Rasos d’água é um livro de poesia na corretíssima acepção da palavra. Está difícil encontrar livros assim. Mas, de vez em quando, surgem como que por encanto. Para desespero de alguns. Sua autora, Astrid Cabral, é uma poeta das melhores que este país possui. Astrid nasceu em Manaus, Amazonas, em 1936. Diplomada em Letras Neolatinas no Rio de Janeiro. Ensinou Língua e Literatura no ensino médio e na Universidade de Brasília, na qual integrou a primeira turma de docentes, de onde saiu em 1965, por causa do golpe de 1964. Em 1966, ingressou por concurso no Itamaraty, tendo servido como Oficial de Chancelaria em Brasília, Beirute, Rio de Janeiro e Chicago. Com a Anistia, foi reintegrada à Universidade de Brasília em 1988. Astrid Cabral é autora de livros importantes, como Ponto de cruz, Lição de Alice, Visgo da terra, Rês desgarrada, entre outros. Este Rasos d’água é resultado de uma militância existencial pela poesia raramente vista neste país de infortúnios e promessas vãs. Um livro de absoluta delicadeza em relação à palavra poética. Desta vez, Astrid escolheu a água como tema principal de uma obra que merecerá respeito dos que ainda conseguem pensar no país dos desencantos. Um mergulho na memória ainda possível, viagem de paisagens brancas. No fundo, a poesia, essa poesia tantas vezes aviltada por manobras inconseqüentes. Aqui, não. No livro de Astrid, a poesia encontra seu lugar para respirar. Rasos d’água é isso. Um livro que faz respirar poesia e faz respirar a poesia, o poema, a palavra poética. No final de seu livro, Astrid oferece um texto em prosa, Águas represadas. Obra-prima, se é que a expressão ainda existe. Obra-prima de uma poeta grandiosa.
• Como você classifica este novo livro em sua obra poética?
Classificações são gavetas estreitas. Difícil acomodar aí certas coisas. Mais difícil ainda definir o próprio trabalho, conseguir enxergá-lo com isenção e propriedade. No entanto, arrisco dizer que é um livro intenso. Conforme alguns leitores têm, coincidentemente, qualificado, um livro forte. Creio ter reunido nele contradições, desconsolo romântico e realismo implacável. Parto da expressão ambígua, rasos d’água, que alude simultaneamente ao elemento natural e ao humano das lágrimas, para transitar por esses dois campos semânticos. Assumo o pathos lírico e falo sem mordaças, sem camuflagens, sem timidez. Mas ao dizer de mim, de modo confessional, digo das perdas e danos que nos atingem a todos, das fundas mágoas que habitam qualquer ser humano e, assim, suponho transcender o desabafo pessoal e lograr comunicação com o outro. Isso não impede que lance em alguns poemas um olhar distanciado, quase frio, até irônico. Ao analisar minha produção poética, vejo que ora me volto para o mundo exterior, deixando-me tocar por ele em atitude impressionista, espelho aberto ao desenho e colorido vindos de fora, ou adoto uma postura mais expressionista, trazendo à luz o dentríssimo de mim, sua constelação de sombras. São linhas criadoras que se alternam ou convergem em meu processo literário. Claro que, entre as duas, não há fronteiras rígidas. Quando inscrevo um livro numa ou noutra, é sempre por predomínio, nunca por exclusividade. A primeira parte do novo livro (Copo de mar) se insere, de preferência, na linha intimista e emocionada, mas sem perder o referencial do chão. Já a segunda (Barquinhos de papel) enfatiza o olhar objetivo, a realidade mais susceptível à visão física. A meu ver, Rasos d’água reinstaura o clima reinante em poemas anteriores de Ponto de cruz e Lição de Alice. Mas por desenvolver o tema da água, presença constante na poética amazônica, retoma o clima de alguns textos de Visgo da terra, livro de vivência regional. Tenho a pretensão de considerar Rasos d’água um texto maduro, atento a detalhes, que antes me passavam despercebidos.Também nele incluí novos recursos e, pela primeira vez, visitei formas fixas tradicionais.
• O que é poesia para você?
Poesia para mim é o colete salva-vidas que me permite, após naufrágios, retornar à tona. Ponte pênsil que, volta e meia, lanço entre a luz da consciência e as trevas da inconsciência. Em meio à algazarra de tantas vozes alheias e contraditórias, a voz interior que procuro ouvir e externar. Conversa íntima que mantenho comigo mesma desde a puberdade, e que atravessa fases de silêncio, mas acaba por se reatar em dinamismo espontâneo. Às vezes, digo-lhe, importuna, não vês as pressões que me rondam? Mas não me dá ouvidos. Penetra pelas brechas, invade os intervalos até que me submeta a seu magnetismo e permita que se acampe em mim. Meu forte lado racional já admitiu a desnecessidade de hospedá-la. Quantas missões mais urgentes, quantos encargos mais rendosos, quantas ações mais apreciáveis em favor do próximo? Houve época em que eu pensava: alfabetizar a população carente é melhor serviço que escrever poemas para ninguém. Entretanto, a própria poesia atrapalhava sempre qualquer iniciativa com vistas filantrópicas, apossando-se do meu tempo, impondo seu domínio. Convenci-me de que, ainda que eu não encontrasse leitor ou editora, não conseguiria nunca deixar de escrever. Fazer poesia, meu compromisso essencial. Tudo o que viesse em conseqüência seria secundário, porque o poeta pode, sim, deixar de publicar e até viver sem público. O que não pode, mesmo, é deixar de escrever quando a poesia toma conta dele. Eis a questão crucial, de vida ou morte. Devo à poesia certo apaziguamento diante do efêmero. Ela me concede a ilusão de ter entre os dedos o rescaldo de fogueiras e incêndios apagados, as cinzas da própria vida. No poema Rapto de instantes, chamei-a de armadilha construída de palavras, pois ao aprisionar o momento de luminosa emoção, consegue gerar, ainda que de maneira relativa, continuidade e permanência. Trata-se de consolo precário essa ultrapassagem tão provisória, no entanto, logra reduzir a dolorosa sensação de perda. Afinal, a vida sem a literatura seria infinitamente mais mortal. Sobrariam apenas pedras e ossos. O que mais me apraz na poesia é o processo de conhecimento e descoberta que deflagra. Vejo-a como viagem ao desconhecido, espécie de escavação, arqueologia verbal capaz de me revelar riquezas soterradas, inclusive o rosto verdadeiro e até imemorial do ser, nas palavras de Yeats: “I look for the face I had before the world was made”. Essa fascinante aventura de tentar desvelar o mundo e a vida pela intuição, mesmo sabendo-a de antemão condenada ao fracasso, é o que me empolga. Atrai-me a força do mistério e quero partir em busca do sempre móvel horizonte, farejando presente, passado e futuro. Para mim tal desafio basta para emprestar sentido à existência.
• Como você vê a falta de espaço para a poesia nos suplementos culturais do Brasil? Como enfrentar esse problema?
Vejo-a como sintoma de um quadro clínico maior. No contexto contemporâneo, não é de se estranhar a falta de espaço para a poesia. Vivemos num mundo regido por valores materiais, utilitários. Há uma avalanche monumental de informações despencando sobre a cabeça das pessoas, que se sentem obrigadas a armazenar dados e fatos, a ser arquivo ambulante de imensa quantidade de referenciais. Pouquíssimos se entregam à reflexão, aos mergulhos interiores que a poesia exige. A pressa, a luta pelo ganha-pão, enfim, o tumulto urbano atual, roubam a disponibilidade para esse tipo de experiência. A entrega à fruição de pensamentos e ao gozo de emoções gratuitas se tornou quase inviável. Para os pragmáticos, então, a poesia é um supérfluo, descartável até antes do uso. Além disso, os brasileiros, em sua maioria subalfabetizados, não têm capacidade para constituir-se em público de suplemento cultural. Por conta de leituras capengas, não conseguem assimilar o fundamental dos enunciados, nem interpretar, com eficiência, os entendidos e subentendidos dos textos. Totalmente cegos aos aspectos estruturais e lingüísticos que a literatura comporta, poesia é grego para eles. Textos de organização complexa são sempre rejeitados e preteridos em favor dos óbvios. A lei do menor esforço prevalece, mesmo entre professores que, despreparados, evitam motivar os alunos para a poesia. Num reputado colégio da Zona Sul carioca, onde meus filhos estudaram, só se pedia a leitura do Drummond cronista. As escolas não se empenham em promover a educação artística verbal, cuja iniciação só alguns raros podem adquirir sozinhos. O mundo moderno, dominado pela linguagem visual de rápida comunicação, reduziu o número de leitores, transformando visceralmente os suplementos culturais de grande tiragem. A função deles passou de cultural a comercial, priorizada a promoção de produtos rentáveis. O espaço foi cedido à publicidade das grandes editoras, interessadas na conquista do numeroso público pouco exigente, a fim de recuperar os investimentos financeiros. Bons livros, se lançados por pequenas editoras, desaparecem no anonimato, enquanto baboseiras viram best sellers sob os holofotes do marketing. O problema vem sendo criativamente enfrentado pelo surgimento do ultramoderno espaço eletrônico, cuja facilidade extrema da utilização acarreta por sua vez o mal da falta de triagem, o acúmulo de escória. Duas soluções alternativas e ancoradas na tradição se vêm impondo também e se difundindo: a multiplicação de suplementos e jornais literários de público menor, porém requintado e culto, e os espetáculos de leitura oral que começaram a irromper há cerca de uma década no Rio de Janeiro. Existem, pelo menos, uns quinze grupos atuando em pequenos auditórios, bares, restaurantes, associações de bairro ou, eventualmente, a céu aberto em pátios e praças. Trata-se da recomposição de um elo perdido entre autor e público. Da ressurreição dessa antiqüíssima prática nasce a reintrodução da poesia como parte integrante da vida, não mais prática narcísica ou autista. Fim para as ilhas de palavras mudas, confinadas a celas de papel, prisioneiras em estantes de livrarias e bibliotecas. A poesia oralizada poderá funcionar, também, como chamariz para a leitura de livros. Vemos telenovelas baseadas em clássicos arrastarem os espectadores às obras matrizes. Felizmente nem tudo está perdido, surgem transformações a caminho.
• A seu ver, como está a poesia brasileira hoje?
Perdeu o prestígio que gozava junto ao povo. Nos dias atuais o povo só se amarra nas performances do pé. É o pé na bola, na fórmula 1, no samba de carnaval. Às vezes, até em alguma poesia, mas se esta tomar carona na música popular. O fato, porém, é que ela se tornou invisível, posta quase à margem dos meios de comunicação. Eventos e notícias ligados à poesia circulam em surdina, em letra miúda, sem nenhum destaque da mídia. A bem dizer, se propagam em faixa subterrânea, restrita a confrarias de poetas. Para responder com a devida seriedade à pergunta, eu precisaria conhecer a fundo a numerosa produção poética que editoras grandes e, sobretudo, pequenas, vêm lançando em todo o território nacional, contradizendo, ou arrostando inclusive, as expectativas de reduzido consumo. Quando se contempla a história literária brasileira, observa-se a sucessão de escolas, movimentos, grupos de poetas aglomerados em torno de princípios estéticos, manifestos, teorias. Nota-se, paralelamente, a atividade criadora localizada nos grandes centros urbanos do país. Falta-me a perspectiva temporal para julgar, mas não vejo hoje a presença de denominadores comuns, nem são evidentes grandes vínculos coletivos entre os poetas. Possíveis coincidências parecem derivar mais de casualidades, reflexos de época, que de propósitos definidos. Por outro lado, as megalópoles não detêm mais o monopólio literário. Ao gerar ambiente para a permanência de seus autores, muitas cidades médias amadureceram a vida cultural. Editoras e universidades locais de bom nível, além da tecnologia superando o isolamento provinciano, contribuíram para a mudança de cenário, razão por que assistimos a um saudável descentramento. O “hoje” é amplo e comporta a convivência de várias gerações e diversas dicções. Há poetas dialogando com a tradição clássica, com a ex-vanguarda, outros buscando caminhos independentes, mais inclinados a romper com amarras e ouvir a própria voz interior. Há os que enveredam por mitos gregos e indígenas, os que se comprazem com a realidade referencial, os que levitam em abstrações. Os que embrulham o real com o tecido das metáforas, os que se voltam obsessivamente para a metalinguagem, alijando a experiência vital em prol da estética. Há os que priorizam técnicas formalistas, polindo belas panelas vazias, os que fazem da poesia tribuna política de ideologias, os que exploram as sensações eróticas, os que se entregam a reflexões filosóficas ou a pesquisas eruditas, enfim, os ecléticos, que misturam um pouco de tudo, e os especialistas e puristas, sempre fiéis aos mesmos veios temáticos, ou às mesmas estruturas rítmicas. O panorama, como se vê, é marcado por absoluta liberdade, múltiplas divergências e conseqüente pluralidade. Se opiniões incompatíveis pairam no ar, as ditaduras oficiais desmoronaram ou, pelo menos, já são contestadas.
• Existe vida inteligente nos poetas brasileiros atuais?
Antes de responder, retorno à pergunta: O que você quer mesmo dizer com “vida inteligente”? Acho que até hoje não se esclareceu bem o que seja a inteligência humana. Lembro-me de um artigo sobre pesquisa científica nessa área, em que se aludia a um consenso entre os estudiosos: o reconhecimento da inteligência como nome genérico para abarcar habilidades diversas em campos específicos, tais como matemático, verbal, espacial, interpessoal (possivelmente ligado ao que Daniel Goldman intitulou de inteligência emotiva), intrapessoal etc. Como ponto de partida, considero a poesia atividade mental, já que se trata de forma de pensamento decorrente da inteligência verbal, a palavra sendo seu instrumento. Daí, concluo que os poetas brasileiros, como os de qualquer outra nacionalidade, são seres normalmente inteligentes, usando a palavra segundo os recursos próprios a cada um. Mas o que seria essa “vida inteligente” a que você se refere? A entrega programada a exercícios de raciocínio? A conquista de conhecimentos fundamentais à formação erudita? A discussão de problemas filosóficos, insolúveis e eternos? A pesquisa das contingências brasileiras? Manobras de sobrevivência, compatíveis com as circunstâncias do momento existencial?
• Diante de todas as loucuras cotidianas e das inversões de valores acintosas, a poesia serve para quê?
Serve para celebrar a vida, testemunhar-lhe a transitoriedade, reconhecer-lhe o enigma. Serve para humanizar o homem. Afirmá-lo. A poesia, ao expressar o que existe de profundamente pessoal no ser humano, revela a face oculta e única do indivíduo, explicitando a paisagem interior do pensamento, inacessível à apreensão dos meios visuais. Assim sendo, impõe resistência ao perigo de padronização que nos ronda, nesta época de poder hegemônico das massas e do império das máquinas. A poesia, como as demais artes, ao buscar sem cessar o novo, abala a estagnação, contesta com rebeldia a rotina paralisante. Constitui-se em fator de vitalidade para fecundar mudanças subjetivas de ótica e desestabilizar, na cabeça das pessoas, cenários constituídos, conceitos mofados, conjunturas decadentes. Ensina a ver melhor o mundo. Supre também a falta de expressão de algumas pessoas, pois dá voz aos que não conseguem verbalizar estados mentais mais complexos, e adotam por suas as palavras alheias. Funciona também como escudo para a turbulência urbana contemporânea, ao providenciar a pausa necessária à reflexão, à crítica, ao prazer lúdico. Emancipa a criatura das grades do tempo, permitindo-lhe a convivência virtual com o já vivido, o acesso ao futuro via sonhos e fantasias. Em alguns momentos críticos serve de ponto de apoio existencial. Certos versos são mananciais de sabedoria que a memória vai destilando e nos pondo em sintonia com a voz de poetas vivos e mortos. Num mundo massacrado por pressões econômicas, e deformado pela idolatria do dinheiro, a poesia, por não constituir artigo comercial, goza de natureza sui generis. Ao escapar aos ditames do mercado, instaura um espaço de liberdade, onde ainda é possível plantar a bandeira do autêntico, entregar-se a devaneios, trilhar intuições iluminadoras, fundar utopias, inaugurar mundos e descobrir aspectos soterrados pela rotina. A poesia liberta o mundo do óbvio, graças à boa vizinhança que mantém com o onírico e à natureza do olhar abrangente, capaz de percepções extraordinárias e ousadas. É, portanto, prática salutar, processo de enriquecimento espiritual. Através dela, o homem educa os sentimentos e alarga o universo sem precisar embarcar em nave sideral.
• E a crítica literária brasileira?
Lamento haver tão pouco espaço, nos meios de divulgação, para que se exerça em plenitude. Poetas e ficcionistas, deixando de lado o comentário de leigos, se vêem, inevitavelmente, reduzidos à autocrítica parcial e insuficiente. Sinto falta dos rodapés de jornal com o acompanhamento minucioso que se fazia da produção editorial, outrora bem menor. Nas últimas décadas a crítica tem se deslocado para o âmbito universitário, e focalizado, de preferência, escritores consagrados pelo cânone, em sua maioria mortos. Dessa maneira fugiu, a meu ver, à sua função primordial, uma vez que deixou de prestar orientação a autores em processo criativo, e a leitores em busca de opinião abalizada sobre os textos recém-lançados. Alguns críticos da linhagem acadêmica usam linguagem tão hermética e exageram tanto em alusões e digressões eruditas, que acabam por construir uma espécie de muralha em torno da obra. Servem-se dela mais como pretexto do que como núcleo da análise. Parecem até pavões exibindo a cauda de conhecimentos teóricos recentemente importados. Vê-se, com freqüência, o discurso ao cubo, isto é, a crítica de outro texto crítico. Por sua vez, o estudo de literatura nas universidades vem, paralelamente, priorizando o campo teórico em detrimento do enfoque direto da obra de criação. Os alunos costumam receber mais informações de periferia, do que se capacitar de fato a ler em profundidade os textos de arte. Há também, no pólo oposto, a crítica dos que a exercitam de modo leviano, em apressadas resenhas de jornal. Alguns de seus autores se arvoram a opinar sobre o que entendem pela rama, e ao expor o despreparo prestam o desserviço da má informação perigosa. De minha parte, valorizo a crítica exercida pelos autores que são também artistas da criação. A visão deles é bastante antenada e expressa com elegância e estilo. Dá gosto ler as apreciações que fazem.
• Existe poesia feminina no Brasil ou a poesia de homem e mulher são manifestações iguais?
Eu diria que existe entre nós grande produção poética de autoria feminina. Quanto à poesia feminina propriamente dita, já não se pode afirmar o mesmo. O que ela vem a ser, afinal? Somente de modo leviano, a partir de leituras superficiais, é que se costuma estabelecer a diferença, em minha opinião, secundária. Reafirmo o que disse em outra circunstância: os poemas, além de serem ambíguos e polissêmicos, parecem elidir a consideração masculino/feminino ao se desenvolverem em torno de assuntos universais, relevantes a qualquer ser humano. Sem descartar a possibilidade de dicções diferenciadas, creio ser imensa a dificuldade de identificá-las corretamente, sobretudo em casos fronteiriços. Como definir, na pós-modernidade unissex, os conceitos de masculino e feminino fora de estereótipos superados e generalizações grosseiras? Como proceder a uma análise extensa e profunda dos textos, a fim de detectar as distinções sutis emanadas do inconsciente e expressas em nível simbólico? O gênero lírico, ao propiciar a expressão do confessional, viabiliza a emergência de aspectos íntimos vinculados ao gênero biopsíquico. Contudo, o espaço poético tanto pode ser o da sinceridade autobiográfica, quanto o do disfarce ficcional, o de memória pessoal quanto o da invenção de personae. Há algumas décadas, mulheres autoras vêm trazendo para seus textos o depoimento de mundo diverso daquele construído a partir da ótica masculina, mas esse é o feminino óbvio, inerente às circunstâncias do tema. Resumindo, a diferença que me importa não é a de gênero biológico, mas a de gênero literário, sobretudo aquela, intrinsecamente artística, entre a poesia de boa e a de má qualidade, produzida tanto por homem quanto por mulher.
• Há lugar para a emoção dentro do poema ou isso é proibido?
Para mim a emoção cabe, não só dentro do poema, como também em toda parte. A rigor está onipresente e até nos governa, parte integrante de nós. Inalienável ao homem, manancial que colore os relacionamentos e nos faz sentir vivos, é também força motriz da criação artística. Tentar extirpá-la não passa de tentativa de agressão inútil, contraproducente. Exprimir emoção não é apenas questão estética, é questão de saúde. Quem amordaça sentimentos compactua com a falsidade e constrói a doença. Clínicas e consultórios andam abarrotados de intransigentes cerebrais. A poesia sendo, por princípio, território de liberdade, não abriga proibições. O problema essencial é a utilização competente dos sentimentos, o manejo estético que é feito dos elementos emotivos. A razão, portanto, não pode se ausentar do processo criativo. É fator imprescindível para efetuar o controle, chegar à dosagem certa, afastando o risco da pieguice. O equilíbrio costuma ser o segredo, a chave dos bons resultados nessa parceria entre razão e emoção. Sei que, na poesia brasileira de vertente construtivista, herdeira do concretismo, a emoção virou pecado mortal, doença infecciosa a ser evitada com assepsia. A tribo dos cerebrais, ao gerar poemas rigorosamente abstratos, persegue a façanha artificial do desumano, através de conceitos frios e versos sem sangue. No entanto, os poetas que se abraçam à vida não têm por que aderir a tal estética castradora. Querem uma visão integral e abrangente da condição humana. Talvez a ciência possa, ou mesmo deva, banir a emoção de seu trabalho, mas a poesia estaria se empobrecendo ao abrir mão de veio tão valioso. O descarte do fator emotivo serve para aprofundar o fosso entre o mundo do autor e o do leitor, inviabilizando a comunicação.
• Quem é a mulher poeta Astrid Cabral?
Eu bem gostaria de saber quem sou. Quem se sabe? Cada um de nós é enigma e somos múltiplos. Há aspectos do ser amoitados na sombra abissal do inconsciente, à beira de revelação. De uma hora para outra podem aflorar, deflagrados pela espora de circunstâncias novas. Volta e meia, a gente se auto-surpreende com reações absolutamente imprevisíveis. Além da emergência contínua de aspectos interiores, inerentes ao dinamismo subjetivo do ser, o exercício da poesia nos conduz à escavação e à descoberta da constelação de “eus” de nosso pequeno mundo pessoal. Ainda que procuremos nos vacinar contra o narcisismo e nos voltar, incansáveis, para o mundo exterior da realidade apreensível pelos sentidos, não escapamos ao convívio com a intimidade imanente à nossa condição. Imersos em contínua metamorfose temporal, só podemos falar do passado porque o fio da memória costura nossa identidade, mas o que mora em nós em estado de latência, de futuro implícito, é puro segredo. Minha enorme curiosidade, incompatível com o mistério, dá sempre com o nariz nessa porta fechada. Assim, do pouco que sei de mim, posso dizer olhando para trás, que me vejo dividida pela contraditória condição de mulher-poeta. Sintetizei o conflito nos versos:
Lavo panos e panelas
o olhar buscando estrelas.
Quero a água
que não vem da torneira.
Quero o fogo
que não vem do fogão.
Administrar essa divisão, minha tarefa de sempre. Experimento, obstinada e a duras penas, o desafio de conciliar o pendor de escritora com as sabotagens da vida doméstica. Lar e literatura, embora me proporcionem fortes motivações existenciais, estão sempre a me cobrar, cada qual, seu grave tributo. Trata-se de um equilíbrio instável, e lá no fundo de mim, a incômoda lembrança da condenação bíblica de que não se pode servir a dois senhores. Mais a culpa de não ser capaz de abandonar nenhum deles e pior, a ambição de permanecer fiel a ambos! Lidando na condição de esposa, mãe de cinco filhos, dona de casa, professora universitária e funcionária do Itamaraty, tive atenções e energia sempre canalizadas para o outro, em permanente atitude de doação. Apenas em exíguos intervalos, pude dispor plenamente de solidão e sossego, para, entregue a exigências interiores, mergulhar nas águas da criação. Em meio ao tumulto cotidiano a poesia virou ilha de refúgio, praia onde eu me salvo dos dilúvios, exótica terapia de sobrevivência. Penso que, se arrostei ventos adversos sem me partir na travessia, devo ao estímulo e a incondicional solidariedade de meu companheiro, o poeta Afonso Félix de Sousa. Ele sabia, por experiência própria, que ninguém aborta a vocação sem risco de suicídio.
Dois poemas do livro Rasos d’água
A companheira
Ela requer fino trato.
Com o melhor xampu
lavo os cabelos da dor.
Com a maior paciência
desembaraço-lhe os fios
E até os enfeito com laços.
(Dor saudade sem freio
de coisas pra trás e pra frente
sabor do perdido entre os dentes
água na boca do nunca provado.)
Saber a sina sem saída
só poder pentear-lhe os cabelos.
Os amigos dizem: não padece
ou, vá lá, esquece, esquece.
Mas esta dor não é algo
que se veste ou se despe.
É coisa que respira comigo
algo por dentro da pele.
…
Mudança
Evaporaram com ela
a alfazema na alcova
e a canela na sobremesa.
Juntos sumiram o brilho
de alfaias espelhos vidros
murmúrio de pés no chão
cochicho de mãos em bilros.
Resta o tremor das avencas
no alpendre abandonado
e o trinado dos canários
no amanhecer do quintal.
Não adianta procurá-la
na lápide do subúrbio longe.
Ela nunca esteve mais perto
ancorada de vez em teu peito.