Alguns dos debates mais importantes da poesia brasileira do século 20 permanecem para os poetas contemporâneos. Com o prestígio conquistado pelo Modernismo, algo que esteve no centro das reflexões e disputas envolvendo seus adeptos e oponentes foi a antítese constituída por sofisticação e simplicidade. No decorrer do século, tal antítese não se deu de maneira uniforme, o que pode ser concluído com a lembrança do que distingue Olavo Bilac e Manuel Bandeira, e, noutro momento, Augusto de Campos e Chacal.
Na bela apresentação com que prefacia A fio, novo livro de poemas de Marcelo Sandmann, o professor e ensaísta Luís Bueno retoma a questão. Ao abordar dilemas que se colocaram para os poetas brasileiros do século 20, ele frisa “aquele entre a poesia do sublime (…) e a poesia do cotidiano”. Quando trata especificamente da escrita poética de Sandmann — poeta do século 21 —, Bueno afirma que o paranaense não ignora os conflitos; antes, parece adentrá-los com a cara e com a coragem, na medida em que transita entre os dois lados que pelejam: “A poesia de Marcelo Sandmann não foge dos dilemas, nem dos de uma geração nem dos de outra. Ela anda sem guarda-chuva por sob eles todos, assumindo-os, encharcando-se deles e, principalmente, aproveitando-se deles para constituir os dilemas que lhe são próprios”.
O diagnóstico é certeiro e funciona bem como chave de leitura de A fio, uma vez que o livro se coloca ao menos entre dois densos dilemas e, por essa razão, confirma o quanto o século 20 se faz presente na poesia atual.
O primeiro desses dilemas se dá quando Sandmann põe-se na bifurcação entre o próprio e o alheio, questão das mais intrincadas para quem chega à vida e a conhece pelas lentes da pós-modernidade (o poeta nasceu em 1963). A referida questão é prenhe de questões, e no livro elas levam, de uma só vez, ao longe da leitura do mundo e ao perto da observação do cotidiano individual. Na voz que fala nos poemas é dominante a dicção pessoal e intransferível, mas que não deixa de evocar o eco da linhagem modernista (especialmente Carlos Drummond de Andrade). E quem fala nos poemas, ao falar de si, está falando também das coisas do seu tempo. Assim ocorre em Gordura localizada, cujo desfecho atualiza ou afirma a atualidade do José drummondiano — “O heroísmo nosso de cada dia:/ sonhar horizontes/ numa/ esteira rolante.// ‘Meus avós rasgaram/ mouros,/ cruzaram mares…’// Mas você corre, Marcelo!/ (Marcelo, para onde?)” —, e em Auto Posto Nossa Senhora Aparecida, de beleza ímpar. Na transcrição (de apenas parte do poema, como também ocorreu no exemplo anterior), marco em negrito a intertextualidade com A flor e a náusea, do livro A rosa do povo, do poeta itabirano: “Sou um homem triste, esquivo, preso/ à minha classe (sic),/ preso/ ao cinto deste carro.// Peço a ela que complete o tanque/ e sigo adiante,// enchendo a cidade de sombras,/ dióxido de carbono/ e versos imperdoáveis”.
Influência excessiva
Mas essa voz que fala por meio dos poemas é, por vezes, também outra voz, a de José Paulo Paes (1926-1998), cuja obra foi objeto da dissertação de mestrado de Sandmann, A poesia de José Paulo Paes, de 1992, belíssimo estudo, por sinal. Em 1947, Paes estreou na poesia com O aluno, e sua tendência à imitação dos que tomava por mestres motivou a advertência feita por um deles, o já citado Drummond, em carta enviada ao estreante naquele mesmo ano. Já amadurecido, Paes dedicou-se com alta frequência ao poema conciso e humorístico, sendo essa marca estilística destacada prestigiosamente por todos os seus críticos (incluindo o próprio Sandmann). É provável que o estudioso aplicado tenha se tornado tão íntimo do objeto de seu estudo que dele não conseguiu se despegar nem mesmo quando o crítico dá ocasião ao poeta. Não advogo em nome de uma segregação da linguagem da crítica e da linguagem da poesia quando crítico e poeta se encontram num mesmo escritor, o que, aliás, seria uma tolice após o que citei de Luís Bueno. O que friso é a circunstância em que Sandmann repete Paes, que, por sua vez, repetiu alguns modernistas, fazendo a ressalva de que o poeta taquaritinguense estava em seu primeiro livro de poemas, e o curitibano tem neste o quarto. Em tal circunstância, o autor de Lírico renitente constrói seus lances menos interessantes, como se nota, de modo explícito, em Mais 9 paesianas (novamente à paisana), conjunto de nove poemas do qual transcrevo o primeiro, Numa drugstore hipermoderna: Edward Snowden dixit: “Sorria!// Você está sendo/ monitorado”.
Essa presença de Paes se desdobra e constitui outro dilema de A fio, estabelecido pela alternância entre a escrita de poesia com vistas à graça e a sobreposição do gracejo à escrita poética. De certa forma, o exemplo anterior poderia indicar isso, mas o título Mais nove paesianas já evidencia o propósito de escrever deliberadamente ao modo de outrem, num misto de homenagem, declaração de influência e pastiche. Acerca do encontro e desencontro entre graça e graçota, penso nos poemas em que Sandmann fala como si mesmo, embora a presença do “mestre” seja perceptível frequentemente nas entrelinhas — “Menos.// Eu quero menos.// (Menos que menos.) (…)”, diz Menos que menos, que soaria tanto como arte poética quanto como registro do módico estilo de vida do autor de Prosas seguidas de odes mínimas. Quando a investida jocosa se sobrepõe à artística, o resultado é invariavelmente infeliz, porque nem uma nem outra se efetiva plenamente — “Vinho tinto para escrever,/ vinho branco/ para revisar o escrito.// É o conselho que recebo/ de um amigo.// Pois eu, quando escrevo/ (se me atrevo),/ bebo meio gole d’água” —, e assim vez ou outra a escrita cede à banalidade, algo visível, por exemplo, em Bifurcação & controvérsia: “Jogou a moeda para cima:// par?/ou/ímpar?// * // Ela/ (ou foi ele?)/ disse: ‘par’.// Ele/ (ou foi ela?):/ ‘ímpar’”.
Entretanto, quando os fatores da composição se encontram de maneira equânime — o que em relação aos poetas significa a poetização do que é inserido na escrita dos poemas —, a escrita de Marcelo Sandmann efetua momentos luminosos. Nesses momentos, a luz simples e graciosa também dá vivos sinais de profundidade, e revela que a grande música da vida cabe num samba assobiante e assobiado, como se lê e ouve no sonetilho Mora na filosofia?:
Pode rimar
amor e dor,
pois dor e amor
dão belo par.
Mas quem for dar,
em vez de amor,
somente dor,
não deve amar.
O que se quer,
melhor saber
e decidir.
E então viver
como se quer
sem mais fingir.
Disse Luís Bueno que Marcelo Sandmann encara os dilemas postos pela tradição poética brasileira para a partir deles formar os seus próprios. No Houaiss, a segunda das duas acepções de “dilema” é descrita como “necessidade de escolher entre duas saídas contraditórias e igualmente satisfatórias”. E aqui vemos que a melhor resolução encontrada por Sandmann não foi necessariamente o desfazimento dos dilemas, mas sim a postura que recusa o que eles exigem de unívoco.