A criança na cidade em guerra

“Os da minha rua”, de Ondjaki, é um agradável passeio por brincadeiras e preocupações da infância
Ondjaki, autor de “Os da minha rua”
01/08/2008
Ondjaki, autor de
Ondjaki, autor de “Os da minha rua”

Eu não tive uma rua que pudesse chamar de minha. Tive tantas que tenho dificuldade em lembrar exatamente de seus nomes, suas cores, seus cheiros. Mas lembro das histórias, quantas histórias! Só não sei se tudo o que me lembro aconteceu mesmo ou inventei. Não dá mais para saber, agora. Tantos anos e a memória se confunde um pouco com a imaginação.

Minhas lembranças mais antigas, com histórias completas — provavelmente todas verdadeiras, com um floreado aqui e outro ali para dar mais emoção —, são as de quando tinha 9 para 10 anos. Foi nessa época que ganhei minha primeira bicicleta sem rodinhas. Era muito maior do que eu, mas era maravilhosa. Como minhas irmãs menores queriam me acompanhar em aventuras pelo bairro e eu não queria deixá-las soltas (a irmã maior sempre tem que tomar conta das pequenas, não é assim?), eu pegava um barbantão e amarrava a garupa na bici da Lu, a minha irmã do meio (que só andava se as rodinhas de apoio estivessem lá), que era amarrada no tico-tico da caçulinha, Mari. Eu corria, corria como o vento. A Lu gritava e a Mari, lá no finzinho da corda, ficava toda ralada, por causa dos pedais que batiam com força nos joelhinhos. Eu cuidando das pequenas…

Foi nesse mesmo ano que a Bia me deu, de aniversário, um LP da Blitz (As aventuras da Blitz) que era proibido para menores. Eu era a única criança daquela rua (que, aliás, é muito próxima da que eu moro hoje, 13 ruas e 14 anos depois) que tinha o disco. Nenhuma festa começava sem minha presença. Eu me achava a última bolacha maria do pacote quando chegava ao evento, uns três discões embaixo do braço. E aquele proibido era sempre o mais visível. Não tinha uma festa que não tentássemos escutar as duas músicas que já vinham riscadas. As últimas do disco. Meu pai não deixava eu tentar ouvir, porque ia estragar a agulha da vitrola. Mas nas casas alheias não me preocupava com isso. De toda forma, não conseguíamos ouvir nada. Depois de algum tempo, passávamos às mais conhecidas e a festa começava pra valer. O divertido daquela época era que, com o mesmo delírio que ouvíamos “Geme, geme, uhuuu”, gritávamos e dançávamos alegremente “Uma pirueta, duas piruetas, bravo, bravo!” (Os saltimbancos trapalhões). Era tempo de alegria, diversão e um pouco de escola no meio.

Acontece que a infância acaba. E de uma hora para outra. Ficam as lembranças e a imaginação. E é essa a matéria-prima que o escritor africano Ondjaki usa para construir Os da minha rua, livro de se devorar de uma vez só enquanto as lembranças do autor se misturam com as de quem lê, formando um emaranhado de emoções e de saudade de um tempo que só volta na imaginação. São 22 histórias que, juntas, formam um agradável passeio por aquelas brincadeiras e preocupações de crianças. As aulas e os bilhetinhos passados às escondidas, os amigos, as festas, as novidades, as obrigações e a parentada. Sempre tem a parentada.

Escrita simples
Aliada às deliciosas e líricas histórias, a linguagem é mais um trunfo de Os da minha rua. Tudo é contado pela perspectiva do narrador, Ndalu (o próprio Ondjaki). E com escrita simples, bastante carregada de oralidade e bem própria da idade do narrador. “Nós, as crianças, vivíamos num tempo fora do tempo, sem nunca sabermos dos calendários de verdade. Para nós segunda-feira era um dia de começar a semana de aulas e sexta-feira significava que íamos ter dois dias sem aulas.”

Nós, que conhecemos pouco a história africana (eu confesso que pouco sei sobre o assunto), podemos ter um pouco de dificuldade para entender algumas referências. Mas só no início. Depois, todo aquele cenário vai se desenhando em nossa mente. A independência de Angola, em 1975, culminou em uma guerra civil, doída, sangrenta, que durou até os anos 90. Ndalu era criança nesta época. Ria, apesar de muitos momentos não haver do quê. Ondjaki não conta nenhuma história de guerra, de morte feia causada por batalhas. Mas as referências à guerra estão lá. “Chegámos à casa do sacana do Lima numa rua bem escura que era preciso cuidado quando andávamos para não pisar nas poças de água nem na dibinga dos cães. Eu ainda avisei a tia Rosa, ‘cuidado com as minas’, ela não sabia que ‘minas’ era o código para o cocó quando estava assim na rua pronto para ser pisado.” Não havia também muita coisa nova em Luanda. Nem para brincar, nem para ajudar na casa.

Entramos todos, mas até tenho que dizer aqui uma coisa. Nessa altura, em Luanda, não apareciam muitos brinquedos novos nem coisas assim novas. Então nós, as crianças, tínhamos sempre o radar ligado para qualquer coisa nova. Mal entrámos no quintal, vi uma caixa bem grande e restos de esferivite no chão. Isso só podia significar uma coisa: havia material novo naquela casa, podia ser fogão, geleira ou outra coisa qualquer […].

Influências latinas e soviéticas
Durante todo esse período de guerra, as maiores influências no país eram de soviéticos, cubanos e brasileiros. Professores de Cuba permeiam as histórias de Ndalu, os soviéticos aparecem na construção civil, nas obras. E os brasileiros, nas telenovelas e na música. Nas histórias de Os da minha rua, a novela da vez, a que mais empolgava os angolanos, era Roque Santeiro. Ndalu e seus amigos não perdiam um capítulo. Nem mesmo as três filhas do senhor Tuarles, que viam muito, muito mal. Apenas uma delas tinha óculos, que revezava com as outras para poderem enxergar melhor as extravagâncias da viúva Porcina, do Sinhozinho Malta e do Lobisomem. As músicas de Roberto Carlos também estavam presentes. Ndalu sempre as ouvia quando ia à casa de tia Rosa, sua madrinha.

Lembranças de piás também são cheias de poesia, de lirismo. E isto não passa incólume pelo livro de Ondjaki. Em uma das histórias, Nós chorámos pelo cão tinhoso, quase sentimos as lágrimas do pequeno narrador, quando teve a incumbência de, na aula de português da oitava classe, ler o final do texto “Nós matámos o Cão Tinhoso”.

Os olhos de Ginho. Os olhos de Isaura. A mira da pressão de ar nos olhos do Cão Tinhoso com as feridas dele penduradas. Os olhos do Olavo. Os olhos da camarada professora nos meus olhos. Os meus olhos nos olhos da Isaura nos olhos do Cão Tinhoso.

Houve um silêncio como se tivessem disparado bué de tiros dentro da sala de aulas. Fechei o livro.

Olhei as nuvens.

Na oitava classe, era proibido chorar à frente dos outros rapazes.

E é assim, história a história, que Ondjaki desenha o tempo em que era criança em uma cidade em guerra. Com elas, ajuda o leitor a evocar as próprias, a seu próprio tempo. Com os dias que se passavam. Com as aventuras do dia-a-dia se tornando lembranças. Boas lembranças. Saudades. Despedidas (“Despedida tem cheiro de amizade cinzenta. Não sei bem o que isso é, nem quero saber. Não gosto mesmo de despedidas.”). Até chegar a hora em que não se é mais criança. Um dia isso acontece. E acontece muito rápido.

A vida às vezes é como um jogo brincado na rua: estamos no último minuto de uma brincadeira bem quente e não sabemos que a qualquer momento pode chegar um mais-velho a avisar que a brincadeira já acabou e está na hora de jantar. a vida afinal acontece muito de repente.

Os da minha rua
Ondjaki
Língua Geral
155 págs.
Ondjaki
Pseudônimo literário de Ndalu de Almeia, escritor nascido em Luanda, em 1977, e formado em Sociologia em Lisboa. Nos últimos oito anos, publicou poesias, contos, novelas e romances. Entre suas obras estão Actu sanguíneu (poesia), Momentos de aqui (contos), Bom dia camaradas (romance). Em 2006, co-realizou com Kiluanje Liberdade Oxalá Crescem Pitangas, um documentário sobre Luanda. No ano passado, Os da minha rua recebeu o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco, da literatura portuguesa.
Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho