Finalmente uma edição brasileira de uma obra poética do escritor Helder Macedo —Viagem de Inverno e Outros Poemas (Record, 191 págs.). Conhecido do público brasileiro apenas pelos seus Partes de África e Pedro e Paula (ambos editados pela Record, em 1999), agora pode ser apreciado sem os trâmites legais de uma encomenda internacional.
A particularidade da edição é que nclui Outros Poemas, conferindo-lhe assim uma feição de antologia. Isto proporciona ao leitor uma visão, ainda que forçosamente limitada, da trajetória poética de Helder. A edição se organiza em uma ordenação descendente do ponto de vista cronológico para seguir a lógica do registro, em primeiro lugar, da primeira parte, o conjunto Viagem de Inverno. Até esta obra, subvertendo a ordem do livro, temos: Vesperal (1957), Nunca Mais Rosas (1958), Lúcida Noite (1961), Das Fronteiras (1962), Os Trabalhos de Maria e o Lamento de José (1966), Os Espelhos (1966), Orfeu (1968) e o Lago Bloqueado (1977), que juntas compõem uma segunda parte da obra, a antologia propriamente dita.
A natureza da antologia parece assinalar injustiças para quem conhece bem o conjunto da obra de um autor. Na verdade, é por isso que algumas delas costumam ser precedidas por um “Prefácio” em que os critérios de seleção das obras são expostos. Ainda sim, causam polêmica. Em Viagem de Inverno, não há prefácios, nem qualquer texto de apresentação similar. Aliás, é bem verdade que os testemunhos de Cleonice Berardinelli, Maria Alzira Seixo, Jorge de Sena e Eduardo Prado Coelho, colhidos em diferentes épocas e presentes nas “orelhas” da obra, autorizam aquilo que não precisava de autorização e preparam a recepção da obra, muito embora não resolvam a polêmica da antologia. Mas isso é um falso dilema, já que em Viagem de Inverno e Outros Poemas não há polêmicas dessa natureza.
O livro convida o passado a mirar o presente e este a procurar as raízes em que conseguiu vingar, desde os “Olhos que se espreitam/bocas que se tragam” (pág.189) até “a ereção precária e persistente nos lábios das entranhas do luar” (pág.49). O amor que atravessa o cancioneiro é o amor que se quer carne, realização franca, possibilidade do ser total: “Quebrado o espelho/meu amor/busquemos/tanto um no outro//que se reconstrua/dos nossos corpos/contra a morte erguidos/ a essência mortal que os definiu.” (pág. 165)
Atravessando essa obra plural, há muitos temas que podem experimentar um dinamismo criador por parte dos mais diferentes leitores. Mesmo o escritor se faz novamente produtor de significado graças à sua experiência de leitor. Esse processo dinâmico é capaz de atualizar textos e temas, graças a ele podemos ler na primeira parte da obra: “Bailemos amigas/que a dança acabou/os rios correram/a fonte secou//bailemos na noite/libertas do amor/sem nada querer/sem qualquer temor” e sentir por trás dessas palavras carregadas de significado a voz do passado: “Bailemos nós já todas três, ai amigas,/sô aquestas avelaneiras frolidas,/e quem for velida, como nós, velidas,/se amigo amar,/sô aquestas avelaneiras frolidas/verrá bailar.” (Vieira, Yara F. Poesia Medieval, Global, 1987). A voz que atualiza, não só rememora, como também recontextualiza. Outrora as avelaneiras estavam floridas, hoje o rio parece seco; houve um tempo em que só aquelas que eram amadas poderiam dançar, hoje elas estão libertas do amor e mesmo assim querem seu lugar na dança. Aquela dança reunia as velidas, para esta todos estão convidados “o filho o amante/a feia e a bela”.
Há outros momentos em que a voz poética desperta esteticamente o cancioneiro antigo. Nesse, a voz que escutamos também é a feminina, a voz passada a limpo das cantigas de amigo. A segunda epígrafe de Viagem de Inverno, fragmento da Arte de Trovar, antecipa a disposição: “…alguas cantigas i há em que falam eles e elas outrossi, porém é bem saberdes se som d’amor, se d’amigo; …. se elas falam [primeiro], é de amigo”. Assim, tal qual uma “descendente poética” das amigas de Martin Codax, o poema número oito de Viagem também lamenta uma ausência, esta é agravada por uma dor física: “ponte lançada sobre a minha fome/a minha fonte sabe a tua forma//….// tuas raízes rasgam minha lei/ramificada no teu corpo alheio”.
Em Os Trabalhos de Maria e Lamentos de José, também sobressai o drama físico do eu feminino que vive a experiência da maternidade através das exigências do corpo: “E agora/por mim própria violada/me castrei./O amor que existe/começa e acaba em mim./Como negar-me/se eu fui quem me devora?//Mas fui pequena/mas fui também pequena”. Este corpo, que se reconhece mutante, foi criança, tal qual a que “digere, vage, suga” a frente do eu; tornou-se mãe por causa desse ser; mas antes foi mulher porque se fez oferenda em um ato de amor. Aliás, o amor como suprema oferenda está presente ao longo da obra e se relaciona com a recuperação da unidade do ser, só passível de ser vivenciada pela experiência do amor realizado.
Nos Outros Poemas da Viagem, a morte está presente sempre que se reclama a vida. Ela não assusta porque não é anulação, ela é realidade em meio ao amor físico e ao outro que é parte do eu — “Mas quem ama a vida como eu amo a vida/acabará por entender que ela é a morte/na sua única forma conhecível/pois só quem nunca amou ao ter amado/poderia/depois de alguma vez haver amado/penetrado outra vida/habitado outro ser/encontrado outra morte/recusar outros seres/outras vidas/outra morte”. Aqui vida e morte são sinônimos, o que as difere é o seu aspecto conhecível que reclama a experiência de ter amado.
Na verdade, a morte perpassa com insistência os poemas da Viagem de Inverno. A obra se abre com a concepção de que ela faz parte da vida. Entretanto, a morte parece mais próxima do eu, contextualizada em diferentes situações: como realidade que pode se abater sobre o outro (poema 13), nos filhos que ficam (poema 14), na encomenda que chega trazendo fotos antigas da mãe falecida (poema 15), no inevitável correr dos anos (poema 21), na árvore cortada (poema 23) e na dança “que a todos nivela” (último poema da Viagem). No poema 15, por exemplo, o eu lírico contempla a encomenda sem valor comercial que parece resumir uma vida, a vida da mãe. Só “os retratos os mapas os papéis”, enquanto “os outros preferiram os dejetos/e lá se engalfinharam nas heranças”. A mãe que morreu duas vezes e foi enterrada também duas vezes é trazida à vida pela palavra no momento em que o eu filho a descobre como “mãe menina segurando rosas”. Mesmo na lembrança do “braço comatoso” o que o sustém é a ação de acalentar, bem como o nascimento da primavera anunciado no fim do poema.
Já no poema 23 da Viagem, novamente o eu contempla a morte, só que desta vez da árvore que era sua sem ser. Ela dava as notícias da natureza, sensível que era a exigências das estações. Tinha uma particularidade, era uma castanheira que não dava frutos, só flores. Sua silhueta lembrava um humano corpo e seu talento de dar “flores como se desse versos” aproximavam-na ainda mais do seu contemplativo apaixonado, o eu. Este casamento impossível durou trinta anos, até que um dia ela foi cortada. Apesar da dor que motiva o reconhecimento do possessivo “minha”, não é com o vazio que o poema acaba, mas sim com as flores tão amadas e perplexas.
Ao longo das duas partes que compõem a obra, também a própria viagem e o habitar fronteiras se insinuam enquanto temas poéticos. O tema da viagem recorrente no cancioneiro se relaciona ao movimento, à capacidade de operar mudanças e de estar aberto ao inesperado nas mais diversas searas: “viagem literalmente de inverno/literalmente viagem/por estradas escorrendo rios turvos” (pág. 17); “Paguei a conta da viagem grátis anos depois//….//quando era já difícil recordar/para onde vim” (pág.27); “Suponho ter chegado/onde comecei.//Saio de ti húmido de vida” (pág.87); “Amar é viajar/dentro da morte” (pág. 171). A transformação da natureza, a mudança de lugar, o desbravar o corpo envolvido pelo amor são motivos para viajar.
No caso das fronteiras, a começar pelo próprio título Das Fronteiras, é possível ler a insistência com que o eu se reconhece nesse não-lugar. Esse é o espaço híbrido por natureza e também o lugar do limite assinalado. No âmbito das seguranças nacionais, a fronteira é o espaço tumultuado da vigilância, do conflito, dos tráficos de várias espécies. A fronteira é o lugar que se parece com tudo e com nada e é a entropia organizada pelo cotidiano. O eu da segunda parte da obra às vezes reconhece as suas fronteiras, outras não parece delegar-lhes imutabilidade e ainda as recusa como realidade. Nesses três casos de Orfeu, as fronteiras são tratadas em sua relação com o eu e seu sentido parece ser o de limite.
Em Das Fronteiras, há espaços exteriores significativamente assinalados — Lisboa, o Tejo e Portugal. O olhar lançado a esses topoi não é de quem está dentro, mas de quem atravessou as fronteiras e contempla com amor o que ficou para trás. O próprio eu por vezes nega a despedida, mas está longe e observa, “ciumento que outros venham e a mereçam” (pág.157). O amor que anima a lembrança não acorda um sentimento laudatório, são as lembranças críticas que o eu traz à tona: Lisboa — “ cidade triste/amada/sepulcral e colorida” (pág.155); “por mais que o Tejo lamba as feridas” e “Portugal/nação precoce entre as suicidas” (pág.156). O sepulcro, a ferida e o suicídio são signos de morte para quem vê de longe e não pode intervir.
Tanto quanto são falhas as antologias o são os textos que se arriscam ao comentário de uma obra. Para cada leitor, uma obra; para cada comunidade de leitores, a própria história da recepção de uma obra, para cada texto poético o silêncio ante o seu encanto. É com saudades do professor que percebo que o poeta também está sujeito a saudades, em fragmentos de um eu que é capaz de cruzar por si mesmo sem se chamar e que recomeça pela via do amor sem ele mesmo, mas ao mesmo só com ele mesmo, reconheço os motes de outrora que glosaram o eu divido de Bernardim Ribeiro e Sá de Miranda.
Um sotaque português na Inglaterra
Nascido por acaso na África do Sul, o poeta Helder Macedo passou a infância em Moçambique e depois mudou-se para Portugal. Lá teve problemas sérios com a polícia política de Oliveira Salazar e se mudou para a Inglaterra onde vive até hoje. É titular da Cátedra Camões do King’s College e o principal incentivador dos estudos de Literatura Brasileira na Inglaterra. Hoje, seu centro abriga estudos portugueses, obviamente, mas também africanos e brasileiros, não só de enfoque literário mas também histórico.
Em seus Partes de África (253 págs.) e Pedro e Paula (236 págs.), encontramos personagens marcados de várias maneiras pela experiência de vida em África. A primeira obra é um romance construído qual um mosaico de peças verdadeiras que bem poderiam ser falsas, bem como outras tantas falsas que bem poderiam ser verdadeiras. Os fatos, a família, os amigos se recriam de uma maneira desconcertante por meio dessa ficção. No “Capítulo que é melhor ser breve”, o homem cobra do narrador a difícil tarefa de recompor a figura do pai — “o polícia bom que alterna com o mau, o médico que vai remendar o prisioneiro antes da última sessão de tortura, a justificação moral da imoralidade do colonialismo” (págs.80 e 81), enquanto também recupera a visão de si mesmo atirada pelo pai nas discussões de outrora — “E tu?, que nem sequer podes ir à loja comprar pão na língua em que dizes ser escritor porque preferes viver num país em que outros, piores do que nós, te toleram por inofensivo?” (pág.81).
Em Pedro e Paula, forte é a atualização estética do romance Esaú e Jacó, de Machado de Assis. No livro de Helder também temos gêmeos que representam duas maneiras opostas de se relacionar com as coisas do mundo. Apesar disso e superando as relações possíveis de serem estabelecidas entre a obra de Helder, a de Machado e a de outros escritores, em Pedro e Paula temos um homem e uma mulher cujos princípios cunhados pela tradição acham-se invertidos. É Paula quem detém a força e é quase irresistível não se deixar levar pelos seus encantos e pela provocação da dedicatória — “Para a S. no tudo que é tudo (e para as Paulas)”.