Uma mulher transparente, o mais recente livro de Edgard Telles Ribeiro, completa uma trilogia sobre a temática da repressão — os outros títulos são O punho e a renda (2010) e Damas da noite (2014). Mas o autor faz uma observação: “Uma mulher transparente também é um livro sobre a ditadura militar. Mas nem de longe ‘apenas’ sobre ela”.
O romance é narrado por um escritor que elabora uma ficção que se passa durante o golpe militar de 1964. “Tanto o manuscrito redigido por meu personagem, quanto meu livro, lidam, sim, com a ditadura, mas como pano de fundo de mistérios de todo tipo”, afirma Ribeiro, que acrescenta: “O narrador é vítima de sua história. Ele nada planeja, é levado pelo enredo. E o enredo vai se abrindo diante dele. Nosso amigo limita-se a correr atrás de seus personagens, ou ser aspirado pelos rodamoinhos por eles criados”.
A Todavia, editora que publica Uma mulher transparente, justifica em seu site o motivo de ter viabilizado esta narrativa de Ribeiro: “Livro que trata de forma envolvente das cicatrizes políticas e emocionais deixadas pela ditadura”. O autor diz que o comentário é “bastante adequado”, mas acrescenta que seu romance também trata de ilusões perdidas. “[Há] personagens que não são bem o que parecem ser, situações esquivas ou mal resolvidas, esperanças que se dissolvem face a realidades inglórias”, completa.
As mortes misteriosas de três personagens femininas perpassam Uma mulher transparente. “Chego a achar que, em dado momento, as três mulheres de certa forma empalidecem (como eixo central do drama), para ceder espaço à dúvida e ao desencanto”, comenta Ribeiro.
O escritor concedeu entrevista ao Rascunho por e-mail no fim de maio e — por meio da troca de mensagens — falou, principalmente, sobre Uma mulher transparente. A partir de questões do livro recente, Ribeiro, de 73 anos, autor de 12 títulos (nove romances e três coletâneas de contos), também comentou outros temas, entre eles, a morte da vereadora carioca Marielle Franco (1979-2018).
• A morte da vereadora Marielle Franco dialoga com a morte de uma personagem baleada, em maio de 1962, em Uma mulher transparente? Caso sim, de que maneira?
Dialoga, apenas, pela vertente da impunidade. Sob esse prisma — o prisma de uma chaga que envergonha nosso país, já que corrói qualquer expectativa de justiça — as duas mortes teriam algo a ver. Vale lembrar, antes de dar sequência a minha resposta, que dezenas de casos semelhantes ao de Marielle permanecem sem solução Brasil afora, dentro e fora da área dos direitos humanos. Assim, ainda que os assassinatos dessa jovem militante e seu motorista venham a ser esclarecidos até a publicação da presente entrevista, as dezenas de crimes não solucionados continuarão a clamar por soluções e alimentar nossa indignação. E haverá tristeza maior do que saber que, para centenas de famílias, reinará a impunidade? Voltando agora a sua pergunta: excluído esse denominador comum, nada aproxima as duas mortes, na medida em que muito pouco une o Rio de Janeiro de 1962 (quando minha história tem início) ao Rio de Janeiro do corrente ano de 2018, quando Marielle foi vitimada. O que em 1962 poderá ter chocado uma cidade e seus habitantes, por sua excepcionalidade, hoje virou rotina no fogo cruzado permanente entre os traficantes e membros de milícias variadas. Além do mais, no caso de minha personagem, fica bastante claro que nenhuma motivação política poderia ser associada ao crime de que ela foi vítima. Ao contrário do assassinato de Marielle, o mistério que envolve a mulher do vestido vermelho terá tido outras origens.
• Em Uma mulher transparente, o narrador prepara um segundo livro. Dois personagens conversam com ele sobre essa obra. Tal situação teria a finalidade de expor aos leitores o enredo ou também é uma maneira, mesmo sutil, de falar sobre censura a obras de arte?
O objetivo dessa opção narrativa é envolver o protagonista com os dois personagens a que você alude. E, por essa via, permitir que eu, como autor, tente atrair os leitores para minha trama. Exposto o fio da meada, restaria então saber até onde o novelo poderia chegar. (E se censura há nessas conversas, ela reside nas reticências pessoais de que a mulher transparente dá provas ao relutar em passar informações que a exponham.) Paralelamente, o recurso narrativo também confere certa mobilidade ao protagonista masculino (narrador), que já no segundo capítulo volta suas atenções para o antigo crime. E daí, aos poucos, vai se abrindo para outros mistérios. Mesmo porque vinte anos separam esses dois primeiros capítulos. E muito terá ocorrido entre 1962 e 1982. Daí em diante, essa dinâmica permite ao livro se reinventar a cada momento, fazendo com que a história corra solta sobre trilhos que, por sua vez, também obedecem a percursos inesperados. E assim é que o mistério envolvendo uma primeira mulher dá origem aos segredos de que é parte a segunda, até chegarmos ao enigma que parece pairar sobre a terceira — e… Melhor ficar por aqui.
• Se o leitor não tem tanta certeza, a partir da página 50, fica mais claro, de maneira sutil, que Uma mulher transparente é um livro sobre a ditadura militar. Há outros livros, cada vez mais livros sobre o tema, publicados recentemente no Brasil. O assunto, ditadura militar, precisa ser mais debatido, estudado? Falta falar, evidenciar muito sobre a questão?
Se você me permite um ligeiro reparo, eu diria, antes de mais nada, que Uma mulher transparente também é um livro sobre a ditadura militar. Mas nem de longe “apenas” sobre ela. (Não por acaso, no final do livro, o narrador chega a ficar meio indignado quando seu editor equivocadamente equipara o manuscrito dele à ditadura). Ou seja, tanto o manuscrito redigido por meu personagem, quanto meu livro, lidam, sim, com a ditadura, mas como pano de fundo de mistérios de todo tipo, alguns dos quais (os dois primeiros crimes, por exemplo) nada devem ao estado de exceção vivido no país por vinte anos. Isso dito, porém, não resta dúvida de que o tema da ditadura não pode cair no esquecimento em nosso país. Daí eu ter dedicado dois livros ao assunto — ambos publicados pela Record. E de ter agora escrito esse terceiro. Não se trata apenas de buscar justiça, ainda que tardia. Trata-se de defender nossa claudicante democracia. A geração atual de jovens não pode ceder à ilusão de que a democracia que ganharam de mão beijada (e da qual se beneficiam como a minha não se beneficiou por vinte anos) é invulnerável a ataques das mais variadas procedências. Mesmo porque esses ataques não tomam necessariamente a forma de tanques comandados por generais desprovidos de caráter ou de pudor. Há outras formas mais atuais e sofisticadas de golpes, das pressões econômicas que nos afligem no dia a dia à incapacidade do Estado em defender nossa soberania ou nossas riquezas naturais.
• Poderia se aprofundar no que seriam essas “formas mais atuais e sofisticadas de golpes”?
Se você observar de perto o que ocorre no Brasil de hoje, e conseguir fazê-lo de maneira desapaixonada, que leve em conta determinadas decisões tomadas por uma presidência de legitimidade no mínimo questionável (e um Congresso transformado em balcão de negócios), notará que uma série de medidas vem sendo adotada para neutralizar certas conquistas progressistas nas áreas econômicas, políticas, ambientais, sociais e trabalhistas do país. Medidas essas sempre voltadas para atender interesses de uma classe dominante — seja ela de matiz empresarial, originada no sistema financeiro ou ligada ao agronegócio — e todas a pretexto de “reerguer a economia devastada pelas desonestidades cometidas em recentes governos”. Ainda que desonestidades e abusos tenham, de fato, sido cometidos por governos anteriores, e que os culpados devam prestar contas à justiça (como alguns já vêm prestando), esse efeito “corretivo” que vem inspirando tantas mudanças estruturais claramente disfarça algo de muito mais grave, que por vezes beira a irresponsabilidade: o visível desmonte de várias dessas conquistas progressistas, afetando os avanços obtidos em décadas de esforços no campo ambiental, no terreno da legislação trabalhista, no uso e distribuição da terra com responsabilidade, nos monopólios até aqui sagrados de nossas riquezas naturais (hoje franqueadas ao capital estrangeiro de forma para muitos predatória), no desprezo por nossas minorias étnicas, etc. etc. Se você então se der ao trabalho de fazer um flashback de cinco décadas e regressar ao golpe militar de 1964/1985 (este sim, militar no sentido bem tradicional), verá que essas mesmas operações de desmonte foram realizadas meio século atrás sem tirar nem pôr — só que às claras e com o apoio das baionetas. Sempre para atender à demanda dessas mesmas classes dominantes, para não falar nos interesses externos escusos (que hoje não encontram resistência alguma de parte do atual governo). Ou seja, boa parte do esforço de resgate de nossa soberania realizado pelos governos civis a partir do processo de redemocratização que pôs fim ao golpe militar (de 1985 em diante), de que é ilustração maior a conquista de uma Constituição identificada com os anseios sociais de nossa população, está hoje ameaçada — sem que os tanques tenham tido necessidade de saírem de seus quartéis. E hoje, como no passado, a grande mídia, com as honrosas exceções de alguns poucos profissionais idôneos, aderiu às elites de que é (e sempre foi) fiel intérprete e porta-voz ativa.
E haverá tristeza maior do que saber que, para centenas de famílias, reinará a impunidade?
• Gilda foi torturada por agentes da ditadura militar. Há descrições fortes, em especial algumas falas da personagem, a exemplo do que se lê na página 71: “— Eles me interrogaram por horas a fio, sem me tocar. Depois, enquanto esperavam ordens superiores, me curraram. E aí me sedaram. Acordei nua em meu caixão”. Como você criou Gilda?
Entre 2008 e 2010, quando escrevi o primeiro livro de uma trilogia que versaria sobre a temática da repressão, entrevistei algumas mulheres que tinham sido presas e torturadas no Brasil. Várias passaram anos exiladas em países vizinhos — e também acabaram sendo testemunhas de horrores por onde andaram (como ocorreu com duas delas no Chile de Pinochet). Algumas dessas histórias deram origem a cenas do primeiro livro (O punho e a renda); outras são evocadas no segundo volume da trilogia (Damas da noite); e algumas serviram de base para determinados relatos, entre os quais o que inspirou esse terceiro romance.
• Após conversarem em um bar, Gilda e o narrador têm a possibilidade de seguir pelas ruas do Rio de Janeiro, na década de 1980. Então, o narrador diz: “Caminhar no calçadão, a esta hora da noite, não é lá muito seguro”. Imediatamente, Gilda responde: “Você deve estar brincando — ela disse, pagando a conta. Ou não prestou atenção ao que te contei?”. O comentário, de Gilda, sinaliza que ela é uma mulher sem medo de nada e sem nada a perder? O quanto a frase traz informações sobre a personagem?
Trata-se de uma ironia. O que ela diz (sem explicitar) significa muito simplesmente: “Então eu te conto o que acabo de te contar e você ainda acha que eu teria medo de ser assaltada por algum ladrão de galinha?!”
• Ainda não perguntei nada sobre o Herculano. Como você elaborou o personagem e a mulher dele, morta em um acidente em um barco?
Ao contrário do que possa parecer, meu romance não obedeceu a nenhum planejamento prévio. Tanto assim que, de início, escrevi apenas um conto que corresponde, sem tirar nem pôr, ao primeiro capítulo do livro. Se você reler apenas esse primeiro capítulo e fechar o livro, verá que, com um pouco de boa vontade, terá lido uma narrativa toda construída para deixar uma determinada história em suspenso no ar… Com personagens apenas delineados, podendo ter tido vidas (e participado de mortes) em tudo desconhecidas de nós. E nisso minha narrativa teria ficado — na criação de uma atmosfera, onde quase nada é dito e muito sugerido —, não fosse por insistência de dois leitores amigos que, confrontados ao manuscrito, “exigiram mais”. Curioso, não? A pedido então dessas pessoas, fui em frente. Tentativamente, de início, como quem tateia. (Como meu narrador com seu próprio texto, pensando bem…) E de capítulo em capítulo, sempre tateando, cheguei ao fim da história. Meus amigos tinham razão, creio ter valido a pena explorar a história mais a fundo. Mas para voltar a Herculano e a sua pergunta: se o livro tem muito a ver com a atmosfera de impunidade em que vivemos há séculos (desde as Capitanias Hereditárias, se você pensar bem), impunidade essa que se acirrou durante as duas décadas de ditadura militar, o livro também deve muito, no caso de Herculano, a uma permanente sensação de ambiguidade. Gosto muito de situar minhas histórias nesses universos ricos em imprecisões… Além do mais, e esse detalhe também tem sua importância, Herculano, personagem central do capítulo de abertura do livro, reaparece em seu caixão já no capítulo 2 do livro — tendo vinte anos transcorrido entre os dois capítulos iniciais da obra. Dali em diante ele só ressurge quando evocado pelos demais personagens. Isso o torna mais impreciso (e, forçosamente, mais enigmático) ainda.
• Você diz gostar muito de situar suas histórias em universos ricos em imprecisões. Gostaria de ser definido, até pela crítica, como o autor de narrativas ambientadas em universos ricos em imprecisões?
Essa sugestão de linguagem a que me referi acima (e que você retoma como base de sua pergunta) poderia se aplicar a alguns de meus livros. Ou a alguns de meus contos. Mas não à totalidade de minha obra. Em outras palavras: eu posso até “gostar de certos climas”. O que não quer dizer que eles definam tudo que escrevo.
• Em determinado momento, o narrador se dá conta de que crimes envolvem três mulheres, “a pobre infeliz caída na calçada, a jovem esposa tragada pelas águas e o ser transparente que ainda pulsava a minha volta”. Ele, o narrador, queria escrever era a respeito de três mulheres que tiveram finais misteriosos?
O narrador é vítima de sua história. Ele nada planeja, é levado pelo enredo. E o enredo vai se abrindo diante dele. Nosso amigo limita-se a correr atrás de seus personagens, ou ser aspirado pelos rodamoinhos por eles criados. Chego a achar que, em dado momento, as três mulheres de certa forma empalidecem (como eixo central do drama), para ceder espaço à dúvida e ao desencanto.
• Gilda mentiu para o narrador ao dizer que tinha filhos. Como o narrador não desconfiou dessa mentira, sobre os filhos, durante aquela conversa que antecedeu a saída de cena dessa personagem?
Você desconfiou? Pergunto porque, quando cheguei (como autor) àquela parte do texto, nem eu próprio sabia que a afirmação dela (sobre a existência dos filhos) corresponderia a uma mentira. Ou, no caso, a uma manipulação com profundas raízes de natureza psicológica. Em outras palavras, nem eu (autor) desconfiava que isso ainda ocorreria em meu texto mais adiante. E que, em consequência, esse segredo adicional de Gilda também viria à tona — como de fato veio, por obra e graça de seu irmão. O que me leva a concluir que você viu no texto… algo que nem eu próprio concebi ao redigi-lo! Daí uma velha tese minha (e de autores variados): o leitor é sempre uma espécie de coautor da história. Muitos veem nas entrelinhas algo que nem se encontra lá. O que, com frequência, acaba sendo bem interessante. Como se a literatura, à semelhança do jazz, pudesse abrir espaços para improvisações bem distantes da melodia central…
• Como escritor, compara-se a um jazzista? Em caso afirmativo, de que maneira?
Perdão, mas o “jazzista” de minha analogia, foi você. A quem devo essa interpretação curiosa a respeito de algo que não escrevi. Eu me responsabilizo, apenas, pela melodia. Você foi além dela, quem sabe com razão. Mas por sua conta e risco… A literatura (e a arte de modo geral) abrem espaços para essas viagens.
• “Após tantos anos de regime militar, com torturas e queima de arquivos, desaparecimentos e mortes, e uma censura sistemática aos meios de comunicação, aprendera que a melhora maneira de lidar com o absurdo era transformá-lo em ficção.” A frase diz respeito ao narrador de Uma mulher transparente, um escritor. Você também compartilha do ponto de vista?
No que diz respeito a essa temática, sem dúvida alguma. Foi exatamente assim que escrevi os dois livros anteriores dessa trilogia. Em um país no qual a documentação sobre os horrores cometidos durante a ditadura foi sistematicamente destruída, resta aos escritores que algo tenham farejado sobre aqueles anos de terror recriar realidades. E a legitimidade de nossos textos encontra respaldo não apenas nos poucos documentos que sobreviveram às queimas de arquivo (e nos mortos cujos corpos não foram queimados ou atirados ao mar), mas também, e sobretudo, na percepção coletiva de que algo de muito cruel e bastante perverso ocorreu naqueles anos entre nós. Qualquer família que tenha perdido um ente querido por obra da tortura acreditará em minha história. Por saber que fatos iguais e até piores certamente ocorreram pelo país afora. Mudam, apenas, os cenários. E certos detalhes objetivos. A violência e a impunidade são sempre as mesmas. O que você me diz das recentes revelações da CIA a respeito de nossos dedicados generais? Execuções sumárias de prisioneiros acorrentados encontrariam respaldo em algum manual da ESG [Escola Superior de Guerra]?
A geração atual de jovens não pode ceder à ilusão de que a democracia que ganharam de mão beijada (e da qual se beneficiam como a minha não se beneficiou por vinte anos) é invulnerável a ataques das mais variadas procedências.
• Há um fragmento de Uma mulher transparente que precisa ser mencionado, na íntegra, antes da pergunta. “É bom conversar com quem não me conhece — prossegui. — As pessoas mais íntimas tendem a ficar atentas a um lado autobiográfico, que não existe. Erram em suas suposições, correm atrás do que mal vislumbram. Com isso, nem sempre veem o que escrevo. Já quem não me conhece…/ — Só vê o texto./ — Exatamente.” É uma conversa entre o narrador e Gilda, na página 65, em que eles falam sobre um texto literário. O que está escrito também reflete seu ponto de vista sobre a recepção de uma obra? Os amigos, próximos do escritor, não conseguem ler o texto como o texto deveria ser lido?
Nem sempre conseguem — se comparados aos leitores que nada sabem de mim. Não digo que eles “garimpem o texto”, com uma lupa, atrás de possíveis referências autobiográficas. Mas ficam atentos. E, até onde imagino, isso deve atrapalhar aquilo que todo autor espera de um bom leitor: imersão total na história sendo contada. Portas trancadas, celulares desligados e foco no texto… Zero desvios que impeçam uma concentração total. (Dispersões autobiográficas incluídas.)
• Uma mulher transparente traz, entre os poucos cenários, todos selecionados criteriosamente, a Adega Pérola, no Rio de Janeiro: “Para tapas e outras especialidades espanholas ou portuguesas, não havia opção melhor no Rio de Janeiro. As mesas estreitas, cada qual cercada por seis bancos presos ao chão, respondiam pela intimidade austera do ambiente”. Além da Adega Pérola, o Alvaro’s também é cenário na narrativa. Por que citar, especificamente, os dois espaços?
Porque são dois cenários que frequento há anos, conheço com muita intimidade, e considerei perfeitamente adequados para abrigar as cenas ali inseridas. (Hoje, por sinal, almocei no Alvaro’s com dois amigos…) Além desses cenários, me vali também da biblioteca de uma residência particular (para situar certas conversas entre o narrador e um dos personagens) e do escritório de uma enciclopédia, como palco da cena que abre o livro. Fico achando que esses locais conferem à história uma espécie de “adensamento espacial” que favorece a tal imersão total a que me referi acima… Esticando um pouco as analogias, um pouco como ocorre no corpo a corpo entre atores e espectadores que o teatro proporciona.
• Ao final do livro, já em 2002, o narrador observa que os tempos de ressentimento haviam chegado ao fim. Era o começo da Era Lula. “Uma nova fase se anunciava.” Que fase se iniciou em 2002? Ainda vivemos algo que teve início em 2002?
Em fins de 2002 uma vasta maioria de nossa população (da qual fiz parte) elegeu uma nova liderança (que, no livro, não é nomeada por desnecessário — mas à qual você alude em sua pergunta). Liderança que abria perspectivas de mudanças reais para o país e suas classes menos favorecidas. Liderança essa, reeleita mais adiante (com meu voto uma vez mais). Por isso escolhi esse marco para concluir meu livro. Um livro que muito deve à tristeza e à desilusão. Não é à toa que é para um cemitério que o narrador volta seu olhar ao tomar seu conhaque na página final. Esperança, ele tem. Mas o que paira a seu redor é a tristeza.
• No site da Todavia, a editora que publica Uma mulher transparente, há uma justificativa para a publicação da obra: “Livro que trata de forma envolvente das cicatrizes políticas e emocionais deixadas pela ditadura”. O que acha da explicação?
Bastante adequada, dadas as exigências de síntese que o espaço requeria. A expressão “cicatrizes políticas e emocionais” me pareceu muito feliz. Acrescentaria apenas que se trata, também, de um livro sobre ilusões perdidas. Personagens que não são bem o que parecem ser, situações esquivas ou mal resolvidas, esperanças que se dissolvem face a realidades inglórias…
• Retomando a primeira questão após passar pelo enredo de seu livro: o que está por vir após a morte de Marielle Franco?
Futurologia não chega a ser meu forte. Mas torço para que os assassinatos de pessoas de bem — seres que se dedicam de corpo e alma a agendas abnegadas — parem de se multiplicar, de modo a estancar a sangria que não cessa de nos afligir e envergonhar.
Um livro que muito deve à tristeza e à desilusão. Não é à toa que é para um cemitério que o narrador volta seu olhar ao tomar seu conhaque na página final.
• Algum novo livro a caminho?
Estou sempre trabalhando. Mas minha prioridade atual também é tentar resgatar do esquecimento minha obra anterior (onze livros, entre oito romances e três coleções de contos, quase todos publicados pela Companhia das Letras e Record), esquecimento esse devido ao fato de que essas obras foram publicadas entre 1991 e 2014 — e que ao longo desses 23 anos eu passei apenas dois no Brasil e vinte e um no exterior (por força de minha carreira diplomática, da qual estou hoje aposentado). De modo que, ao longo dessas duas décadas e tanto, eu vinha ao Brasil de férias, lançava o livro em três cidades, dava uma entrevista ou outra, partia — e o livro afundava. Tanto assim que, ainda hoje, apesar das premiações recebidas e dos livros editados no exterior, quando alguém me apresenta em alguma roda social como escritor, eu cumprimento a pessoa e vou logo dizendo: “Muito prazer, eu sou o escritor brasileiro mais desconhecido que você jamais conhecerá…” Todo mundo ri. E, depois, todo mundo fica sério e muda de assunto.