A literatura de Zelda (1)

Toda a sua maneira suave — perigosamente suave — de recordar as coisas, olhá-las não apenas pelo vidro partido da memória
01/10/2013

Toda a sua maneira suave — perigosamente suave — de recordar as coisas, olhá-las não apenas pelo vidro partido da memória (que deformava daquele modo “medíocre”, das “lembranças dos sãos”).

Zelda, olhem só, em nenhum momento a mesma nas fotografias limitadas pelo olho e pela câmera captando tudo, menos o movimento interior desesperado, naquelas piores horas para ela, também, quando retornava a certos lugares sob a lua da infelicidade.

A “louca varrida” das festas do leste prestes a liquidar a melhor das gerações (ou a dá-la como “perdida” antes mesmo que se desse a perda literária não para todos, nem igualmente para os desiguais dos grupos divididos entre Paris e a Riviera, futuramente míticas — depois que todo mundo já tinha ido embora).

A temporada dos verões, a mentira gentil ou supostamente “charmosa”: tudo ficando para trás, através dos anos que precederam o horror glamourizado pela lucrativa exploração dos Ernests falsos como uma nota de vinte e dois dólares apostada num vinte-e-um trapaceado alegremente.

Você tinha trinta anos quando teve o que, educadamente, ainda se chamava de um “colapso nervoso”. Pela primeira vez, numa vida um pouquinho mais do que agitada, passou da medida dos nervos em frangalhos entre música e lágrimas, sim (ou, como dizia a canção, “entre rosas e bandagens”). Claro que as rosas eram para as damas tristes, e os curativos, apressados e mal aplicados, eram para os soldados que voltaram supurando pus e saudades.

Não há verbos elegantes para feridas na carne. Tudo só fica mais suportável recordado à distância, no tempo de deselegância intrínseca que veio a suceder o estilo do crepúsculo, azul-piscina à boca da noite trazendo os primeiros sons dos metais de orquestras sumidas diante dos olhos do “deus” do anúncio a recomendar o uso de óculos e amor para todo mundo.

Quem foi que avisou que os seus pensamentos secretos eram também perigosos?

Os pensamentos que levavam ao cerne, revelados entre cartas e recordações das festas famosas, de “esporte fino” avant la lettre, na frente das praias nunca mais silenciosas. “Só o fantasma da jovem morta numa barraca já gritava o bastante.”

Você foi uma jovem morta na carne da paciente queimada pelas chamas — junto com mais oito pessoas — num dos prédios do Hospital Highland, no dia 10 de março de 1948. Tinha quarenta e oito anos. Quem diria que o fogo estava dando cabo, definitivamente, da juventude calcinada do seu “pássaro de fogo” pessoal e intransferível?…

Volto aos seus ombros tremendo — não do frio da noite de 21 de março, mas numa tarde dos anos do fim da adolescência, ainda na Montgomery pequena demais para garotas que aprontavam.

Objetos capazes de evocar (ou de ajudar a evocar) as luas leitosas das lâmpadas, perto do ar refrescado da represa com a torrente ameaçando levar o ouro da época, o tesouro da juventude sem preço, enquanto ainda podiam imaginar o país não-corrompido poupando seus rapazes antes de enviá-los para a morte longe de casa. Justiça seja feita, não se tratava dos que foram antes — sem esperar pelo alistamento ou a convocação da classe, nos termos pessoais e, principalmente, intransferíveis (ah, ah), etc.

Onomatopéia e música, piadas e lágrimas — e o estilhaço de fio de navalha no peito dos Tommys abertos pelas bombas.

Apressados para morrer? Talvez. Mas estavam também apressados por viver tudo num átimo de oxigênio e sexo, ar rarefeito e gonorréia (que comia solta naquela época de tratamentos dolorosos). Ou seja, dor e sangue, sempre, e amputações antes dos óbitos comunicados “oficialmente”, pelo Ministério da Guerra, através de dois oficiais em uniforme completo, bandeira em mãos, para enrolar na hora dos sepultamentos com as honras militares de praxe, todo mundo perfilado e suado e com a boca seca.

Os que haviam seguido na frente, com documentos falsos como a esperança da paz duradoura (que nunca viria, coletiva ou pessoalmente), não tiveram nada disso, é evidente. Eles tiveram uma morte anônima nos ares, puros como os meninos apressados do coro que alguns padres tentavam bolinar por detrás do altar de flores da igreja de Santa Maria, em Rockville, Maryland — onde Scott foi afinal enterrado, em 1975, revertido o impedimento, de 1940, do sepultamento no Union Cemitery de Rockville, com a alma triste de Francis encomendada por um pastor episcopal que, graça suprema, não parecia estar sóbrio.

CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho