Esta talvez seja a questão crucial da ficção contemporânea, em que tem prevalecido o simulacro como padrão.
A escrita pertence a qual sujeito?
Em muitos casos, quem escreve é o mercado, porque a profissionalização do escritor exige que se produza ao gosto do público. E aí não há diferença muito significativa entre o livro e o sabonete: ambos têm que vender. Neste caso, o autor, como pessoa, não existe. É o receptor que comanda o enredo, a linguagem, o desfecho, anulando a figura do emissor literário, que vê usurpado o seu lugar num espaço que seria seu. Sob o signo do mercado, o autor vira invenção de um público plenipotenciário, que inverte a própria lógica da comunicação. O autor, espelho vazio de imagens, capta as expectativas de um conjunto de consumidores padronizados, que se reconhecerá num livro com sua medida literária e existencial.
Nesta anulação do autor reside o segredo da máquina mercantil do best seller.
O falseamento do autor não é, no entanto, um privilégio do best seller e tem ramificações em alas mais prestigiosas de nossa cultura, como na que vem sendo chamada de pós-moderna, corrente que surgiu na segunda metade do século 20 junto com as teorizações literárias, quando se impôs uma distinção rígida entre a pessoa do autor e a figura literária do narrador, entre o poeta e o eu lírico. A nova orientação é para que se leia o narrador e não o autor, na tentativa de afastar o interesse pelo homem que escreve, concentrando-o numa entidade abstrata. Esta autonomia do produto literário, uma espécie de ditadura teórica, criou uma barreira entre a voz do escritor e a voz de quem narra, uma não podendo coincidir com a outra.
A força do escritor estaria na sua capacidade de despersonalização, segundo o modelo proposto por Fernando Pessoa[i].
Mas se o autor não está contido no livro, este não se presta à construção de sentido, sendo antes um jogo, que se basta a si mesmo — e temos o romance como máquina de narrar, divorciada de seu criador. Com isso, todas as experiências do sujeito não podem ter continuidade em sua obra, porque o autor, transformado num problema antes narrativo do que humano, não conta para o romance.
Um exemplo desta discussão pode ser encontrado em A hora da estrela[ii] (livro de 1977), de Clarice Lispector, que começa inventando um narrador masculino que vai relatar a história da nordestina Macabéa. Mas Clarice não adere à moda, introduzindo ironia nesta invenção do narrador. O romance começa com uma “Dedicatória do autor” (p. 21), onde aparece a explicação de que na verdade o autor é Clarice Lispector, embora no corpo do romance ele seja Rodrigo S. M. Com isso, ela está querendo dizer que apenas formalmente, para fins críticos, ela se encontra desvinculada do ponto de vista da história, não se identificando, por sua condição de mulher, com a personagem Macabéa. Ao inventar um narrador masculino e desmascará-lo, está radicalizando seu compromisso biográfico com a história narrada.
Muitos escritores, no entanto, levaram a sério este apagamento do autor. Em suas obras, o narrador pode se metamorfosear, sem nenhuma preocupação de coerência ou de verossimilhança, tudo se tornando possível.
Essas investidas contra um narrador estável pretendem comunicar a própria indefinição do autor. Quem escreve este tipo de romance pós-moderno não é um ser com espessura histórica, mas um cambiante ser de ficção, o narrador. Identidade sexual, geográfica, política ou histórica não fazem sentido nesse discurso romanesco que quer justamente a dissolução de toda e qualquer individualidade — não é à toa, portanto, que o romance pós-moderno se manifesta num período de globalização.
•••
Fazer com que o autor reconquiste sua densidade e espessura — este talvez seja o grande projeto dos escritores não-alinhados a este modo de pensar. No ensaísmo, Harold Bloom tem apontado tais equívocos, contestando, por exemplo, o desejo de influência dos escritores contemporâneos em seu livro, geralmente treslido, A ansiedade da influência[iii]. A apropriação afoita do alheio pode ser uma forma de apagar o autor, pois este passa a existir como lugar de encontro do outro ou de outros e não propriamente como afirmação de uma individualidade. Ao detectar esta busca obsessiva da influência, Bloom acaba flagrando o projeto de anulação do eu numa literatura em que o autor aparece, para usar o título de um livro de Ricardo Piglia, como nome falso[iv].
Não se pode, no entanto, reduzir o romance a um jogo de alusões, como tem sido regra em muitos escritores contemporâneos, embora não se negue a alusão a antecessores como caminho para a identidade.
No caso do poema, visto a partir do eu lírico, que corresponde ao narrador, o autor foi afastado do sentido dos textos, valendo apenas como detentor dos direitos autorais.
Bloom não se acomoda a este autoritarismo crítico, contestando-o em seu livro Como e por que ler[v]: “Aproveito a ocasião para alertar o leitor contra um dogma literário, cada vez mais inútil, de que o ‘eu’ do poema é apenas uma máscara, uma persona, e não um ser humano. O ‘eu’ dos Sonetos shakespearianos é o ator e dramaturgo William Shakespeare” (p. 104). Adiante, falando do romance, o crítico norte-americano defende a necessidade de estabelecer relações de continuidade entre o autor e o livro por ele produzido: “Atualmente, está em voga na crítica literária negar tanto a realidade do autor quanto a do personagem […]. de modo geral, os romancistas, por mais irônicos, identificam-se com seus protagonistas” (p. 184). Esta identificação devolve o autor à literatura e produz no leitor uma reafirmação de sua própria humanidade, como fica sugerido na introdução deste livro: “Para sermos capazes de ler sentimentos humanos descritos em linguagem humana precisamos ler como seres humanos — e fazê-lo plenamente” (p. 24). Só nos reconheceremos num livro quando ele vier com a afirmação desta humanidade, que não existe sem a presença forte do autor, este ser que transcende sua condição e adquire o direito de viver conosco no momento da leitura, insinuando-se, com mais ou menos intensidade, neste ou naquele personagem. O grande romance estará sempre contaminado pela figura do autor, embora, logicamente, nunca haverá uma correspondência total entre eles, porque os dois habitam universos distintos. Negar esta conexão, no entanto, é um atentado contra o poder humanizador da literatura.
É nestes termos que temos que entender José Saramago, que se opôs aos modismos atuais, propondo-se como um autor que interfere no mundo por meio de seus personagens. Nele, escritor e obra dividem um mesmo espaço crítico. Também aqui é sintomático que Saramago tenha sido uma das vozes contrárias ao processo de globalização. Para ele, a individualidade é um bem superior, seja do sujeito, de sua região ou de seu país — uma individualidade que se alarga por meio da literatura, não para se propor como a única válida (tal como quer a lógica colonizadora), mas para afirmar a diversidade.
Seus livros são escritos por sua trajetória. Saramago vê a máscara não no autor, mas no próprio romance, entendendo que cabe ao leitor chegar à pessoa que escreve. Em anotações de 27 de fevereiro de 1994, nos Cadernos de Lanzarote (vol. I)[vi], expõe tal tese: “Pergunto-me se o que move o leitor à leitura não será a secreta esperança ou a simples possibilidade de vir a descobrir, dentro do livro, mais do que a história contada, a pessoa invisível, mas onipresente, que é o autor. O romance é uma máscara que oculta e ao mesmo tempo revela os traços do romancista. Se a pessoa que o romancista é não interessa, o romance não pode interessar. O leitor não lê o romance, lê o romancista” (p. 234). A força desta última afirmação faz com que toda a discussão teórica sobre a autonomia do escrito perca o sentido. O que conta é este vínculo entre romancista e romance, que recoloca em questão a ética, caminho para uma literatura menos artificiosa.
Discutindo literatura e compromisso no volume II dos Cadernos de Lanzarote[vii], o ficcionista passa a negar a instância narrativa, defendendo a pessoa real que habita os espaços literários, tanto de quem escreve quanto de quem é escrito: “Por minha parte, limitar-me-ia a propor, sem mais considerações, que regressemos rapidamente ao Autor, à concreta figura de homem ou de mulher que está por trás dos livros, não para que ele ou ela nos digam como foi que escreveram suas grandes ou pequenas obras, não para que nos eduquem e instruam com as suas lições, mas simplesmente para que nos digam quem são, na sociedade que somos” (p. 118). O escritor não pode abdicar de sua existência em nome de um modismo literário, que o afasta cada vez mais do coração tumultuado da realidade. Antes de ser uma construção intelectual, ele é um ser comprometido com as questões que o rodeiam.
Convém, no entanto, não confundir ficção com memorialismo simples, ou com confessionalismo. Antes de mais nada, o autor faz ficção, mas uma ficção que o representa naquilo que existe de mais vertical: “O que o autor vai narrando nos seus livros não é a sua história pessoal aparente […], mas uma outra, a vida labiríntica, a vida profunda, aquela que dificilmente ousaria ou saberia contar com a sua própria voz e em seu próprio nome” (p.195). Esta vida labiríntica faria parte de uma memória alargada, pela qual o autor transcenderia sua própria história. Escrever seria então abrir estes jardins secretos, experimentando alteridades, vividas pelo pensamento e pela imaginação. É neste sentido que ele entende a memória, conjunto de móveis imaginários e não território naturalista: “Bem vistas as coisas, sou só a memória que tenho, e essa é a única história que quero e posso contar” (p. 196).
É possível, no entanto, romper os limites entre o memorialismo propriamente dito e o romance, adensamento as relações entre narrador e autor, não com o desejo de fazer com que eles coincidam, mas buscando uma brusca aproximação entre ambos. Não sei se seria correto, seguindo Saramago, propor a inexistência do narrador. Mais importante talvez seja mostrar que ele mantém uma relação de interdependência com o autor. E a vida labiríntica de que fala Saramago pode estar na história pessoal aparente do autor que, não raro, aparece como personagem de ficção.
•••
Não foi outro o meu desejo ao escrever Chove sobre minha infância[viii], um romance que se apropria de um discurso memorialístico, no qual apareço como autor e narrador a um só tempo. Nele, conto uma história na minha própria voz e em meu próprio nome. Mas não há, no livro, um Miguel Sanches feito apenas com a matéria da memória.
Este mesmo projeto teve uma versão poética, a coletânea Venho de um país obscuro[ix], em que o autor ocupa o lugar do eu lírico, mas na condição de personagem: o Miguel Sanches do volume de poemas é alguém mais velho do que o autor e o livro é composto por cortes líricos de sua vida, da infância à velhice, embora o autor ainda esteja cronologicamente na meia idade. Como a memória é antes um recurso, o material memorialístico sofre uma ficcionalização, que desfaz o aparente tom confessional, abrindo-se para a invenção.
Situação similar ocorre no romance.
Quem escreve Chove sobre minha infância é o autor em trajes ficcionais, cuja voz pode ser ouvida ao longo de todo o livro. Lendo o romance, lê-se também a pessoa real que o escreveu e o que está além dela.
O protagonista volta à sua infância, fazendo reviver o mundo em que se formou. Embora use a primeira pessoa do singular, a rememoração não se fixa propriamente na trajetória do personagem principal, buscando antes, a partir dele, pintar o painel de um período.
Depois do primeiro capítulo, em que encontramos o protagonista adulto na sua volta ao tempo, a história passa a ser narrada do ponto de vista da criança, numa linguagem simples, lírica, em que o personagem não tem uma noção precisa dos fatos. Esta limitação perceptiva, própria da idade, vai sendo progressivamente superada pelo menino, que passa por várias circunstâncias familiares e sociais, para chegar à visão adulta. A linguagem e o ponto de vista acompanham esta evolução, de tal maneira que seria mais correto ver o livro como a história da construção de uma identidade.
A leitura do romance leva o leitor a seguir este processo de consolidação de uma identidade problemática na passagem da infância para a adolescência, momento propício para os traumas.
Tudo bem pensado, poderíamos dizer que quem escreve o romance é a própria infância, o que exige uma identificação com um certo olhar que começa ingênuo e termina desencantado. Chove sobre minha infância é um relato escrito a partir de uma consciência do papel do autor no corpo da narrativa e isso lhe dá uma espessura autobiográfica, embora a trajetória do Miguel Sanches que conta a história não coincida, ponto por ponto, com a minha. Sempre pensei o livro como obra criativa e infiel aos fatos, deixando-me contaminar tanto pelas traições da memória quanto pela invenção propriamente dita.
O drama central do personagem é o desejo de continuação de uma história familiar que se encontra gravada em seu nome (pois ele é uma espécie de repetição do Miguel Sanches que o precedeu) e a necessidade de mudança. Como ser continuador de uma família marcada pelo fracasso e, ao mesmo tempo, libertá-la de um aprisionamento às classes mais incultas do país?
É com esta triste herança que ele vai ter que lidar:
Meu avô e meu pai eram analfabetos.
Como pesa este nome:
Miguel Sanches Neto.[x]
Tanto pelo lado materno quanto pelo paterno, o personagem vem de famílias que fracassaram em outros lugares. Aquele ramo é composto por mineiros que deixaram sua terra no começo do século e foram para o sertão paranaense para tentar a vida no desbravamento da legendária terra vermelha. No outro, temos os espanhóis, chegados ao Brasil no começo do século e já fracassados na lavoura de café no interior paulista. No norte do Paraná, eles encontram mais uma chance, mas sem nenhuma possibilidade de transcendência social. O protagonista repassa brevemente estas histórias, revelando uma família que trazia a marca do analfabetismo e era portadora de uma violenta ética do trabalho, única saída para um povo a quem coube derrubar matas, cultivar terrenos selvagens e construir a vida numa latitude rústica. É nos anos 70 que a geração à qual pertence o narrador vai ter que dar o passo decisivo: escolarizar-se. Mas ele chega aos bancos escolares justamente num momento de fechamento das perspectivas, quando a ditadura militar impõe um regime autoritário que, nas cidades do interior, ficava visível na completa falta de oportunidade para se ir além dos medíocres currículos escolares. O choque entre o desejo de aprendizagem e o fechamento das oportunidades marca o protagonista, cujo fracasso confirmaria uma tendência familiar.
Se os dois ramos de suas origens exigem dele um salto rumo à civilização, há um elemento novo na família que se coloca, sem ter qualquer noção de seu papel, ao lado da ditadura: o padrasto, substituto não-reconhecido do pai morto.
O padrasto nega a possibilidade de transcender seu grupo social e cultural, obrigando o menino, que quer saldar as dívidas morais de sua família, a assumir a vida agrária, na condição de trabalhador braçal. O desejo de adquirir uma cultura letrada entra em atrito com os imperativos de uma vida prática num meio rural. Se o menino se entregar ao caminho proposto pelo padrasto, terá que abandonar a trajetória de busca do mundo letrado. Ele então se põe contra o padrasto e seus valores rústicos com a mesma gana de quem luta contra a ditadura, contrapondo à ética do trabalho braçal a do ócio literário, e conseguindo, depois de muitos contratempos, impor-se pela afirmação de uma identidade problemática.
O romance acaba com o protagonista adulto, voltando à sua cidade. Ele já não pertence àquele lugarejo, nem à história dos seres que ficaram presos a ele. Mas não sabe o que fazer com seu passado, com sua história. Faça o que fizer, será sempre devedor, sentindo-se descender tanto da família da mãe e do pai quanto da do padrasto, apesar de todos os conflitos.
Nesse sentido, quem escreve realmente este romance são estas pessoas anônimas e sem discurso que o personagem sente fervilhar em sua memória, e não um eu individualista. É pela fidelidade a este povo obreiro, contra quem o menino lutou, que o adulto em que ele se transforma vai se afirmar, alargando o seu eu e abarcando todo um universo de esforços perdidos.
Talvez o centro deste romance seja a idéia de traição. Contraditoriamente, para não trair a sua gente, o menino tem que se rebelar contra os valores em que ela ficou paralisada, criando novas perspectivas. Contra um passado de trabalho braçal e de silêncio, um presente de vida intelectual.
Facilmente, eu poderia ter mudado os nomes dos personagens, mas era indispensável mantê-los. Para reforçar a presença destas pessoas no romance, optei ainda, atendendo a uma sugestão de minha editora, Luciana Villas-Boas, por acrescentar um caderno de fotos, intensificando o jogo permanente entre realidade e ficção. Não fiz isso apenas por motivos de economia narrativa, mas para dar visibilidade a uma gente que ficou sempre à margem da civilização e que, por algum capricho genético, produziu um escritor que tenta transpor para o mundo civilizado todo um desejo de linguagem longamente reprimido.
Ao estampar — tanto nas fotos quanto nas referências a episódios pessoais — a trajetória de um grupo real, traduzido para uma dimensão artística e imaginária, estou querendo dizer, contra a estética do simulacro, que quem escreve o romance é o homem que sou e é também o país de onde venho.
Notas
[i] Ver os graus da poesia em “A poesia lírica”, publicado em Páginas sobre literatura e estética. Mem Martins: Publicações Europa-América, s/d, p. 57.
[ii] 21.ª edição. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.
[iii] The Anxienty of Influence – A Theory of Poetry. Traduzido, no Brasil, por Marcos Santarrita com o título: A angústia da influência – uma teoria da poesia, 2.ª edição. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
[iv] Nome falso – homenagem a Roberto Arlt. São Paulo: Iluminuras, 1988, trad. de Heloisa Jahn.
[v] Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
[vi] São Paulo: Cia. das Letras, 1997.
[vii] São Paulo: Cia. das Letras, 1999.
[viii] Rio de Janeiro: Record, 2000.
[ix] Curitiba: Travessa dos editores, 2000.
[x] Idem, p. 27.