Para o Brasil que não deu em nada

Reedição do romance "Quarup", de Antonio Callado, é ideal para um país que insiste na busca por heróis e propagação de discursos ingênuos
Ilustração: Antonio Callado por Mello
01/12/2021

Há muito não havia um momento tão propício para a leitura de Quarup. Nesse país de “vai não vai”, nos dizeres de Antonio Callado, afoga-se na falta de perspectivas, cavando com as unhas para se atingir o fundo do poço. Relançado pela José Olympio, o romance de Callado, publicado originalmente em 1967, contém grande parte do que precisamos, na dureza da realidade brasileira atual.

A trama se passa nas tempestuosas décadas de 1950 e 1960. Expõe de modo nítido aquilo que seu autor disse em uma entrevista à Folha de S. Paulo, no dia em que completou 80 anos, em 1997, três décadas depois da publicação de Quarup: “O Brasil tem sido uma série de falsas expectativas”.

Nas diversas fases da literatura brasileira, o Romantismo se caracterizou por trazer uma consciência amena do atraso, com escritores copiando fórmulas europeias e adaptando-as com tintas locais. O regionalismo acompanha uma exaltação da natureza, os aspectos da terra. Nesse caso, o índio é o herói perfeito. No Realismo/Naturalismo, o regionalismo abandona tópicos ingênuos e idealizados, conferindo uma outra grandeza e importância para questões mais diversas, abrindo espaço para novos temas e formas de linguagem. O terceiro momento talvez seja aquele em que se encontra Quarup. Nele, a consciência do atraso é trazida de maneira radical diante da evidência de um retrato do primitivo e feudal em comparação à urbanização brasileira, crescente sobretudo a partir de meados do século passado.

Na trama, Nando é um clérigo de um mosteiro em Pernambuco. Carrega a expectativa de seus pares religiosos quanto à realização de uma missão evangelizadora no Xingu. Vive com as contradições de qualquer indivíduo e sofre com isso. Contradições expostas em suas conversas com dois amigos holandeses de formação protestante, Leslie e Winifred, evidenciando a dogmática premissa das boas obras católicas.

Pouco a pouco a convicção de Nando abandona a ideia divina de intervenção a lhe conferir uma espécie de clareza superior. A sua decisão amadurece diante da incapacidade de permanecer no mosteiro e viver com os pecados da carne.

É com a mesma dificuldade de se entrar em uma mata fechada, no Centro do Brasil, que Nando se embrenha nos prazeres da vida burguesa e o inebriante éter compartilhado nas desregradas festas oferecidas por defensores dos direitos humanos, hedonistas burgueses aliados ao projeto nacionalista daqueles tempos, jornalistas militantes da esquerda e funcionários públicos do alto escalão. Na selva, catequiza e abandona a batina em meio à “autenticidade” da vida indígena. O projeto humanista, cada vez mais dependente da política, naufraga com a crise e adquire contornos outros no Nordeste do país, ao lado de trabalhadores agrícolas, a quem, juntamente com Francisca, a mulher amada, educa seguindo os métodos de Paulo Freire. Sofre com a repressão e é torturado. Dedica-se, então, a uma vida simples, quase estoica, ao lado de pescadores, explicando-lhes o seu entendimento sobre o amor, já tão reconfigurado. Mais uma vez é perseguido por patrulheiros da ordem, portadores de uma moral ancorada em um ódio chancelado pelo discurso institucional vindo da presidência da República.

O país que vai
Ao ser escrito, Quarup coloca em tela o Brasil profundo, aquele que, supostamente — e apenas supostamente —, não é atingido pela crescente urbanização. Nando é atraído para o interior. Tem consciência, ainda que contraditória, dos extremos. Sua passagem pelo Rio de Janeiro, capital política do país e centro do nacionalismo de então, evidencia esse aspecto, bem como traz para o leitor os antípodas a percorrerem a formação de uma imaginária identidade brasileira.

Para cada movimento em direção a um “Brasil que vai”, tem-se o sufocante refluxo. Ao longo da história do país, torna-se compreensível o sentimento de Callado de que o Brasil “não deu em nada”. Quando escreveu Quarup talvez ainda guardasse uma expectativa ao observar as resistências à opressão vistas nas mais diferentes partes de nosso território. A sua desilusão, evidente na década de 1990 — quando o país havia, aparentemente, debelado uma de suas mais graves crises econômicas — ainda não era firme.

Por isso Nando soa como herói. Todavia, Callado não entrega um livro sobre heróis. Não espere encontrar uma literatura panfletária, com personagens sem contradições, providos apenas de certezas de seu lugar na construção de uma vida mais justa. Acompanhando a trajetória de Nando, notamos que, a despeito da ilusória e inicial pureza de espírito, a sua própria noção de justiça evidencia como ela não tem necessariamente nada a ver com o justo. São coisas diferentes. A sua trajetória é construída a partir de contradições.

O país que aí está
O ritual que dá nome ao livro, Quarup, tem como objetivo homenagear ilustres mortos das tribos do Xingu. Reunindo várias aldeias, os participantes aguardam o retorno dos que se foram e são dignos de ser relembrados por sua valentia. Para além dos dados antropológicos, existe o elemento metafórico essencial na trama de Callado. Quem, entre nós brasileiros, é digno de ser relembrado e trazido de volta à vida? Em Quarup, Levindo incorpora essa figura exemplar. Um jovem e ferrenho militante da causa dos trabalhadores agrícolas, brutalmente morto por forças de opressão do governo. O seu assassinato deixa Francisca, sua namorada de então, desconsolada. Nando, já apaixonado por ela, em seu amor, rememora constantemente a Levindo.

Estamos aqui reunidos em espírito de festa para relembrar o único brasileiro morto em luta por uma ideia. Brasilidade é o encontro marcado com o câncer. Brasilidade é a espera paciente da tuberculose. Brasilidade é morrer na cama. À frente de um grupo de camponeses, morrendo pelo salário do camponês, Levindo morreu uma bela morte estrangeira. Estamos hoje aqui para comer o sacrifício de Levindo, comer sua coragem e beber seu rico sangue de brasileiro novo.

É quando retoma a memória de Levindo e trabalha por ela que Nando se movimenta e se transforma. O amor dessa história é construído a partir dos escombros que tentam soterrar a sua luta. Isso se faz vigoroso em praticamente todo o livro, seja no Xingu, seja em Pernambuco. O sentido para o trabalho e ação de Nando não está em si mesmo, como uma essência superior à que o ser humano supostamente seria capaz de alcançar, mas sim em tudo aquilo que lhe atravessa e se encontra em outro ponto da história.

Da boiada que alguns desejam que passe embota uma crise econômica, política e cultural vivenciada no Brasil de hoje. E o gado não atropela apenas os indígenas, pois o livro de Callado não é sobre índios, mas, sim, sobre aquele brasileiro comum a sofrer o impacto das transformações políticas da década de 1960. O autor de Quarup demonstra como que as mudanças dos rumos políticos do Brasil incidem no micro, afetando as vidas das pessoas, mesmo estando elas aparentemente desligadas da política.

O país que não vai
No Xingu, Nando trabalha com Fontoura, do Serviço de Proteção aos Índios. Ávido defensor dos povos originários, o funcionário do SPI considera o restante do Brasil uma ameaça. Tempestuoso e sem expectativas, Fontoura sonha invadir o Rio de Janeiro com os índios e chega a mencionar a necessidade de se construir um muro que separe o Xingu do restante do país.

Callado apresenta o Xingu com uma tocante familiaridade. Permite, assim, uma bela imersão na obra. Desse modo, transita entre as instabilidades dos diversos personagens a se encontrarem no local, que vão desde os otimistas e apaixonados Fontouras até os antropólogos pesquisadores, como Lauro, que, no momento do aperto, quase sendo devorado pela selva, clama pela civilização preferindo se recolher às narrativas mitológicas que lhe chegam através dos livros lidos no conforto de seu gabinete, conformando-se com a romantização que se faz delas. Os rompantes de violência e os amores flutuam ao longo do texto que é preenchido pelos questionamentos de Nando, sobretudo no instante em que vê como irremediável o seu amor por Francisca.

É notável a remissão que o autor faz àqueles que romantizam culturas periféricas e minorias. Não que elas não sejam dignas de idealização. O ponto não é este. Porém, quando Callado sugere a existência desse fato, aponta para que atentemos mais para os idealizadores. Tratar algo como supremo, como superior, quase o fruto de uma obra divina faz o sujeito guardar em seu interior um sem-número de contradições que vêm à tona quando a força das circunstâncias, o embate com a realidade, se faz presente. Ali, eclode uma manifestação sentimental que pode adquirir inúmeros contornos, entre eles, o de fúria.

É curioso esse ponto. Pois Callado descortina o completo desconhecimento do brasileiro mediano quanto à vida nas matas de um imenso país. Não mistifica e tampouco ridiculariza o indígena. Fala sobre ele apresentando a incompreensão do homem branco. Muitos dos diálogos, nos dias de hoje, podem parecer óbvios, chegando a levar o leitor a pensar o quanto aqueles que ali se encontram são ignorantes. Entretanto, tomando a obra como um todo, não há obviedades.

Felizmente, na contemporaneidade, formas culturais até então tidas como marginais vêm adquirindo um grande espaço nas artes e na literatura. O seu protagonismo na configuração de uma nova linguagem tem gerado uma riqueza para além do conteúdo publicado, proporcionando experimentalismos outrora inimagináveis. Não obstante, é necessária a atenção a algo fundamental, para o qual Callado sinaliza: a possível infantilização de temas cruciais.

A ânsia em descrever realidades alternativas à ocidental forma hegemônica de expressão das artes é bastante legítima. Entretanto, talvez o afã derivado disso possa acabar por inibir todo e qualquer tipo de contradição da história e, fundamentalmente, dos personagens que a caracterizam. Essa contradição é elementar, pois, senão, pode terminar em idealizações de ícones presos a uma essência que muito provavelmente não existe. Isso contribui para a fabulação de personagens que, por serem idealizados, contribuem para o empobrecimento da narrativa ao não sugerir tais contradições, com as quais o leitor, qualquer leitor, lida cotidianamente. E, como fabulação, em uma realidade bastante problemática como a que vivemos atualmente, criam-se obstáculos, na própria literatura, para o enfrentamento de temas de modo mais sério.

Quarup é uma obra ímpar nesse sentido. Madura, atemporal, sem essencialismos, encaixa-se na realidade massacrante dos dias de hoje. E, como bem dito, não se furta a demonstrar como muitos dos movimentos e impactos sofridos nas ações dos personagens principais são consequências de atitudes as mais diversas. Elas são condições de uma estrutura na qual se encontram inseridos. Nando não nasce herói. Francisca não nasce heroína. Mesmo Fontoura, talvez o maior defensor dos índios em toda a obra, é controverso, imerso no alcoolismo e quase beirando a loucura, fugindo a todo tipo de arquétipo.

Voltando à trama, a busca pelo Centro Geográfico do Brasil demonstra como esse país é desconhecido. Novamente valendo-se da metáfora, é tocante a cena da expedição pelo Xingu, para a fundação do Parque Nacional. Quando conseguem encontrar o centro, põem-se diante de um gigantesco formigueiro. Fontoura, o grande indigenista do grupo, já tomado pelos acessos de febre da malária, não se furta em embrenhar nas formigas, sendo coberto por elas, prestes a ser devorado. É socorrido por Francisca, que, sozinha, o leva dali, para um lugar seguro, onde, esgotada, ampara-o em meio a suas pernas: uma imagem a ser inevitavelmente associada a um parto. Só que, nesse caso, Fontoura está morto. Como um quadro, os mais sóbrios defensores da causa social já nascem mortos.

Na falta de palavra melhor, o herói, aqui, está morto. Louco. É sua febre que lhe faz insistir na empreitada de agarrar o Centro Geográfico do país, esse imenso formigueiro. Não é um mártir. Callado não é panfletário. Sabe que não há espaço para isso.

O país que temos é esse imenso formigueiro no qual estamos sentados. Por isso, mais uma vez insisto: precisamos ler Quarup. Os tempos nos obrigam. Talvez, por mais doloroso que seja, temos um ponto de partida para o melhor caminho que permita que nos demos conta de que o Brasil não deu em nada.

Quarup
Antonio Callado
José Olympio
587 págs.
Antonio Callado
Um dos maiores jornalistas e escritores brasileiros do século 20, tem obra extensa, que vai de amplas reportagens ao teatro, passando por biografias e, claro, romances, como A cidade assassinada, Retrato de Portinari, Bar Don Juan, Reflexos do baile, Sempreviva, A revolta da cachaça, entre outros.
Faustino Rodrigues

Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).

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