Um mestre da linguagem escrita

Affonso Romano de Sant'Anna fala de sua convivência com a literatura, entre poesia e prosa. Para ele, a alma brasileira se dá melhor com a curva que com a reta
Affonso Romano de Sant’Anna: “O grande equivoco na poesia deste século foi o concretismo”
01/03/2001

Ele é um dos mais importantes poetas brasileiros contemporâneos, intelectual do mais alto calibre que também conhece o lado prático da vida. Affonso Romano de Sant’Anna nasceu em Belo Horizonte no dia 27 de março de 1937, e viveu dos dois ao 20 anos em Juiz de Fora. Sua família protestante desejava que ele abraçasse a religião, mas o contato com as artes fez com que o menino seguisse outro caminho.

Desde pequeno, batalhou para pagar os estudos. De volta à capital mineira, além de fazer faculdade, trabalhou em bancos e passou a escrever em jornais. Exerceu diversas atividades, tendo coordenado movimentos de vanguarda, concluiu tese de mestrado e de doutorado, lecionou no Brasil e nos EUA, além de ter lido e — principalmente — escrito inúmeros livros.

Entre suas obras poéticas, destacam-se Canto e Palavra (1965), Poesia Sobre Poesia (1975), A Grande Fala do Índio Guarani (1978), Que País é Este? (1980), O Lado Esquerdo do meu Peito (1991) e Textamentos (1999). Também elaborou ensaios, como O Desemprego da Poesia (1962), Drummond, o Gauche no Tempo (1972), Música Popular e Moderna Poesia Brasileira (1978), Barroco, Alma do Brasil (1997) e o recém lançado Barroco — do Quadrado à Elipse (Rocco, 2000). Atualmente, publica toda semana uma crônica no jornal O Globo.

De 1991 a 1996, comandou a Fundação Biblioteca Nacional, tendo desenvolvido inúmeros projetos, como o Proler (leituras em hospitais, cadeias, quartéis etc.), a ampliação do acervo em mais de 550 mil volumes, publicação de livros e revistas em inglês e espanhol com a finalidade de difundir nossa cultura, articulação de espaço para autores nacionais em feiras de livros estrangeiras etc.

Casado desde 1971 com Marina Colassanti que, além de também ser escritora, vem sendo sua musa inspiradora. No mês em que ele completa 64 anos, o Rascunho presenteia os leitores com esta entrevista exclusiva, em que Affonso Romano de Sant’Anna fala de sua trajetória, de alguns livros, da poesia, do grande equívoco dentro da poesia brasileira do século passado (leia-se: concretismo), do amor, entre outras prosas.

• Qual foi sua intenção ao escrever Barroco — do Quadrado à Elipse? Seria dar uma nova interpretação para um assunto (barroco) que vinha sendo estudado de maneira equivocada?
O livro foi-se armando aos poucos, uma vez que descobertas novas foram sendo feitas. Primeiro, a apreensão desse modelo que é a passagem do quadrado à elipse, ou seja: de como é possível semioticamente resumir tudo o que ocorreu de significativo com o barroco. Depois, o fato de podermos aproximar coisas que estavam dispersas e que reunidas dão outro sentido à noção do barroco. Por exemplo, o estudo das anamorfoses — técnica de pintura e desenho, segundo qual a figura é pintada de viés, enigmaticamente. Para vê-la direito, você tem de mudar o ponto de vista. As anamorfoses, no meu estudo, são não apenas revalorizadas, mas inserem-se numa ampla leitura conexa com filosofia, urbanismo, literatura etc. Outra coisa que considero inovadora nesse estudo é o fato de resgatar a ciência da época. Não só os estudiosos do barroco esqueciam disto, mas outros, fissurados no iluminismo roubaram do barroco uma série de fatos, colocando-o no século seguinte, por que não sabiam como lidar com o  lado científico do barroco, considerado sempre obscuro e esotérico. No entanto, foi no barroco que surgiram as máquinas de calcular, foi no barroco que a própria palavra engenheiro começou a ser usada. Esses são alguns dos muitos exemplos, e não há como reduzir aqui o livro.

• O Brasil é um país barroco?
Tratei melhor disso no livro Barroco, Alma do Brasil, que antecedeu Barroco — do Quadrado à Elipse, mas que não teve distribuição comercial. Claro que esse título é redutor e perigoso. A rigor, ele não é meu, mas de quem me encomendou o volume. Eu diria, corrigindo, que o Brasil é “também” barroco. Para estudá-lo não basta um modelo. Por exemplo, um outro viés que uso é a teoria da carnavalização, assunto já abordado no livro Política e Paixão e que também ganhará melhor tratamento num longo livro, que pretendo publicar no futuro. Mas a carnavalização também não esgota a explicação. É apenas mais uma pedra no edifício da interpretação, que de resto é elíptico, e não quadrado. Se fosse quadrado seria fechado e não uma obra aberta. A alma brasileira se dá bem com a curva e não com a reta. 

• Em quais artistas atuais podemos encontrar ecos barrocos?
Em Glauber Rocha, Villa-Lobos, Neimeyer, Guimarães Rosa, Jorge de Lima (em Invenção de Orfeu), e também no chorinho brasileiro, no carnanal, no Círio de Nazaré etc.

• Houve algum incidente em sua infância ou na adolescência que fez com que o senhor se tornasse o leitor, questionador e pensador de hoje?
Meu pai estava sempre lendo. A gente achava que ele podia até trombar com um poste: ia a pé para a cidade e voltava lendo. Ele aprendeu a ler sozinho na adolescência e manteve uma pequena biblioteca. Isto, claro, deixou marcas em mim. Na minha adolescência, meu irmão mais velho — o Carlos, que morava no Rio — me deu os primeiros Jorge Amado, José Lins do Rego, Romain Rolland, Roger Martin du Gard etc. Lá pelo 16 anos, comecei a publicar meus textos nos jornais de Juiz de Fora. Como na cidade havia mais papelaria que livraria, acabei fazendo um álbum com recortes de textos literários que colhia aqui e ali. Eu também freqüentava as bibliotecas públicas, locais em que encontrei Jorge de Lima, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, entre outros deslumbramentos. No ginásio, tive um excelente professor de português — o Augusto Gotardelo — que me incentivou muito.

• Quais eram os objetivos de vida do Affonso menino-adolescente? O senhor tinha planos de tornar-se o Affonso Romano de Sant’Anna de hoje?
Minha família queria que eu fosse pastor metodista. Tive tios pastores e cheguei a ser “aspirante ao ministério”, inclusive porque preguei em esquinas bradando: “arrependei-vos, que está próximo o reino dos céus!” No entanto, a música, as artes plásticas e a literatura foram abrindo sulcos, direcionando a minha sensibilidade. Quando me dei conta, estava mesmo com 17, 18 anos fundando cineclubes, grupos de teatro, escrevendo críticas, poemas etc. As coisas foram se fazendo enquanto se faziam. Naquela época, tive a audácia de levar meus poemas para Drummond e Bandeira, conforme relatei em crônicas.

• O senhor escreveu o livro Que País é Este? — publicado em 1980 — com a finalidade de refletir a respeito do destino (ou falta de) de nosso País? Por que usou versos longos?
Foi um momento histórico duro e de muito sofrimento: descobrir que a história do País não coincide com a nossa estória. Foi um rito de iniciação na realidade. Ali, nossa geração perdeu a virgindade. Pior: foi estuprada pela realidade. E ainda, tive (tivemos) de descobrir que a pergunta — Que país é este? — pode ser aplicada a outros países, e que todo país é algo esquizofrênico: o que sonhamos e o que todos fazem dele. Em relação à forma, ao uso dos versos longos, eu estava carecendo deles para me exprimir, porque nos anos de convívio com a vanguarda, minha poesia estava contida, castrada, modelada pelo parnasianismo vanguardista.

• Que País é Este? foi publicado num momento em que havia a possibilidade da abertura democrática. Naquele livro, o senhor aborda o País, tanto do ponto de vista do brasileiro quanto do sujeito exilado e ainda sob a ótica do exilado dentro do próprio país. Em relação às suas expectativas, daquele momento, o que lhe causou frustração e o que provocou surpresa?
Nossa grande e ingênua decepção foi achar que bastava o advento da democracia, do voto popular, da liberdade de expressão, para a gente consertar tudo. No entanto, a realidade mostrou que a coisa é mais complexa. Hoje, eu e muitos, continuamos exilados aqui dentro. Quando você tem de usar táxi em vez de seu carro, quando tem de erguer muros e instalar alarmes em casa, e quando não sabe se suas filhas e sua mulher voltarão incólumes — pelo simples fato de terem ido a uma festa ou ao supermercado —, convenhamos, é muito parecido com o clima de terror da ditadura. E há problemas terríveis, apesar de alguns avanços. No tempo do Médici, nos anos 70, tínhamos 70 milhões. Trinta anos depois, somos 100 milhões a mais. E a grande parte é constituída de pobres e de miseráveis. É uma situação desastrosa.

• O senhor é considerado um dos mais expressivos poetas do século 20. Inclusive, o site Jornal da Poesia elegeu os 20 principais poetas do país, e o senhor está entre eles. Qual a sua avaliação da poesia brasileira no século que passou (o que valeu a pena e o que foi equívoco)?
Existem várias antologias da poesia brasileira sobre o século 20 saindo por aí, e vai ser curioso ver a diferença entre elas. Na verdade, seus organizadores também serão julgados… Diria que no século passado, século 20, a poesia avançou bastante contribuindo para o amadurecimento e a problematização do País. Há essas três, ou quatro?, datas básicas: 1922 (modernismo), 1945 (geração de 45) e 1956 (neovanguarda) — e 1973 (poesia marginal). Mas há muita gente boa que não pertenceu a esses grupos, alguns dos quais, aliás, estudei em Música Popular e Moderna Poesia Brasileira. Posso dizer que há uma excelente poesia sendo feita fora do Rio e de São Paulo. Quer em exemplo? Em Natal. Só ali tem uma meia dúzia de poetas consistentes. Por seu lado, Assis Brasil tem feito um belo trabalho publicando dezenas de antologias de cada Estado, uma verdadeira arqueologia, que desfaz esses grupelhos que comandam a autopromoção e que têm acesso à grande imprensa. O grande equívoco, eu diria “impasse”, na poesia deste século, foi o concretismo. Como já disse: houve um momento em que a poesia brasileira avançou com o concretismo, e houve outro momento em que teve de avançar apesar do concretismo. Eles foram superados e não se deram conta, continuando um velho discurso.

• Qual sua opinião a respeito dos suplementos culturais brasileiros?
Há um problema sério com esses suplementos e segundos cadernos: transformaram-se em cadernos de espetáculos ou então de grandes reportagens. Acresce que são fascinados por autores estrangeiros, como se o Q.I. do editor aumentasse se ele botasse muita matéria sobre figurões de fora.

• Há crítica literária no Brasil? Ou os críticos foram substituídos por homens-release?
Todo mundo sabe que atualmente só existe um crítico no Brasil: Wilson Martins. Os outros são episódicos e corporativos: não têm uma leitura sistemática do que vai saindo e trabalham no varejo. O dano que isto causa à nossa cultura é incalculável, pois, como a produção aumenta e os críticos não existem, valores bons estão sendo marginalizados, e acabarão sepultados e esquecidos, a menos que um arqueólogo futuro os resgate.

• Existe literatura (e poesia) sem crítica?
A crítica é fundamental para configurar a literatura. Sem os estudos críticos, o famoso modernismo não existiria tal como o vemos. Esse movimento — e qualquer autor — vai crescendo na medida em que aumenta seu acervo crítico. Desta maneira, o grande crítico é um acionista poderoso dentro da empresa literária. Por isto que, quanto mais bons críticos, mais sólido é o sistema, pois ele dá a ver ao público coisas que o público por sua conta não veria. O crítico enriquece o patrimônio cultural.

• Textamentos, publicado em 1999, é um dos mais interessantes livros de poesia dos últimos tempos. O fato de ter utilizado versos curtos, comparando com obras anteriores, sinaliza que o senhor estaria burilando sua escrita ou foi apenas a maneira mais adequada de mandar o recado?
A receptividade a este livro me surpreendeu, para você ver como o próprio autor tem relativo controle sobre o que escreve. Realmente ali, como em O Lado Esquerdo do Meu Peito (1992), os poemas são menores. Alguns são o mais possível desprovidos de efeitos retóricos, parecendo simples anotações, mas só quem persegue o simples sabe como o simples é difícil. De alguma forma, Textamentos apura o livro anterior. E é curioso que este livro me fez recuperar textos escritos há 20, 30 anos que eu não sabia onde colocar em minha obra.

• Em outros livros, como, por exemplo, em Poesia Sobre Poesia, de 1975, seu texto denunciava uma erudição incrível, uma vez que o senhor recheava os poemas com inúmeras notas e observações. No entanto, em Textamentos, o senhor aborda temas cotidianos, tanto que em Gargonza, aparece a definição: “poesia é o que nos espreita/ pela fresta dos dias.” Atualmente, o senhor estaria mais concentrado no dia-a-dia em vez de revelar suas vastas referência eruditas?
Poesia Sobre Poesia foi minha Semana de Arte Moderna pessoal, minha libertação, alforria da repressão vanguardista, e ao mesmo tempo é um metalivro para poeta e teórico. Eu tive de fazê-lo para me recuperar da intoxicação teórica, daí a autogozação, poemas com cinqüenta e tantas notas de pé de página. Creio que também que a escrita da crônica ajudou a purificar minha poesia, tornando-a mais direta. Aliás, vários poemas ali são intertextualidades com minhas crônicas.

 • O senhor é um exemplo de que é possível transitar pela poesia, pela crônica e pelo ensaio, demonstrando consistência nos três gêneros.
O que faço tem a pretensão de ser sistêmico. Não que eu me policie, me castre, mas no sentido de fornecer seja na crônica, na poesia ou nos ensaios, versões diversas de uma mesma perplexidade. Assim é que, por exemplo, toda a teorização que tenho feito sobre psicanálise e carnavalização está espraiada para fora dos ensaios e exemplifica-se não só nas crônicas, como na poesia. A crônica possibilita contato amplo com o público e o exercício de uma escrita mais comunicativa. A poesia é coisa para pessoas mais especiais e exigentes. E meu ensaio pretende ser legível, ao contrário de certos ensaístas de minha geração, que pensam mal e escrevem pior ainda.

• Em Textamentos aparece um poema chamado Vida Aliterária. Aproveitando o tema, o senhor acredita que o escritor que não faz vida literária não existe?
O sistema literário anda muito pervertido, bagunçado até, à mercê dos divulgadores e dos promoters. Tem escritor que faz política literária 24 horas por dia e depois finge que tudo acontece por acaso. Olha, a vida literária é uma merda.

• Em Textamentos, a morte é um tema recorrente. O senhor percebe que a vida está chegando ao fim, que a morte se aproxima?
Em Drummond, a morte só aparece depois que sua obra está em movimento. Em Bandeira, por causa de sua enfermidade, está lá desde o princípio. Olhando-me no retrovisor, dou-me conta de que a morte esteve presente desde meus primeiros escritos, e não poderia ser de outra maneira: afinal, viver é morrer diariamente, com alguma beleza e dignidade, é claro. Talvez isso se deva também ao fato de eu ter convivido muito com a morte nas ruas e bairros em que vivi.

• Ao mesmo tempo, a abordagem não é triste. Percebo que o senhor aceita a morte e também reflete que não há por que não aceitá-la?
Concordo que sobreleva nos meus textos uma visão quase dionisíaca da morte. Aliás, é um tema que estudo em outros poetas e artistas, tanto em O Canibalismo Amoroso quanto em Drummond, o Gauche no Tempo e ainda no recém lançado Barroco, do Quadrado à Elipse.

• As pessoas da nossa geração, de 20 a 30 anos, não lêem e não se importam com a leitura. Será que os leitores são seres em extinção?
Há uns 10 anos que caí de cabeça em campanhas de leitura no país. Fundei na Biblioteca Nacional, quando lá estive entre 1991 e 1996, com uma equipe maravilhosa, o Proler, que chegou a se instalar em 300 municípios e aglutinou 33 mil voluntários. No entanto, o atual ministro da cultura conseguiu mediocrizar esse programa. Hoje, o melhor programa de promoção da leitura é da Petrobrás, chama-se Leiabrasil (www.leiabrasil.com.br), e atende a mais de 550 mil alunos. Mas você tem razão quanto ao panorama dos mais jovens. Ainda outro dia, escrevi uma crônica para o Estado de Minas sobre isto: A Última Geração Letrada, a nossa.

• Por que não há muita informação disponível a respeito de sua atuação à frente da Biblioteca Nacional?
É estranho que não se encontre notícias sobre uma coisa que é pública e notória. Sei que existe um empenho em apagar meu nome do que for possível, como se estivéssemos na ditadura Médici. Recolheram, por exemplo, o belo livro chamado Biblioteca Nacional — a História de uma Coleção, que publiquei pela Salamandra e que ganhou Prêmio Jabuti, e o reeditaram sem minha introdução, tirando de várias partes o meu nome. Estranhamente, até hoje, não publicaram meu último relatório e, volta e meia, vejo notícias de que estão “inaugurando” coisas que eu havia inaugurado há anos. É lastimável. Até mesmo o projeto Uma Biblioteca em Cada Município, que lancei em 1991, no meu discurso de posse, aparece como uma coisa que o Ministério da Cultura criou depois que eu saí.

• Em vários poemas, principalmente em versos de Textamentos, o senhor se refere a uma mesma mulher, e imagino que seja a sua esposa, a Marina Colassanti. Por meio da voz poética, o senhor comenta que uma das coisas mais difíceis de entender é, justamente, o amor. Então, na sua opinião, o que é o amor?
Em várias crônicas tratei disto. Ainda agora, acabei de ver em um jornal, alguém citando uma frase minha do livro Fizemos Bem em Resistir, que talvez resuma a possibilidade de resposta: “O amor soma desejo e paixão, é a arte das artes, é a arte final//Amor às vezes coincide com a paixão, às vezes não. Amor às vezes coincide com desejo, às vezes não. Amor às vezes coincide com casamento, às vezes não. E mais complicado ainda: amor às vezes coincide com amor, às vezes não.”

• O senhor, que já esteve em vários locais do mundo, pode afirmar que o Homo sapiens é o mesmo, independentemente do local em que resida?
Desde a adolescência quis correr mundo. Aconteceu-me, então, que por meio da literatura acabei vivendo nos Estados Unidos, França, Alemanha, tendo oportunidade de conhecer praticamente toda a América Latina, além de Rússia, China, Índia, África do Sul etc.  E viajar é uma grande escola: é um exercício de ver o outro. E uma das coisas mais interessantes, para mim, é algo que anotei no livro que fiz com a Marina sobre a queda do comunismo, quando estivemos em Moscou, em 1991: a importância do primeiro olhar, esse olhar ingênuo, desprevenido, com o qual você contempla um marroquino, um russo, um chinês ou um francês jogando petang. O segundo olhar, o olhar que vem depois, quando você já se acostumou de alguma maneira, não é tão revelador. É fascinante esse primeiro olhar, por mais enganoso que ele possa ser, pois está mais nu, mais aberto, mais apto a ver as diferenças e semelhanças. É esse primeiro olhar que o antropólogo tem que ter, é esse primeiro olhar que o poeta deve ter durante toda a sua vida. Claro que os costumes e as ideologias configuram as personalidades. Mas somos visceralmente os mesmos, apesar de nos fascinarmos com as diferenças complementares.

• Qual sua opinião a respeito da mídia impressa brasileira contemporânea? O senhor concorda que a qualidade do texto entrou em decadência absoluta?
Tenho uma certa saudade dos textos da antiga Senhor, mídia impressa em que cheguei a colaborar, embora fosse um estudante de vinte e poucos anos, em Minas. Tenho saudade do texto do Jornal do Brasil dos anos 50 e 60. Outro dia, em um debate em Vitória, após uma aula inaugural de um curso de jornalismo, um professor me falou da ambigüidade que é ensinar aos alunos fazerem um “lead”, a usar a pirâmide invertida e, por outro lado, querer que o mesmo aluno apresente um texto criativo. Eu diria que, no entanto, este é o desafio: dentro da fôrma, a forma. Claro que é possível, pois, caso contrário, teria sido impossível fazer soneto depois do Petrarca. Afinal, Camões e até Vinicius de Morais…  Agora, que eu acho que certos jornais, sobretudo os paulistas, são fissurados em demasia por autores estrangeiros em detrimento dos nacionais, isto eu acho.

• Há pessoas que só compram o jornal para ler as crônicas. Podemos dizer que os cronistas são o mignon dos jornais e que hoje o Brasil tem bons cronistas atualmente?
Mesmo essa coisa da “crônica” em jornal está se banalizando, se mediocrizando a tal ponto que qualquer um pode ser cronista. E, no entanto, isto é um métier respeitável, apesar de parecer apenas um jogo. É desnorteante, por outro lado, que os chamados “cronistas” mais lido, em geral, são os que mais escracham.

• A música popular brasileira — que já teve letristas geniais, a exemplo de Noel Rosa, Lamartine Babo, Vinicius de Morais e Chico Buarque — atualmente vive um momento de mediocridade, seja pelas letras estúpidas e monossilábicas —“Um tapinha não dói” e “Tá tudo dominado” — quanto pela mais absoluta falta de musicalidade, sem falar nos roqueiros engraçadinhos. Qual sua avaliação da música feita hoje no Brasil?
Meu livro Música Popular e Moderna Poesia Brasileira vai até os Secos e Molhados, e tenta mostrar a sintonia entre o que ocorria na série literária e na série musical. Pensei várias vezes em ampliar o estudo, reeditá-lo, mas não tive tempo. E talvez pouco interesse. A maioria dessas letras de grupo de rock eu as considero pobres, embora tenha gente até fazendo tese nas universidades sobre o assunto.

• Qual a avaliação que o senhor faz da tevê, esta senhora que completou 50 anos de existência em nosso país. O que é bom e o que é ruim na televisão brasileira?
Eu tinha e tenho esperanças de que a tevê a cabo vá melhorando as coisas. Mas existe uma grande contradição na nossa sociedade informativa: nunca houve tanta informação, e, no entanto, tanta confusão. Na era da informação massiva e maciça é variável o tipo de analfabetismo, que vai desde o analfabetismo propriamente dito ao analfabetismo funcional, até chegar ao analfabetismo tecnológico. Por exemplo, minha empregada — que é alfabetizada, escreve direito e tem tevê a cabo em casa — não usa a televisão para qualquer tipo de avanço intelectual. Ela não vê sequer o Jornal Nacional: fica nas novelas e nos programas musicais, e outros do tipo “mundo cão”. E isto é generalizado. No entanto, a televisão, sem falar no Telecurso e na Futura, é, na verdade, uma universidade aberta. Quanta coisa há ali no People and Arts, e até mesmo nesses canais tipo Wild Life, em que se pode humildemente aprender como vivem os animais para que a gente seja menos pretensioso. Mas as pessoas a assistem como se tivessem pena de pato: a informação bate e escorrega.

Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

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