Sempre que a literatura imita a vida (e tão-só), quebra a cara com feridas profundas. A literatura não deve ser, nunca, uma cópia deslavada do cotidiano, pois, aí, corre o risco de ser apenas um simulacro de si mesma. Não cabe a ela, a literatura, apenas retratar a realidade — missão do jornalismo, por mais hedonista que este seja com a desgraça alheia. Chega a ser pantagruélica a capacidade hedonista dos jornalistas em chafurdar na opressão e no regozijo causados pelas infinitas mazelas. Quando a literatura tenta ser um espelho da vida, estrepa-se. À literatura cabe vestir o escafandro e mergulhar fundo aos esconderijos onde o olhar comum vê apenas o turvo do torvelinho; não deve ficar somente nas percepções rasteiras da realidade. Enganam-se os autores que se bastam apenas na realidade. É preciso perscrutar a alma humana (leiam Dostoiévski, Machado de Assis e Nietzsche, exemplos clássicos), mesmo quando esse deambular profundo está embalado apenas de uma fina camada transparente, com uma falsa impressão de retratar uma realidade que nos espanca a cara todos os dias.
Marçal Aquino é desses escritores que se “escondem” na falsidade do cotidiano para nos dizer que a literatura deve ir sempre muito além de uma realidade perturbadora. Lidar com a violência urbana é a sua arte. Mas não engane-se ao pensar que entrarás num mundo anunciado na manchete do jornal. Sim, Aquino é um engenhoso artífice da violência e da exclusão social que, invariavelmente, leva a esta violência. Mas se só nisso consistisse a sua literatura, estaria condenado ao descaso como aí estão muitos que até lidam com temas mais amenos como o amor, amizade, nostalgia, morte — sentimentos que, assim como a violência que precede e antecede a todos, também vulgarizam-se nas mãos dos inábeis. Não é o caso de Aquino. Ele encosta o cano do revólver 38 em nossa cabeça e avisa: “vou atirar”. Sabemos que ele cumprirá a promessa com o requinte de um assassino profissional. Ou seja, frio, mesmo quando ele nos diz que “não gosto de conversar sobre o que não está visível no mundo, não sou bom nisso” (pág. 30, no conto Homens mortos, de Faroestes).
O autor sabe como poucos escancarar a vida e deixar uns olhos inquiridores a escarafunchar os nossos medos pelas frinchas de uma janela. Em Faroestes, Marçal Aquino é fiel ao estilo que o transformou em um dos mais talentosos contistas brasileiros. Ele é seco como o estampido do balaço, conciso, não gosta dos excessos, dos rodeios. É um assassino contratado e que cumpre à risca o seu trabalho com profissionalismo; não deixa pistas que o incrimine. Visita a vítima ao lado do policial que investiga o crime e diz: “trabalho de profissional”, com um risinho irônico fincado no canto da boca. Depois de contos como Renda-se, Bob Mendes, você está cercado, A partilha II e Sete epitáfios para uma dama branca (que, descalça, media 1,75 m e, nua, pesava 54 quilos), no excelente O amor e outros objetos pontiagudos (Geração Editorial, 2000), agora Aquino continua com a mira afiada nos 11 contos de Faroestes, principalmente em Trincheira, Dez maneiras infalíveis de arranjar um inimigo e Clinch. Não espere a complacência do autor. Ela não virá. Assim como na vida, há muita tristeza, desilusão, perdedores etc.
É comovente o amor revestido de ódio em Trincheira. Em pouquíssimas linhas conseguimos vislumbrar o tempo a corroer um amor bandido. Um homem está ferido em um paiol. A mulher pede ao afilhado que leve comida a ele e avisa: “diga que eu mandei falar que ele é um filho da puta nojento”. Mas ela bem que poderia ter dito: “ele é um filho da puta nojento por se meter nesse mundo imundo de crimes e me abandonar. Eu que o amo tanto…” Ou poderia dizer milhares de outras coisas, todas subentendidas na literatura de Aquino, que nos deixa várias frestas para que possamos olhar, com nossos olhos curiosos e, muitas vezes, incrédulos.
Em Dez maneiras…, encontramo-nos com um aprazível bom humor, mesmo que por trás de cada pequena história haja uma bela desgraça. A literatura de Aquino é feita de desgraças e equívocos em seus personagens. O homem que penetra as carnes da nova vizinha nunca imaginara que seu marido ausentava-se à noite por ser policial militar. Em outra história, o assobio que lhe sai involuntariamente dos lábios pode levar-lhe à morte. Sempre há um assassino que odeia assobios por ter um filho com os lábios defeituosos. Vai saber!!! Ou então, a qualquer momento um pastor evangélico pode invadir a sua casa e a sua mulher, já convertida, tentará convencer-lhe que o sexo é só para reprodução (assim como o é para os animais irracionais; vejam o exemplo do cavalo a galopar sobre a égua.); ou ainda vai dizer-lhe que a televisão é um ornamento do demônio que desagrega a família. E você que ao sair do trabalho já planejara tomar uma cerveja gelada e assistir ao jogo de futebol. E depois, quem sabe, fazer um chamego na mulher que você escolheu para dividir a desgraceira diária. A vida é assim. Em Marçal Aquino, ela é muito mais. Alguns desavisados ou incautos devem pensar que tudo em Aquino é cinematográfico (em parceria com o cineasta Beto Brant, adaptou o conto Matadores, do livro Miss Danúbio (1994), para o cinema, no bom Os Matadores, com Murilo Benício e Chico Diaz, e agora a novela inédita O Invasor (leia trecho ao lado)), mas isso é apenas mais uma nuança da literatura desse autor que estreou na prosa com os contos de As fomes de setembro (1991). Os textos de Aquino rendem bons filmes, mas isso não o faz um escritor de imagens fáceis. Não que o cinema seja isso. Muito pelo contrário. A adaptação de Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, com certeza, há de provar isso.
Mas como todo assassino profissional, Aquino também falha em suas missões. A ironia de Ferrugem (o irmão conversa com a irmã, mas o autor quer ludibriar o leitor e levá-lo a pensar que são marido e mulher) é desnecessária, sem função. Nem mesmo o drama de Olegário faz algum sentido. Um tiro que saiu pela culatra, mas sem ferir o bandoleiro. É, essa vida de assassino, tem lá os seus percalços.
• Todo escritor que se preze deve “cavar um buraco perto de um inimigo”, como diz Jerome Rothenberg, na epígrafe de Faroestes?
A epígrafe do Rothenberg tem mais a ver com o conteúdo do Faroestes do que propriamente com a atividade de escrever, segundo entendo. Às vezes, porém, o próprio escritor é seu maior inimigo. Nesse caso, o jeito é cavar não um buraco, mas uma trincheira.
• Em um trecho do conto Homens mortos, o narrador diz “não gosto de conversar sobre o que não está visível no mundo, no sou bom nisso”. Essa frase é uma grande antítese, pois uma de suas maiores virtudes é realmente mostrar o visível no mundo, por meio dos contos. Como mesclar “realidade” e ficção sem perder o domínio sobre o conto?
Meu ponto de partida é sempre o real. Um diálogo, uma frase, um rosto, um gesto. Qualquer coisa vista, ouvida, sentida serve como ponto de partida. Creio que o que faço é criar biografias imaginárias para isso que me vem do real. Nunca sei o que vai acontecer nas histórias, descubro na hora em que estou escrevendo. Essa é a grande mágica, a meu ver. Não planejo nada. Apenas fico atento. Talvez esse seja meu grande mérito: estar atento ao que se passa ao meu redor. Escrevo porque vi um pai abraçado ao cadáver do filho num pronto-socorro de um lugar em que os carros, as casas, as pessoas e até os cachorros eram empoeirados. Escrevo porque uma mulher certa vez me mostrou uma tatuagem num lugar muito secreto. Escrevo porque acho que a literatura é o único lugar em que lucidez e loucura dialogam. Escrevo quando acho que tenho uma história que vale a pena ser compartilhada. Escrevo porque meu pai, até hoje, aos 82 anos, é um puta contador de histórias. Escrevo para tentar entender e para me confundir também. Escrevo porque morro de saudades de lugares onde nunca estive — daí a gana de estabelecê-los, fundá-los. Escrevo porque gosto. Acima de tudo.
• A divisa entre tristeza e esperança é muito frágil em sua literatura. A cada passo, o leitor está entrando em um desses territórios. Num país como o Brasil, a desgraça ainda é matéria-prima inesgotável para o escritor?
Acho que, mais que a desgraça, o ser humano (e sua capacidade invencível de gerar miséria e maravilha) é matriz inesgotável para a ficção. Basta sair à rua e comprovar. Ninguém fala em felicidade nos meus textos. Acho que alguém feliz daria uma boa nota na coluna social, nunca uma boa narrativa. Me interessa escrever sobre o que me espanta no mundo. Não sei se há esperanças nos meus contos. Mas não creio que essa seja a função de qualquer escritor que se preze. Para isso, existem os livros de auto-ajuda e os livros de preces. A literatura deve causar desconforto.
• Um bom conto não pode errar o alvo, independentemente de sua extensão (o brevíssimo Trincheira é um dos melhores contos de Faroestes). Quantos tiros são necessários ao contista para derrubar o leitor?
Cortázar comparava o conto ao nocaute numa luta de boxe (cabendo ao romance vencer por pontos). Adoro o texto breve, aquele que expõe certas realidades, aludindo apenas a outras. Gosto de Trincheira também. Não tenho um plano de trabalho, ou seja, nunca digo “vou escrever um texto curto ou mais longo”. Deixo que a história se conte (aliás, a grande mágica pra mim é ir descobrindo, aos poucos, junto com os personagens o que vai acontecer). Um bom conto curto (de outros autores) sempre me noucauteia. Porque fico pensando neles muito mais intensamente e por muito mais tempo do que quando leio certos romances caudalosos.
• O senhor mantém uma excelente parceira com o cineasta Beto Brant, responsável por filmes como Matadores e o mais recente O Invasor. Até que ponto o cinema influencia a sua obra?
Sempre fui fã de cinema. Fui pela primeira vez aos cinco anos. Foi uma descoberta. É natural, então, que apareçam no que escrevo certos procedimentos caros à narrativa do cinema. Escrevi quatro roteiros com o Beto Brant, a partir de textos meus (Os Matadores, 1997; Ação entre Amigos, 1998; O Invasor, 2001; e O amor e outros objetos pontiagudos). Mas minha ligação com o cinema foi acidental. O Beto queria adaptar Matadores, o conto, e os roteiristas não conseguiram resolver a coisa como ele desejava. Então fui chamado — afinal, era o autor da história e, supostamente, o cara que conhecia o que ainda estava por se contar, o que se escondia nas dobras do texto literário. Foi apenas uma questão de adequação de linguagem (eu tinha aprendido roteiro na faculdade). Continuo achando, porém, que minha casa é a literatura. É onde me sinto à vontade. Tenho prazer em fazer os roteiros. É um desafio. Sair de um território em que a sutileza e a alusão reinam para um lugar em que o que importa tem de ser dito de forma clara, até redundante, sem rodeios. Até porque o roteiro é um ponto de partida para uma criação coletiva (entrarão depois as concepções do diretor, dos atores — e até da figurinista. O roteiro de Cidadão Kane é um piada perto de qualquer parágrafo de Dostoiévski. Como se trata de contar uma história, o roteiro me interessa. Já li por aí algumas vezes que minhas narrativas são cinematográficas. Tudo bem, não me incomoda. Tem mais a ver com meu passado — de cinéfilo — do que com meu presente — de roteirista. A literatura está para o roteiro assim como o erotismo para o sexo explícito. O ideal num roteiro, me ensinou minha amiga Aline, seria informar até mesmo o peso do personagem (eventualmente dá tempo de o ator escalado considerar uma temporada num spa). Só uma vez senti aquele negócio de ter prazer vendo um diálogo que escrevi (no livro, frise-se) sendo dito por alguém de carne e osso (no caso, mais osso do que carne: o ator havia passado por um spa). Minha ligação com a literatura é romântica: acredito que só vale a pena escrever quando há uma história (um flash de vida) que merece ser compartilhada. Minha ligação com o roteiro é mais profissional, se é que se pode falar em “profissionalismo” quando o assunto é cinema brasileiro. Minha ligação com o cinema mudou mais minha maneira de ver o cinema do que a literatura. Hoje, presto mais atenção a detalhes dos filmes que não me atraíam anteriormente. Tento aprender com quem gosto (timão: Bertolucci, Lang, Kubrick, Scorsese, Fellini e um bando de novos que me interessa — Hal Hartley, Abel Ferrara, Bruno Dumont, os Cohen, por aí. Minha casa, porém, continua a ser a literatura. Quer ver? Quando me ocorre uma idéia, penso sempre: daria um bom conto. Nunca penso: daria um bom filme.
• Na aspereza de seus contos (violência, tiros, mortes, tristeza) há uma poesia espreitando tudo com muita força. Como a poesia influencia a sua prosa? E como está a sua produção poética, já que há dois livros de poesia inéditos em suas gavetas?
A poesia me interessa como leitor. Está tudo lá. Ai do prosador que não dá atenção a ela. Fiz poesia no começo. Publiquei dois livrinhos (A depilação da noiva no dia do casamento, 1984, e Por bares nunca dantes naufragados, 1985). Não me arrependo deles, até porque de nada adiantaria (o mea-culpa do escritor é assunto de interesse miúdo). Meus poemas sempre foram contaminados pela prosa. Teve um momento em que passei a detectar de uma forma muito forte tramas e personagens na poesia que eu estava fazendo. Meu último livro, Abismo — modo de usar, de 1988, é um retrato dessa crise. Foi premiado em Minas em 1990, mas mantive inédito. Por higiene. E por respeito aos outros poetas, os de verdade sobretudo. Voltei meu esforço todo para a prosa. Nunca mais escrevi poemas. Fiquei mais feliz com isso. Ao menos um poeta de merda a menos. Mas leio poesia. Sempre. E já arrumei namorada com a minha prosa (impressa, é óbvio).
• A antologia de Nelson de Oliveira (Geração 90 – Manuscritos de Computador) reúne alguns dos principais contistas surgidos na última década. Depois de um estado de inanição, parece que o conto reconquista uma força necessária. Como o senhor avalia o atual panorama da literatura brasileira?
O conto, glória dos anos 70 e maldição nos 80, parece ter-se revitalizado (mas do ponto de vista das editoras apenas; independentemente do quadro, sempre houve gente escrevendo bons contos por aqui, gente que não conseguia publicar). O que aconteceu é que quem vinha escrevendo nos 80 encontrou canais nos 90 — e acabou estimulando outros escritores mais jovens, atraindo-os para o gênero. Há grandes contistas em atividade — Pellegrini, Luiz Vilela, Sérgio Sant’Anna — e um punhado de jovens escritores que merecem ser lidos com atenção (Nelson de Oliveira, Luiz Ruffato, Mauro Pinheiro, Rubens Figueiredo e um longo etc.).
• O senhor também foi jornalista durante muito tempo. De que maneira o jornalismo influencia a sua obra?
Meu trabalho como repórter — fiz até polícia — foi fundamental pra conhecer o mundo. Essa curiosidade de repórter nunca me abandonou. O escritor é, acredito, uma espécie de legista da realidade. É só ficar atento. Do ponto de vista da linguagem, o jornalismo me educou ainda mais para a concisão, para tentar dizer o que precisa ser dito com o mínimo. O jornalismo nunca me atrapalhou como linguagem. O dia-a-dia nas redações, porém, deixou de me interessar em um certo momento. Mas permaneço curioso. Olhando as pessoas na rua e pensando em biografias para elas.
• O que pressupõe um bom conto?
Gosto do conto que me ensina algo sobre o mundo e as pessoas. Por isso me interesso pela literatura realista. Pra me convencer com vôos experimentais, o cara tem de ser muito bom. Existem exemplos: Campos de Carvalho, Nelson de Oliveira e o Manoel Carlos Karam. Talvez um bom conto seja aquele que deixa alguma coisa para a gente depois que a leitura acaba. O gênero, por definição, deve ser breve. Então tem de ter punch. Tem que levar o leitor à lona, nunca às cordas — como acontece com certos bons romances, que vencem por pontos, contudo. Um bom conto é uma iluminação. Uma descarga. Uma trilha curta que não deixa, porém, que você enxergue o ponto de chegada. Um bom conto é aquilo que você acha um bom conto. E pronto. O resto devem dizer críticos e acadêmicos. Nunca o escritor.