Em um momento em que o bom-mocismo parece regra nas redes sociais e na literatura, com escritores se comportando como bastiões da moral imbuídos da tarefa de mudar o Brasil e o mundo por meio de narrativas virtuosas, é um alento finalizar um romance tão violento, ambíguo e caótico como Porco de raça, de Bruno Ribeiro, vencedor do Prêmio Machado DarkSide.
Não me entenda mal: o livro inteiro é uma enorme crítica social, sim, mas passa longe de ter um tom “afetado”, panfletário. “Penso que a história deve puxar as questões sociais, não o contrário”, explica o autor em entrevista ao Rascunho. “A força da literatura está na ambiguidade e construí-la em uma história tão carregada de questões sociais foi um grande desafio.”
A jornada de Porco Sucio, que é sequestrado e se torna uma espécie de superstar no submundo das lutas clandestinas, levanta um sem-fim de questões relacionadas ao racismo e à falibilidade do sistema econômico vigente. Além disso, toda narrativa é puxada por um tema imortal da ficção: os dramas familiares.
O foco é na relação do protagonista — um “herói perdidão”, como é descrito a certa altura — e seu irmão, Bruno, um político corrupto — bem-sucedido, obviamente — com ares quase caricaturais. A grande sacada é que não há heróis ou vilões, juízos de valor em cima dos personagens, mas pessoas tentando vencer de alguma maneira. Emprestando um verso do Criolo, dá para dizer que, em Porco de raça, “ninguém vai pro céu”.
A obra inteira se assemelha a um pesadelo sangrento, com pancadarias brutais que lembram muito as do filme Oldboy. “A estrutura cheia de elipses, delírios e digressões emula um universo onírico”, diz Ribeiro. “Queria que o livro fundisse gêneros e arranjos familiares de maneira pouco óbvia, flertando com o inconsequente e o nonsense.”
Essa violência toda acompanha o autor desde que ele começou a escrever narrativas breves. Se antes o interesse por essa manifestação era mais gráfico, agora Ribeiro utiliza-a de modo a pensar a realidade. “Não é só o sangue e a transgressão, mas as origens disso”, comenta. “De onde parte essa violência e por que o nosso mundo é tão repleto dela?”
E tudo indica que ela não vai acabar em Porco de raça. Ribeiro acabou de fechar contrato com a Alfaguara e tem dois romances em andamento. “Ambos flertam com o realismo urbano, o absurdo e o insólito”, revela. “Um deles é uma mistura de Patrícia Melo com Lovecraft e o outro é uma fusão torta de Grey’s anatomy com Zé do Caixão.”
• Porco de raça foi escrito em 2014 e passou por muitas transformações até ser lançado no ano passado. O que te levou a ficar “preso” no livro por tanto tempo?
O próprio livro exigiu esse tempo. Fiquei travado nele por questões técnicas: a trama não andava, o protagonista parecia não ter força, estava na dúvida se seguia na primeira pessoa ou mudava para a terceira. Então fui deixando-o de lado e avançando com outros projetos. Só consegui destravar e finalizá-lo em 2020.
• A estrutura do romance foi pensada para emular uma espécie de pesadelo?
Sim. A estrutura cheia de elipses, delírios e digressões emula um universo onírico. Queria que o livro fundisse gêneros e arranjos familiares de maneira pouco óbvia, flertando com o inconsequente e o nonsense. Uma construção narrativa nada hegemônica, asséptica ou inofensiva. Os sonhos ou pesadelos são indomáveis, caóticos. Busquei isso na construção do alicerce do romance.
“A questão racial no Brasil é cruel em um nível que nos faz mais indagar do que afirmar.”
• Porco de raça é uma enorme crítica social, mas não há “afetação” no tom. A preocupação maior parece ser com a história em si, e não com algum tipo explícito de denúncia. O que pesou mais na construção da narrativa?
Penso que a história deve puxar as questões sociais, não o contrário. O que mais pesou para mim foi a construção da ambiguidade, da ideia de que não existe um irmão certo, ambos são atravessados pela mesma experiência do racismo — esse arame de outros séculos — e precisam sobreviver, cada um a sua maneira, a esse trauma permanente. A força da literatura está na ambiguidade e construí-la em uma história tão carregada de questões sociais foi um grande desafio. Afinal, o social é só uma peça da máquina, não ela toda.
• O Porco Sucio parece ser um daqueles personagens doentios que, no final, acabam conquistando o leitor. É preciso desse tipo de protagonista para dar conta da complexidade humana?
O Porco Sucio é um pobre-diabo, muito inspirado nos personagens de Dostoiévski, Ana Paula Maia, Evandro Affonso Ferreira e Lima Barreto. O tipo de herói torto, que beira o odiável, entretanto, humano. E para dar conta deste tipo de humano, tão real, é preciso estar preparado para o absurdo e a contradição constante. Um personagem que se crê verossímil é aquele repleto de problemas — não só em seu caráter, mas em sua construção — e de camadas. Acho que a complexidade humana é essa espécie de boneca russa infindável, onde a cada pedaço retirado surgem outros e mais outros. Somos infinitos e incoerentes.
• Ainda sobre o Porco Sucio: ele me pareceu cativante, meio como o Alex, do Laranja mecânica. Pensou o personagem para dar esse nó na cabeça de quem lê? Algo do tipo fazer com que o leitor questione sua própria moral?
Sem dúvidas. Amo Laranja mecânica. Um bom personagem é aquele que joga a bronca na mão do leitor. Personagens bem construídos seguindo preceitos fechados de arcos e outros paradigmas não me interessam muito na literatura. Em outros formatos até vejo sentido, mas na literatura prefiro personagens que causam curtos-circuitos e desafiam a lógica e os padrões. O leitor é que precisa desatar o nó, não o escritor. Meu trabalho é confundir, não explicar.
• Seu livro de estreia, Poluição mental, traz quatro contos descritos como brutais e ultraviolentos. Porco de raça não deixa de ser uma narrativa assim. A violência é uma de suas obsessões literárias? Quais são elas?
A violência é algo que me acompanha desde que decidi escrever. Antes eu tinha uma preocupação mais gráfica com essa violência, hoje a penso como um mecanismo mais complexo. Não é só o sangue e a transgressão, mas as origens disso. De onde parte essa violência e por que o nosso mundo é tão repleto dela? Acredito que o ato de nascer e o de morrer são violentos. Assim como as paixões, amores, afetos e ódios. Toda espécie de sentimento parte de um ato de violência, controle e descontrole revezando em um estado permanente de eletricidade, e me interesso por esse desvio que faz parte de nós, o momento da faísca, do tudo a perder ou ganhar. Somos animais violentos do início ao fim; e busco emular isso nas minhas tramas e na linguagem com a qual as executo.
• Há trechos doídos em Porco de raça, como quando se diz que “um branco com tédio e depressão é bonito” e um negro na mesma situação é vagabundo. Quais sentimentos mais te acompanharam durante a escrita?
Sentimentos conflitivos. Não consigo me decidir entre os dois irmãos. Quem é o certo ou errado? A família do Porco Sucio é ruim? Por quê? E a avó Gavita? Muitas dúvidas, constantemente, e é este sentimento que gostaria que o leitor sentisse. A questão racial no Brasil é cruel em um nível que nos faz mais indagar do que afirmar. Nos olhamos no espelho e não sabemos se somos humanos. Eles não só ferraram nossa história e identidade, ferraram nossa mente. Quem poderia ser capaz de julgar algum personagem negro deste livro? Eu não.
• Os diálogos que o Porco Sucio tem com a vó Gavita e com a mãe são pesados. Algumas questões que atormentam o personagem, como buscar um lugar no mundo e tentar ser real consigo mesmo, já pesaram — ou pesam — para você?
Pesam bastante. Assim como o Porco Sucio e o seu irmão, Bruno, acredito que é uma luta brutal conseguir um lugar neste mundo e ao mesmo tempo ser fiel as suas crenças e convicções. Não é fácil ser negro no Brasil e buscar uma identidade e, principalmente, uma subjetividade. O artista negro não pode ser subjetivo, é uma figura fadada ao histórico, ao retrato de si, ao bom-mocismo. Tento bater de frente com isso.
• O nome da parte um, Invicto no fracasso, vem de um verso do Black Alien, isso? Qual tua relação com o rap e com a música em geral? Ela influi na tua literatura?
Influi bastante! O rap me influencia no flow, no ritmo, na cadência, nas letras, na velocidade de ataque e na mensagem bélica. Da putaria ao sacro, das vielas ao asfalto, da guerra à paz. É um gênero musical que abraça tudo e abraça com potência e paixão. Com violência. Racionais, Sabotage, 2Pac, Kanye West, Djonga… Até a galera do trap hoje mexe com a minha cabeça. O rap como um todo é um pilar importante das minhas referências, assim como o Black Alien, que a meu ver é quase como uma extensão do Porco Sucio.
• A poesia do Cruz e Sousa é uma constante no livro. O que o autor representa para você? E qual a importância desse gênero na tua vida e escrita?
Representa criatividade e uma baita inspiração. Gosto muito de poesia, inclusive, tento seguir a risca a frase de Baudelaire: “Seja poeta, mesmo na prosa”. Já os poemas do Cruz e Sousa eram muito inventivos e fora da curva. E isso me interessa bastante. Ver como ele abraçou o movimento simbolista para si. Talvez por isso não conquistou a fama, nem chegou perto dela. Era um poeta que, mesmo fazendo denúncias raciais em alguns dos seus versos, rompia com padrões e esmigalhava a linguagem com sua criatividade. Isso devia ser visto como errado pelos Olavos Bilacs de plantão. Um negro não deveria estar fazendo isso naquela época. O engraçado é pensar que hoje em dia muita gente pensa a mesma coisa. Todas as épocas são a mesma época.
“Não é fácil ser negro no Brasil e buscar uma identidade e, principalmente, uma subjetividade.”
• Porco de raça tem uma pegada cinematográfica, com umas pancadarias que lembram um misto de Old boy com Kill Bill. O cinema influencia tua ficção?
Oldboy e o cinema oriental são algumas das principais influências do meu trabalho! Takashi Miike, Kiyoshi Kurosawa, Bong Joon-ho. Amo muito. Mas algo que influencia bastante os meus escritos também são as artes plásticas. Francis Bacon, por exemplo, esteve muito presente na hora que eu pensava as partes de luta ou mais gráficas do romance.
• Tem vontade de ver Porco de raça adaptado para o cinema? Há algum movimento nessa direção?
Tenho, sim. Algumas produtoras já entraram em contato e estamos vendo como seguir ainda.
• Dos contos de Arranhando paredes (2014), seu primeiro livro publicado por editora, até Porco de raça (2021): como sua escrita amadureceu? E como foi sair da forma breve para o romance?
Saio das formas breves e retorno a elas. São modos de criação distintos, a forma breve busca atingir o máximo de efeito com o mínimo de movimento, o romance busca o máximo de movimento para atingir um efeito que vai sendo acionado aos poucos, explodindo aqui e acolá, no banho-maria. Gosto dos dois formatos e pretendo explorá-los, sempre. Quanto ao meu amadurecimento na escrita, acho que os leitores podem responder essa pergunta melhor. Tento não arquitetar tanto meus passos, vou fazendo sem olhar pra trás, planejar ou pensar se melhorei ou não. Acredito que tenha avançado algumas casas, mas isso não é algo que eu goste de ficar pensando.
• Ainda sobre transitar por estilos, você venceu o 1º Prêmio Todavia de Não Ficção. O que dá mais conta de interpretar a realidade: ensaio ou ficção? São gêneros que se complementam na sua escrita?
Para a Todavia, escrevi um livro-reportagem sobre um crime que ocorreu em uma cidade do agreste paraibano. Sem dúvidas é uma das coisas mais difíceis que já escrevi na vida. Não só por conta da apuração do caso, mas também no sentido de ter que dar conta de uma realidade tão brutal, sem transgredi-la, atendo-se aos fatos. Expor pessoas, entrevistar vítimas e culpados, saber que cada linha do livro terá um efeito direto na vida, entender o impacto disso tudo: é doloroso e vem sendo difícil. Mas acredito que será um trabalho de fôlego e que terá algo a revelar sobre nós, homens. Quanto a dar conta da realidade, acredito que ficção e não ficção conseguem isso. A ficção não é o oposto do real, é um alargamento. Um farol. A não ficção tem um efeito mais direto neste real, ela é, de fato, esse real. Obviamente que isso faz com que ela seja uma bomba de efeito mais concreto. Enquanto gêneros, sem dúvidas ambas se complementam. A não ficção de qualidade se utiliza de todos os elementos da narrativa de ficção; por outro lado, a ficção se alimenta bastante das nuances do real, às vezes de forma frontal, outras mais discreta, às sombras.
• Qual foi a importância dos cursos de escrita criativa na tua forma de encarar e fazer ficção? E agora, como professor, como tenta auxiliar quem escreve?
Foi muito importante o mestrado que fiz em escrita criativa. Morei cinco anos na Argentina neste período e absorvi bastante a literatura latino-americana no meu trabalho, algo que a meu ver melhorou bastante a minha visão e entendimento. Fora isso, aprendi a ler melhor, a estudar o uso da linguagem, ver e analisar o procedimento de outros escritores, criticar textos, ver a importância da poesia na prosa, das outras artes, etc. Como professor é uma baita honra acompanhar os escritos dos alunos. De alguma forma, acabo aprendendo com eles. Literatura é um labirinto com muitas entradas e saídas. É importante entender o projeto de cada aluno e, em cima disso, avaliar e ensinar o melhor percurso para ele. Acredito também que o papel da escrita criativa está em ensinar os passos, mas saber que neles há muitos tropeços. A minha formação foi muito pautada neste sentido: faça o que você bem quiser, mas entenda que há responsabilidades que só você poderá domar dentro dessa liberdade absoluta. O professor deve ser um guia neste campo aberto e nebuloso.
“A violência é algo que me acompanha desde que decidi escrever.”
• Você acaba de assinar com a Alfaguara e tem dois romances em andamento. Pode contar um pouco do que vem por aí?
Sim, fiquei muito feliz com isso! São dois romances que comecei a escrever faz um tempinho, ambos flertam com o realismo urbano, o absurdo e o insólito. Um deles é uma mistura de Patrícia Melo com Lovecraft e o outro é uma fusão torta de Grey’s anatomy com Zé do Caixão.
• Para finalizar, uma pergunta que fazem (ou não fazem, no caso) ao Porco Sucio: a América Latina é uma alucinação?
Das mais reais e cruéis que existem.