A quem interessa conhecer a literatura do paranaense Miguel Sanches Neto, autor do romance Chove sobre minha infância, publicado em 2000, e crítico literário dos mais requisitados, Hóspede secreto vem bem a calhar. O grande vencedor do prêmio Cruz e Sousa 2002, um dos mais importantes certames brasileiros, teve o privilégio de ser avaliado e referendado por um time de peso: Carlos Heitor Cony, Flora Süssekind, Ítalo Moriconi, Luiz Vilela e Moacyr Scliar. Eram sete contos no livro original, que chegou a ser publicado pela FC Edições em 2002, embrulhados como presente numa sugestiva capa cor de laranja. Na edição pela Record, o livro ganhou agora outros seis contos, estalando de novos, e um invólucro ainda mais caprichado. Tudo leva a crer que a expectativa não se frustrará.
Já no primeiro conto, colhe-se a primeira grata impressão: o autor conhece o gênero a que se propõe. Parece uma afirmação tola, levando-se em conta o currículo de Miguel Sanches Neto — doutor em Literatura —, mas a academia por si só não garante o bom desempenho nas lides da escrita. Ao contrário, o conhecimento teórico, levado às últimas conseqüências no estudo da obra alheia, pode tornar-se um empecilho à liberdade na criação da própria obra. Conhecer literatura é uma coisa; escrever ficção, outros quinhentos; domar a dificuldade do conto, assunto para meia dúzia. O autor pertence a esse último e seleto grupo.
O conto é o território da minúcia, do ardil, mas também da parcimônia. Sanches Neto sabe explorar bem o que essa característica tem em comum com o próprio estilo: a frase enxuta, de pouca adjetivação, o léxico quase coloquial, nem por isso menos trabalhado. Sente-se o suor e o cinzel.
O herdeiro traz a história do filho que volta à cidade-natal para enterrar o pai. O tema, já muito bem explorado pelas várias artes, ainda rende. Na concepção de Sanches Neto, vem num timing preciso, onde nada falta, nada sobra. A estranheza é construída aos poucos, na alternância das recordações do filho-narrador com o que ele vai descobrindo desde a chegada. “Tudo tão conhecido e desconhecido. Por isso eu caminhava lentamente, tentando me acostumar.” Eis a chave, dada no segundo parágrafo. A partir daí, o leitor acompanha passo a passo a aventura, solidário com um narrador também confuso diante das novidades, e o desfecho tem a competência de preencher as lacunas todas e ainda pedir para que o leitor reflita. Escrever é um exercício de reflexão; quando bem realizado, um exercício de reflexão que leva a outro, e essa é a função mais sublime da literatura. O herdeiro é um conto clássico, na melhor das acepções, denso, forte, circular, estranho, surpreendente. Bom começo. Não é sempre que se encontra o cânone em harmoniosa convivência com o cheiro da tinta fresca.
Caça às lagartas. Aqui o ex-seminarista, contratado para dar cabo das larvas que costumam atormentar uma família, se vê às voltas com a esquisitice da tarefa e com o interesse que desperta na filha adolescente do patrão. Outro causo de inquietude e descoberta, nos tons fortes de um realismo que retorna, aparentemente com vigor, às nossas letras. Bela metáfora, além de funcionar como leitmotiv de uma boa história.
Quando a porta se abre e Cabeleira, ambos curtos, dotados de sensível inventividade, talvez os melhores da coletânea. No primeiro, o narrador vai compondo a trama a partir do pouco que lhe revela a mulher sobre um episódio triste da infância e que visita hoje os pesadelos dela, cada vez mais freqüentes e perturbadores. É um conto de alma fêmea, de uma delicadeza que chega a contrastar com o acento másculo da maioria dos demais. Cabeleira também bebeu dessa fonte. Outra história de meninice, simples, inusitada, culminando num desfecho doído e belo, daqueles que só a grande literatura consegue produzir. “Meu pai, ainda chorando, me disse vá e corte o cabelo. Tentei ficar com ele mais algum tempo, embora continuasse repetindo vá e corte o cabelo.” Durante toda a noite, o pai insiste no bordão de mandar o filho se livrar da longa e loira cabeleira, enquanto o quebra-cabeça vai sendo montado. E toda a tristeza do quadro deságua no último parágrafo: “Foi então que, me vendo de cabelo curto, meu pai me abraçou e me beijou, dizendo que bom que você veio. E, sentados diante do caixão, ficamos olhando para mamãe, também ela sem seus lindos cabelos, caídos depois do tratamento.”
As histórias são todas de resgate ou de tentativas. O universo ficcional de Sanches Neto converge para a cidade de Pearibu, interior do Paraná, miolo territorial e afetivo de seu discurso. “O chão estava seco, os passos despertavam um volume de poeira inacreditável, as árvores derrubavam suas milhares de folhas mortas que, ao serem pisadas, faziam o barulho de minúsculos ossos sendo quebrados”. Este excerto de O bom filho aponta para as palavras-chaves da estética do autor: aridez, poeira, solidão, busca, retorno. As sensações que brotam de pequenas, mas doloridas alfinetadas — fraturas de minúsculos ossos — só fazem algum sentido naquele mundo, portanto é inevitável a recorrência.
A tentativa de aprofundar na descrição desse umbigo acaba trazendo algum percalço para o leitor. É o caso do já citado O bom filho. A história tem um começo de arrepiar a mais insensível das criaturas: a mãe que expira nos braços do filho. “Durante alguns segundos, deixei-me ficar castamente sobre seu seio murcho, o mesmo que me amamentou. Esqueci que ela estava morta, embalado por seu calor, um calor do qual nunca desfrutei. Só me restavam aqueles últimos minutos antes de seu corpo adquirir a frieza de cadáver e eu não perderia aquela quentura. Pela primeira vez na vida, desde que me lembro, aproximei-me de seu rosto e o beijei.” O efeito é poderoso, e o autor consegue mantê-lo por um bom tempo, passando pela tomada de providências para o enterro e pelo velório, enquanto faz surgir a história daquelas relações familiares. Seguem-se vários parágrafos a descrever o que acontece após o desenlace, os afazeres no dia-a-dia da fazenda, o narrador de volta à secura pragmática de sua vida. O desvio obriga o leitor a parar e tentar descobrir qual é mesmo a história que está sendo contada. Uma distração imperdoável, considerando-se o gênero. É claro que Sanches Neto não dá ponto sem nó e retoma o fluxo narrativo com competência, construindo um final majestoso. Aliás, uma das maiores virtudes do autor é o arremate sempre primoroso de suas histórias.
Outro momento que inspira cuidados está no conto que dá título ao livro. Trata-se da interiorana que tem um galo como bicho de estimação em plena Curitiba, infernizando a vida dos seus vizinhos de prédio. A compra do animal foi conseqüência irrefletida de um desejo latente de retornar à casa e aos hábitos da infância, e a jovem se vê obrigada a peripécias mirabolantes para acobertar seu hóspede. Quando a separação torna-se inevitável, ela leva Rodolfo para morar em Pearibu. Belíssima passagem é a moça recomendando o amigo ao irmão: “Amanhã vou embora, mas prometo voltar com mais tempo. Você só cuide bem do galo. Agora ele não é mais Rodô, apenas o galo. Substantivo comum.” Ocorre que Sanches Neto ingressa num terreno perigosíssimo, o da apologia dos bons valores do campo, e acaba maculando, com esse juízo, a graça do texto: “Não consigo entender a raiva dos moradores do prédio. (…) É uma raiva contra o campo, contra os símbolos da roça. É uma raiva contra os caipiras que vêm para Curitiba, é uma raiva, portanto, contra mim.” Exagero. Influência nociva da crônica. Deixe-se ao leitor o privilégio de discernir e concluir o que já ficou óbvio.
Os seis contos da nova safra foram escritos na mesma tessitura dos anteriores, amalgamados agora perfeitamente bem a eles. Três se destacam. Olhos azuis, também curto, tem um subtexto tão rico que chega a torná-lo enigmático. Uma mulher grávida, arrumando a casa que pertencera aos antepassados do marido, descobre no sótão o retrato antigo de um jovem de olhos azuis e revive de forma surpreendente um pedaço da história dessa família. Narrado pelo personagem feminino, As xícaras é responsável por outro bom momento. Às vésperas de completar 25 anos de matrimônio, o marido traz para casa a antiguidade recém-adquirida, um aparelho de chá de porcelana bávara. Os dois se põem a limpá-lo, enquanto vão especulando sobre a origem do conjunto e sua trajetória até chegar naquela casa. Nesse exercício, a mulher vai também inventariando o seu casamento e passa a compreender, entre outras coisas, o encanto do marido pelas peças de antiquário. O tom beira o poético, o final é sublime. Sabor, o mais forte, traz o pai que dispensa os filhos de irem à escola para que possam acompanhá-lo na matança do porco e ajudá-lo nas tarefas decorrentes. Um relato que provoca náusea e sofrimento, pelo quais o leitor não consegue passar incólume.
Também é necessário mencionar Vermelho envelhecido, uma história esquisita, mas regada a um erotismo bem construído que a redime parcialmente de sua extravagância: a mulher madura que se descobre excitada com ela mesma ao se ver jovem e nua numa fotografia antiga, tirada pelo marido já morto. O interesse pelas moças, subitamente despertado nela, acaba encontrando a namorada do próprio filho, com quem se envolve. Uma frase lapidar perpassa todo o conto — “roxo é um vermelho envelhecido” —; a cor vermelha assume uma nuança diferente ao ritmo da narrativa, voltando ao ponto de partida para um outro final de grande efeito: “O ipê-roxo em frente ao prédio tinha florido. Estava lindo que era um desperdício”.
Se não encontram lugar entre os melhores, Dias de chuva e Noções básicas tampouco destoam do conjunto. O primeiro conta a história de um jornalista que viaja ao interior para entrevistar um músico ancião, autodidata e artesão de violinos. O argumento é consistente, mas a inexistência de um conflito faz com que a narrativa se aproxime novamente da crônica. O mesmo acontece com Noções básicas, o pai que faz questão de ensinar ao filho como se constrói uma pipa, enquanto lembra do tempo em que era criança e fora enganado pelo amigo mais rico.
O livro se encerra, sugestivamente, com No centro de algo. É um conto longo, portanto mais suscetível a deslizes. Prova de resistência para qualquer contista, e Sanches Neto se sai dela com perícia. Ironicamente, o mais longo é também a síntese. O casal, à beira da separação, viaja para Pearibu — decisão intempestiva dele, concordância a contragosto dela — e acaba resgatando, na aventura, o que já se julgava perdido. É, em última análise, uma história de amor, e, como já era de se esperar, não faz feio na importante missão de fechar a coletânea.
Mas o melhor ficou de fato no miolo — não em Pearibu e sim no centro físico do livro. É lá onde estão os dois pequenos contos, e aonde o leitor atento volta, com insistência, para ouvir o farfalhar dos delicados ossinhos que se quebram na memória.