Uma noite Marta Benício despertou com palpitações. Não conseguiu mais dormir por culpa desse mal-estar. Não queria incomodar Glorinha, nem se arrastar pela noite atrás de um pensamento de paz ou de alegria. Recordava as amizades que desapareceram. Admirava o Fialho porque via nele um modelo, apesar de tudo. Era um homem culto, elegante, ponderado, e de grande discernimento nas suas opiniões. A questão é: o que resta daquele tempo, o que sobrou dos jantares, das viagens? Foram horas de conversas, horas de riso e segredos, para quê? As conversas telefônicas duravam no mínimo uma hora. Havia harmonia, cumplicidade. Por que essas relações nascem e súbito se desvanecem como se nunca tivessem existido, embora tenham existido, às vezes dentro de uma ambiguidade notória? No curso de uma década, entre 1970 e 1980, viam-se com frequência. Reatar dá medo.
Voltar ao passado é perigoso.
Podem doer as confidências, até as gargalhadas.
O quarto de Glorinha estava na penumbra. Fiapo de luz vinha do corredor. Quase tropeça num urso de pelúcia no chão, amuleto da amiga.
— Preciso de colo — disse Marta Pinheiro, angustiada. — Estou arrasada.
Consolar quem sofre é dom. É generosidade.
Marta trazia nos ombros as malvadezas do mundo. Afogada num redemoinho de águas, investigava em que circunstâncias, exatamente, ocorreu a ruptura com Elisabete, se foi a partir do casamento com Gumercindo, um pé rapado. Temia fechar os olhos num asilo ou lar de idosos como sua mãe. Liduína, no último ano de vida, perdeu o humor, a alegria. Metida num turbilhão, portava-se muito mal. Chegava a ser rude, extremamente cruel. Magoava vê-la assim. Ficavam as duas agastadas, indiferentes, mãe e filha. Liduína reclamava de dores ocultas, queria regressar à juventude, como se tivesse perdido o senso comum. Conservava um claro desejo de elegância manifestado pelo modo de pentear os cabelos. Sua mãe foi uma mulher vaidosa, sempre risonha, vibrante. Dói fantasiar o impossível. Será deprimente se virar velha rabugenta como dona Zuleica. Certos dias, não suportando a solidão, a sogra telefona para falar com ninguém do outro lado da linha.
— Isso é normal — solidarizou-se Glorinha. — A morte de um marido é tão devastadora que a reza do terço nem parece que é luto.
— Pois é, a parte ruim vem depois.
As duas se deram as mãos.
— Fé no mistério — disse Glorinha. — Vamos falar de coisa boa.
— Ih, não sei. É difícil.
— Viagens com Aníbal, que tal?
— Viagens, não. Vou lembrar de Eneida.
— Eneida?!…
— Eneida é a carioca mulher do ministro.
— Então, vocês viajaram juntas.
— Sim, viajamos. Foi bom e ruim.
— O que foi ruim?
— Terei de fazer confidências. Praticamente rompemos a amizade no Natal de 1976, e depois desse Natal deixamos de viajar juntos.
Vimos os outros pela lente de nossos interesses, que se confundem, tantas vezes, com vontades inconfessáveis. Os desejos se multiplicam, são a fonte que alimenta nosso amor à vida. Eneida gostava de Aníbal Pinheiro porque tinham gostos parecidos, só que havia algumas extravagâncias. A pior delas: Eneida se comportava como Leila Diniz na praia de Ipanema. Fazia topless na frente de Lourenço Fialho e Aníbal Pinheiro. Feminista de carteirinha, agredia os bons costumes; aplaudia a liberdade sexual.
— Essa Eneida teve caso com Aníbal? — perguntou Glorinha, bruscamente.
— Aníbal sempre negou. Jurava por Deus.
Glorinha arregalou os olhos.