que estava escrito. Nada mais do que uma história que não era a sua. Nesse momento, notou que um vento entrava pela janela, e sentiu frio. Vestiu um casaco, pousando o livro impresso na mesa, com o espanto inevitável de que tudo aquilo não lhe pertencia mais. As mãos tremeram, e ele pôs uma luva, guardando a certeza, como se guarda um segredo, de que, na verdade, por mais que não parecessem, todas aquelas páginas não saíram de outro lugar a não ser dele mesmo. E não sabia disso por uma constatação racional, mas por um vazio incrível no corpo — como deve sentir o ventre da mãe ao expelir o filho —, por uma neblina qualquer na alma — como se turva o espírito de quem busca a luz, consciente que se torna da escuridão —, por um soco qualquer no estômago — como se o desprendimento agredisse o centro de tudo —, uma alegria qualquer por outras vidas — aquelas que existem, as escritas —, uma saudade qualquer de papel e caneta, um deserto absurdo de sentidos e palavras, uma urgência única de pertencer de novo.

Aprendizado constante
Escrever, para aquele homem, tinha sido um aprendizado constante. De como sobreviver aos dias inférteis, descobrir caminhos narrativos desconhecidos, sentir os personagens crescendo e aparecendo mais do que o planejado, ver a história tomando forma própria, estabelecendo atmosferas e texturas que lhe exigiram um envolvimento íntimo, uma carga pessoal em uma história passada em outra época, com situações, motivações e sentimentos que a princípio nada tinham a ver com ele. Mas — e nesse momento outro frio invadiu a sala —, como a convivência nos revela — e foi necessário aplacar a friagem da cabeça com uma boina —, somos, até com a gente mesmo, tão íntimos e estranhos. Após o ponto final, depois de anos de convívio com os personagens, com aquele universo particular, erguido à força dos próprios dedos, ele descobriu ofegante que escrever também podia ser, ou só era, essa amálgama de ficção e experiência, confluências e imaginação, confissão disfarçada e entendimentos enfim realizados. Independentemente da história que se conta, da aparente relação (ou não) com o mundo real, a ficção é mais rica do que imagina as referências pessoais, é mais exigente do que se pensa, não se contenta com afinidades, identificações, ou desejos criativos formais e racionalizados, ela se alimenta do que nem podemos desconfiar. Ela arruma a sua forma própria de acontecer. Nesse momento, o homem sentiu a umidade sob os pés, que lhe fez procurar meias e calçar botas, enquanto pensava, é a ficção que penetra em nossa sensibilidade, em nossa memória, em nossos afetos, e não ao contrário. Não a invadimos, é ela que nos invade. E repleto de casaco e luvas, boina e botas, concluiu, que bom que compreendi isso a tempo, e não tarde demais.

Na manhã seguinte, o encontraram deitado e imóvel em sua casa. A primeira providência foi tirar o casaco e as luvas, a boina e as botas, na incompreensão daquelas roupas de inverno em pleno verão. Compreenderam menos ainda quando o tocaram e sentiram a pele quente, a ponto de alguém encostar o ouvido no peito para confirmar a inexistência da respiração e de um coração batendo. Ainda assim, depois da confirmação, cogitaram a possibilidade de catalepsia, a doença que traz a aparência transitória da morte para a pessoa viva. A dúvida era tão grande que adiaram velório e enterro, na expectativa de a morte ser apenas uma aparência naquele homem que conservava no corpo a lembrança morna da vida. Dias depois, precisaram voltar para os próprios afazeres, e providenciaram abalados caixão e cemitério. O livro impresso foi também encontrado na casa, levado por alguém a uma gráfica e publicado em poucos exemplares, o suficiente para a família, amigos e leitores desavisados. Depositaram, cabisbaixos, o homem sob a terra, com o sentimento implacável de que cometiam uma injúria imperdoável. Nem mesmo depois que o enterraram e o esqueceram conseguiram se convencer de que o escritor estava realmente morto.

Claudia Lage

Claudia Lage é escritora. Autora do romance Mundos de Eufrásia, entre outros.

Rascunho