A esquerda num romance de Vargas Llosa

Vargas Llosa, com o anarquista e frenólogo escocês Galileu Gall, produz no romance A guerra do fim do mundo uma forte caricatura da esquerda
Mario Vargas Llosa, autor de “A guerra do fim do mundo”
01/01/2009

Vargas Llosa, com o anarquista e frenólogo escocês Galileu Gall, produz no romance A guerra do fim do mundo uma forte caricatura da esquerda. Não é errado afirmar que as idéias revolucionárias do anarquista expressam uma visão européia sobre a América Latina. Uma “visão irreal”, como chamou atenção o próprio romancista. Com efeito, Gall compreende que Canudos passa por uma experiência socialista. No fechamento da primeira parte do romance, depois que conhecemos as cartas do anarquista enviadas ao jornal francês L’Étincelle de la révolte, o narrador descreve essa espécie de delírio do personagem: “Trató de darse ánimos sabiendo que era inútil, murmurando que las circunstancias adversas estimulaban al verdadero revolucionario, diciéndose que escribiría una carta a l’Étincelle de la révolte asociando con lo que ocurría en Canudos la alocución de Bakunin a los relojeros y artesanos de la Chaux-de-Fonds y del valle de Saint-Imier en que sostuvo que los grandes alzamientos no se producirían en las sociedades más industrializadas, como profetizaba Marx, sino en los países atrasados, agrarios, cuyas miserables masas campesinas no tenían nada que perder, como España, Rusia, y ¿por qué no? el Brasil, y trató de increpar a Epaminondas Gonçalves: ‘Quedarás defraudado, burgués. Debiste matarme cuando estaba a tu merced, en la terraza de la hacienda. Sanaré, escaparé’. Sanaría, escaparía, la muchacha lo guiaría, robaría una cabalgadura y, en Canudos, lucharía contra lo que tú representabas, burgués, el egoísmo, el cinismo, la avidez y…”. Note-se como o narrador, utilizando o discurso indireto livre, traça uma linha que realça as idéias revolucionárias do anarquista, desqualificando-as. O narrador faz aí uma caracterização do fanatismo de Gall muito parecida com a que faz, em outras passagens do romance, do fanatismo de Moreira César. Ao indicar os referenciais teóricos do anarquista (“Bakunin”, “Marx”), apontando os países onde já houve grandes agitações políticas e/ou processos revolucionários (“España”, “Rusia”), o narrador situa o personagem no campo das esquerdas tradicionais. Ao frisar que Gall chama Epaminondas Gonçalves, líder do Partido Republicano Progressista, de “burguês”, faz uma alusão (irônica) a um clichê utilizado por esquerdistas para rotular os poderosos. Os clichês esquerdistas da fala de Gall aparecem ainda no andamento: “…lucharía contra lo que tú representabas, burgués, el egoísmo, el cinismo, la avidez y…”. Em todas essas indicações do narrador há ironia que, certamente, contribui para desqualificar as idéias do anarquista. Com as reticências aí desse último andamento, por exemplo, o narrador parece sugerir que sempre algo de panfletário poderá ser acrescido ao discurso do anarquista contra os burgueses. Numa outra passagem do romance, o anarquista segue pelo sertão, a caminho de Canudos, com Jurema e o grupo do circo (o Anão, a Barbuda e o Bobo). Num povoado em que os artistas paupérrimos param a carreta para apresentar alguns números, as pessoas encostam para apreciá-los. O narrador assim descreve essas pessoas: “Esqueletos humanos, de edad y sexo indefinibles, la mayoría con las caras, los brazos y las piernas comidos por gangrenas, llagas, sarpullidos, granos, salían de las casas y, venciendo una aprensión inicial, apoyándose uno en otro, gateando o arrastrándose, venían a engrosar el círculo”. Gall, por sua vez, faz a seguinte leitura da degradação humana diante dele: “No dan la impresión de agonizantes, […] sino de haber muerto hace tiempo”. Como decorrência dessa avaliação, o anarquista se põe a fazer um discurso exaltado para os presentes, conclamando-os para a ação: “— No perdáis el valor, hermanos, no sucumbáis a la desesperación. No estáis pudriéndoos en vida porque lo haya decidido un fantasma escondido tras las nubes, sino porque la sociedad está mal hecha. Estáis así porque no coméis, porque no tenéis médicos ni medicinas, porque nadie se ocupa de vosotros, porque sois pobres. Vuestro mal se llama injusticia, abuso, explotación. No os resignéis, hermanos. Desde el fondo de vuestra desgracia, rebelaos, como vuestros hermanos de Canudos. Ocupad las tierras, las casas, apoderaos de los bienes de aquellos que se apoderaron de vuestra juventud, que os robaron vuestra salud, vuestra humanidad…”. O discurso do personagem, gritando por justiça, negando Deus (“fantasma escondido tras las nubes”) e a propriedade (“los bienes de aquellos que se apoderaron de vuestra juventud”), é incompreensível para os miseráveis até mesmo na sua forma gramatical — note-se o emprego dos verbos na segunda pessoa do plural (“no sucumbáis”, “no os resignéis”, “apoderaos”). Assim, a incompatibilidade dessas duas racionalidades é de fundo e de forma. Galileu fala para si mesmo. A Barbuda, dona de malabarismos, entendendo melhor o jeito e a lógica da gente em volta, é quem bate no ombro do anarquista: “— ¡Estúpido! ¡Estúpido! Nadie te entiende! Los estás poniendo tristes, los estás aburriendo, no nos darán de comer! Tócales las cabezas, diles el futuro, algo que los alegre!”.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

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