A viagem de Brennand (final)

“E quanto ao misterioso livro de Jean Dorsenne, o que você afinal acha que...”
Ilustração: Francisco Brennand
01/02/2013

Ничего не происходит в жизни человека
ничего ничего
который само изображение, искаженное.

“E quanto ao misterioso livro de Jean Dorsenne, o que você afinal acha que…”

Antes de eu terminar a frase, Francisco Brennand balançou a cabeça, pronunciando a sua aparente explicação para o inexplicável:

“Ao que tudo indica, nós lemos duas ‘versões’ do mesmo livro…”

Na minha, queria ele dizer, havia aquele dedo denunciador de algumas falsidades velhas e novas. Entre outras, a da alegação (também referida numa mensagem para CL) em favor dos que criariam a “própria arte”.

Criar a própria arte? Bem, sobre isso, o que eu lera em Dorsenne — no livro que eu manuseara e devolvera (embora em correspondência infelizmente não registrada, etc.) — era apenas esse autor sendo forçado a admitir que Gauguin havia sido um verdadeiro, e não um falso rebelde. Daí, o biógrafo relativamente desconhecido JD concluía que ele, Paul, fora capaz de criar a sua expressão de modo autônomo, sim, isto é, sem débito para com ninguém no território da história da arte juncada (de nomes dos quais não se escapa simplesmente por dizer “eu criei a minha própria arte”, etc.), porque ele se tornara o Pintor Paul Gauguin:

Os rebeldes autênticos, os artistas que carregam um legítimo — e quase insuportável — daimon, são seres libertados por si mesmos, livres das raízes burguesas como se fossem luvas cirúrgicas usadas. É exatamente o caso do Lobo atrás da porta — (Jean Dorsenne)

Acrescentaria eu: tais artistas não constroem um equívoco entre longas hesitações, nem avançam recuando um passo. Ao contrário, permanecem fiéis ao entrevisto longe de companies, na companhia de si mesmos e de alguns amigos que, de ilhas diversas e diferentes da sua, faziam eco àquela frase de Donne, não sucumbindo à ilha-e-armadilha do Gruppo di famiglia in un interno.

“Enfim, a verdadeira liberdade não se paga apenas com o gosto misantrópico de seis vinténs de retórica” — segundo a frase para mim mesmo, agora já dentro do carro. Não precisava completá-la (era a minha vez de completar coisas como numa parte final alterada), enquanto Brennand se afastava, à luz das lâmpadas já acesas na Oficina silenciosa, sem os funcionários transitando na rotina para os quais as esculturas eram apenas testemunhas dos seus expedientes. Sobre o cascalho produzindo o som de papel crepom amassado debaixo dos pneus, tomei o caminho que levava para as margens altas do rio e, à direita, para a estrada aberta no coração antigo da Várzea. E também para a vida: graças a deus ou ao diabo, levava para fora do interno. Para a vida (ufa!) distante de todos os epicentros de alucinações buscadas, algumas, como supostos enigmas que não resistiriam à saída para a saudável rudeza da quente periferia do Recife ou, pior, para a o frio da Berlim de grupos de alunos de escolas comportadas, todos germanicamente atentos às explicações da guia “contornando” as obras mais explícitas. Eu me lembro. E penso em alguns trechos da última conversa com FB— as grandes iniciais, mais do que visíveis, das peças do escultor cerâmico que estão, quem sabe, mais garantidas contra o futuro do que o “Brennand” assinado em pinturas e desenhos cujo significado escapava pelas bordas da admiração que não decifra, da louvação que não desvenda, dos elogios que nada revelam, à sombra das factories

Para qual sombra caminhava a pintura desse artista?

“Escrito na porta”
Porque a pintura é, na verdade, um mundo de falsa luz, ou de luz mergulhada em áreas e pontos de sombra, a partir de visões seccionadas da realidade estupidamente diante dos olhos. O abismo comportado de uma paisagem engana quem pensa que ela permanece igual a si mesma — quando damos as costas às coisas.

Há exatos 44 anos, eu escrevia, em documento hoje classificado no setor de documentação da Oficina Cerâmica Francisco Brennand: “Críticos de arte desatentos ou ocupados em ressaltar a brasilidade desse pintor podem e devem se fixar mais demoradamente (…) no coração da matéria da cerâmica de FB, longe de geografias e mitos, e radicado na pintura de um artista angustiado sem nacionalidade [as duas palavras não estão frisadas no original do qual Francisco fez cópia enviada a este articulista em 15 de agosto de 1978], a condição essencial do expressionista druida presente nessas pinturas, com seus fantasmas invisíveis aos bons cristãos entre os quais eu só me encontro muito às avessas”.

Nesse texto de quatro décadas atrás, eu chamo de “Infortúnios de viagem” o capítulo imediato ao tema do “Selvagem”…

Sauvage?

Não, nunca havia sido um selvagem, exceto na vontade da viagem para o ponto de não-retorno. Quem verdadeiramente viaja, de fato não retorna (realmente, não pode retornar) para o ponto de partida deste regresso aos “avisos aos navegantes”: ninguém se engane com a palavra “selvagem”, não se sinta como um — tão somente porque a sua arte não se entronca diretamente na tradição mais domingueira da arte de Pindorama, ou porque se afasta da de um Cícero Dias espalhando cores e simplificação das coisas com a alegria botocuda de muitos dos seus pares laboriosamente dedicados aos temas compreensíveis e/ou “encaixáveis” no gosto por gatos e cangaceiros, mulatas e místicos, casario e jangadas, mulheres (e homens) vestidos de sol na hora da pintura lunar que deveria surgir de dentro do atelier sem janelas —, pois uma janela não descobre um mundo, é um engano apontá-las e…

Enfim, era tarde, toda fuga deveria ter sido antes, muito antes e também para fora de tempo, fora do lugar e, acima de tudo, para fora da sala de espelhos que carregamos na mente (exemplo: As meninas revelando o destino de uma nação na imagem da sala de uma corte retratada com a — legítima — selvageria de outro Francisco, o Goya y Lucientes da loucura no Retiro de paredes pintadas).

“Loucura?”

“Estamos sós sob o sol e, de súbito, anoitece” — parecia dizer a figura cabisbaixa que jamais chegará do outro lado, no quadro O pátio: uma moça (quase mancha) que se abraça com frio e perplexidade, na “nuvem do seu mistério”, enquanto os faróis começam a devassar a solidão da natureza imemorial que nos ignora.

O mundo é para ser ignorado, como a rocha ignora o vento; não há corações, e, sim, a matéria — que não sonha e não descansa. O todo é feito do Vazio, e as aflições nada podem contra Ele.

Agora já havíamos chegado às avenidas largas do meio urbano em toda a sua confusão de sons e luzes acesas na noite: “Estamos imersos no grande Delfos no qual, por nossa vez, ignoramos o futuro abandonado dos oráculos” — tudo é biografia e tudo é também uma forma de exílio que começa com a(s) viagem(ns) na prosaica realidade do trânsito entre o som e a fúria que nos engolfa seguindo o curso poderoso da vida que “imita a arte” só para quem rumina frases solenemente feitas, etc.

Digamos que, na porta, estava escrito PINTOR, como se as designações corretas, os nomes de rigor, o acerto das coisas que são pronunciadas e outras réguas num mundo de Equívoco e Tempestade, pudessem acertar o relógio do mundo em louca marcha a partir do tráfego da volta para Boa Viagem.

Boa? Talvez nunca houvesse viajado (addio) a viagem que deveria ter sido irreversivelmente necessária…

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho