Quando cheguei Ă delegacia — a noite a arrastar uma pesada escuridĂŁo —, o pai estava encolhido num canto. O corpo sujo a preencher uma silhueta familiar. A cadeira de assento puĂdo e seboso amparava um homem envergonhado, talvez cansado de uma histĂłria cujo final nos leva sempre de encontro a um passado a nos espreitar feito um cĂŁo perdigueiro. É uma surpresa desagradável, mas previsĂvel. Do outro lado do telefone, como se viesse de um mundo em ruĂnas, a voz assustada do meu sobrinho: “o vĂ´ bateu o carro”. A frase quase a lembrar as primeiras lições na escola — as palavras a brilhar na lousa tal um aceno para um futuro melhor. Mas a simplicidade das letras escancarava o passado, jogava-nos a todos para os grotões de onde nunca saĂmos.
(Eu acabara de colocar minha filha na cadeirinha do carro. O ruĂdo da escola ainda borbulhava no fim de tarde. A sexta-feira prometia alegrias: no domingo, o dia dos pais seria um animado pretexto amoroso.)
AtĂ© entendo a trajetĂłria em direção ao abismo. Aos meus olhos — que sempre estiveram entranhados nas batalhas domĂ©sticas —, coisas ruins iriam acontecer, nĂŁo havia muitas saĂdas. Nunca fomos artĂfices em construir passagens para o paraĂso. Fomos adestrados desde muito cedo a encarar o demĂ´nio deitado no portĂŁo de casa. Sempre a nossa espera. Mas nunca imaginei, ou evitei levar tĂŁo longe a ficção de uma vida assustadoramente real, que buscaria, feito um pastor sem ovelhas, o pai numa delegacia de polĂcia numa sexta-feira Ă s vĂ©speras do dia dos pais. Nem mesmo certa indiferença a estas datas Ă© capaz de recolher a limalha das nossas tragĂ©dias.
(M. ainda Ă© pequena. Ă€ beira dos cinco anos, transforma a vida numa alegria permanente. Inventa palavras, sons, gestos. Dança com a leveza de quem ainda desconhece a vergonha do corpo. A timidez inexiste em movimentos acrobáticos e graciosos. Canta aos gritos. Dança aos pulos. Desenha aos esbarrões. Enfim, Ă© uma criança feliz. Acomodada na cadeirinha, antecipa a surpresa com palavras. “Eu fiz uma medalha, papai.” E me entrega um cĂrculo de cartolina, preso a um fio de lĂŁ, com um desequilibrado desenho de uma menininha ao centro, escapando pelas bordas do papel, bailando num fundo amarelo, a balançar um cabelo desproporcional, num corpo arredondado, amparado por pernas e braços de palito. O sorriso corta todo o rosto, quase rompendo os limites da cabeça. A proporção do amor, Ă s vezes, Ă© muito assimĂ©trica. Na lateral esquerda do cĂrculo, com letras copiadas com nĂtida concentração, a frase: “meu pai Ă© um herĂłi”.)
Era uma kombi velha e barulhenta. O motor latia feroz, os pneus pateavam e se moviam com a lerdeza dos condenados. Sentados sobre o amparo do motor, ao fundo, vĂamos o pai domar aquele animal urbano. Estávamos mais acostumados a cavalos, bois e porcos. Mas agora — na velocidade assustadora de C. —, tĂnhamos de conviver com outro mundo. A roça era apenas uma lembrança que tentávamos apagar de qualquer maneira. Jamais conseguimos.
O pai nunca me pareceu um homem inteligente. NĂŁo tinha nenhuma habilidade especĂfica. Nada parecia lhe interessar com o mĂnimo de paixĂŁo. Nem o futebol, tĂŁo previsĂvel, o entusiasmava. Aos poucos, descobrimos que o alcoolismo, a devassidĂŁo e certa indiferença Ă famĂlia seriam suas marcas mais aparentes. Talvez escondesse segredos, sonhos e angĂşstias. Mas nunca os descobri. A boca do pai nos entregava apenas alguns monossĂlabos. Em casa, falava pouco e baixo. O resto era silĂŞncio. Quando bebia (o que com o tempo se tornou uma rotina) transformava o silĂŞncio em urros, socos e pontapĂ©s — como se fĂ´ssemos culpados pelo desequilĂbrio do mundo ao nosso redor. O demĂ´nio escondido dentro da garrafa transformava o pai em seu cĂşmplice. Nem as rezas da mĂŁe davam jeito. Depois de um tempo, deixei de acreditar em orações. Deus tinha outras preocupações. Eu tambĂ©m.
(Deixo M. na casa dos irmĂŁos. Vou Ă delegacia. “Prenderam o vĂ´. Ele estava bĂŞbado quando bateu o carro.” Meu sobrinho — neto mais velho do meu pai — Ă© tambĂ©m um homem de palavras mĂnimas.)
Estivemos próximos em algumas noites. Enquanto eu fazia a lição de casa no caderno de capa azul, o pai se esforçava para aprender os sinais de trânsito. Lembro do manual com várias placas. A que mais me chamava a atenção era a que indicava “animais na pista”. Quando inauguraram o então maior shopping de C., a mãe nos carregou pelas ruas. Ao chegar, atravessamos em desembestada corrida a avenida infinita. Os sinais luminosos piscavam por todos os lados. Mas não havia nenhuma placa indicando “animais na pista”. No shopping, não compramos nada. O pai arranhava os dedos pelo papel e soletrava baixinho. Ele frequentara a escola poucos anos na roça. Mas o suficiente para tornar-se o motorista da velha kombi da chácara de flores onde morávamos e trabalhávamos para pagar o aluguel da casa de madeira, cujo banheiro era um buraco na terra ressequida. O manual de trânsito talvez tenha sido o único livro lido pelo pai.
Eu nĂŁo bebi. A lĂngua enrolada aos dentes — um peixe agonizando fora d’água — destrĂłi a mentira. A voz cansada Ă© triste. Poucas palavras como sempre. NĂŁo precisamos de muitas para atestar a nossa derrota. Aguardamos a decisĂŁo do delegado sobre a fiança. Na sala ao lado, quatro jovens esperam pela transferĂŞncia para a cadeia municipal. Integram, segundo os policiais, uma quadrilha de traficantes. A delegacia Ă© pequena e silenciosa.
O pagamento da fiança Ă© rápido. O pai precisa assinar um “atestado de culpa”. Arcado e de odor quase repugnante — há dias, nĂŁo toma banho —, segura a caneta com dificuldade. Faço um xis no documento para guiar os dedos trĂŞmulos. Noto que nas duas vias, o pai assina apenas o nome, em referĂŞncia ao carpinteiro bĂblico. O pai nĂŁo tem nada de sagrado. Com mais de setenta anos e perto do fim, ignora o sobrenome — a herança que eu carrego.
No carro, digo-lhe em tom de reprimenda: “vocĂŞ precisa tomar um banho”. Ele apenas meneia a cabeça e toca com a ponta dos dedos a medalha pendurada no retrovisor. Na escuridĂŁo, Ă© impossĂvel ler a frase escrita por M.: “meu pai Ă© um herĂłi”.