Num de seus contos mais famosos, Borges cria um elemento formidável: o Aleph, ponto do espaço que contém todos os pontos. Na concepção borgiana, “o que a eternidade é para o tempo o Aleph é para o espaço. Na eternidade, todo o tempo — passado, presente e futuro — coexiste simultaneamente. No Aleph, a soma total do universo espacial encontra-se em uma diminuta esfera resplandecente de pouco mais de três centímetros”. O intrigante paradoxo, muito antes de conduzir outro relato fantástico do mestre argentino, serve de mote para a revelação de uma bela história de amor, profunda e desesperada. Assim definiu-a o próprio Borges, que confessou ter de fato amado Beatriz Viterbo, personagem e vértice do triângulo, “profunda e desesperadamente”, como convinha a um portenho da gema. De quebra, ele também desdenha das aspirações literárias de seu rival Carlos Argentino Deneri, poeta tão pretensioso quanto medíocre, também inspirado num personagem real, que acaba vencendo o Prêmio Nacional de Literatura.
O que a poesia de Maria Carpi tem em comum com a prosa de Borges? Nada (ou aparentemente nada, pois, em se tratando de literatura, inexistem respostas assim definitivas). Tampouco — e isto é definitivo — tem alguma coisa a ver com a poesia execrável e premiada de Carlos Deneri. Que estranha associação de idéias, então, faz um leitor lembrar de O Aleph tão logo encontra o primeiro poema do recém-lançado A força de não ter força, sétimo livro da poeta gaúcha?
Amor, essa força de não
ter força; essa paz não
dando a paz; esse rosto
incandescente, nunca
lido, que se sobrepõe
aos demais e reluta
quando todos fenecem
e mais se aviva, encoberto.
Pode-se pensar que o amor é matéria-prima de ambos os textos, que o rosto incandescente do poema remete à esfera luminosa do conto, que o Aleph habita o porão de uma casa em Buenos Aires e, vivendo encoberto, aviva-se na total escuridão, tal como o amor da poeta. A esfera de Borges, enfim, poderia simbolizar até mesmo o próprio amor, vencida a morte de um de seus protagonistas. Mas a busca desse tipo de coincidências não passará de um mero exercício de especulação retórica.
O que de fato aproxima A força… de O Aleph são os paradoxos sobre os quais ambos se alicerçam. De um lado, Borges constrói um perfeito para seu conto, o maior e o menor no plano espacial, o todo num ponto, este que nada mais é do que a mínima parte do todo. Os espelhos e o infinito, elementos recorrentes em sua obra, são levados assim às últimas conseqüências. O amor de Borges — minúsculo, porque unilateral — busca no espaço a explosão de seu acontecimento, mas acaba encontrando na concentricidade da esfera sua expressão mais bem acabada. Maria, por sua vez, compõe Do amado e do não amado, primeira das três partes de A força de não ter força, trazendo seus paradoxos para dentro de um universo denso e pulsante, pronto a romper o delicado invólucro e explodir em sereníssimas transfigurações. Diz Manoel de Barros que em A força… “o amor está transfigurado e límpido”. Também ensina o decano poeta que, “se está transfigurado, é poesia universal; se não estivesse, não seria poesia”. A limpidez do amor de Maria é água corrente num leito “de profundidades e espesso desatino” que a força dessa água não consegue revolver. Então o amor-água, correndo sereno e fresco por sobre as agudas pedras, é “essa força de não ter força” (existirá definição melhor para o amor?), essa paz que não dá paz, essa contradição de pôr fogo e dar trégua a um só tempo.
O não amado de Maria Carpi não é uma antítese ao amado, não é um ser odiado ou odiento, mas aquele que está antes e depois do amado, um ente às vezes neutro, noutras, silente, “silêncio anterior à palavra amor”, “livro folhado ao revés” das várias possibilidades do amor. O amado é alimento, o não amado, semente. Mas a poeta não pára aí. “O amor não o enxergamos por ser demasiado visível. Um nada que ofusca.” E vai cantando e decantando esse amor com esto maduro, numa sólida construção de inspirados contornos.
Noutra notável semelhança com o Aleph de Borges, a poesia de Maria Carpi é dotada de incrível densidade. Uma primeira leitura revela o texto elegante, tenso, rico em significados, não perdendo com isso a fluidez que permite ao leitor vencer, sem muito esforço, suas 108 páginas. Maria tem preferência pelos tercetos, o que sugere equilíbrio, embora apareçam poemas construídos em dísticos, quadras e uns poucos de única estrofe, todos sempre curtos e invariavelmente sem título. O fato de existir uma unidade temática dispensa a formalidade. As palavras brotam em acepções incomuns e metáforas muito peculiares: idéias originais, não mero jogo: “e ao fim, a fruta abre-se com as paisagens nutridas pelos passos”. A linguagem é sóbria, o arrebatamento vem do conteúdo. O vento jamais é azul ou verde, mas cordilheiras sopram. Maria Carpi é essencialmente verbo, movimento sem adjetivação falsa ou fácil lirismo. Percebe-se com clareza que há muita carpintaria sob a candência de seus versos. Uma leitura mais lenta e meticulosa é o que eles pedem, e somente dessa forma o leitor vai descobrir o quão forte e denso é o tecido poético. As palavras todas têm vida própria, cada qual referindo um universo independente das amarras das frases, por isso soam às vezes inusitadas.
Do amado e do não amado foi escrito na década de 80, portanto há vinte anos. Nos anos 90, Maria tirou o material da gaveta, revisou-o e agregou uma segunda parte, A vertigem sem abismo. Por fim, na virada do milênio, tornou a revisar tudo e completou com o último segmento, Elegias à vastidão de um epílogo. Não fosse a confissão registrada ao final do volume, jamais o leitor adivinharia tal gênese. A tessitura é rigorosamente a mesma do começo ao fim, a despeito dos tantos anos que separam os três estágios. Maria tem horror à pressa, é de carpir, dar lustro ao texto, brilho obtido pela eliminação do excesso. Intenso, prazeroso, difícil trabalho. Não fica nada a mudar, nada a tirar ou pôr. O verso está pronto, o ritmo, justo. Vinte anos, e o aval para que fosse publicado. Mesmo assim, só pela insistência dos filhos. Ao relutar, Maria Carpi dignifica o ofício de poeta, fazendo o avesso daquilo que Borges avalia sobre Deneri: “compreendi que o trabalho do poeta não estava na poesia; estava na invenção de razões para que a poesia fosse admirável; naturalmente, esse ulterior trabalho modificava a obra para ele, mas não para os outros”. Maria modifica para si e guarda dos outros. Se mostra, é porque não deixou nada por fazer. Assim, não fica nada a justificar. “Amor que dentro sou, sem existir fora.” A poeta resolve dentro para existir fora, e nos traz poesia em destilação puríssima.
A força… também é íntima da natureza e seus vários elementos. Água, árvore, raízes e gotas, frutos, rubras amoras, o amor de Maria é vermelho e sumarento, vulcânico e limpo. Não refere explicitamente uma origem interiorana, mas resgata os ancinhos e a relação com a terra. Seus poucos bichos são aves que “revoam a boca, ciscando-lhe o fôlego”. O amor de Maria às vezes resfolega, mas não desespera. “Ficaste irremediavelmente meu, quando te perdi e consumi tua perda, querendo-te perder.” Viço de lucidez.
Maria Carpi estrutura-se a partir da negação, do contraponto. Diz, para em seguida contradizer, e acaba mostrando que a contradição pode bem ser um complemento, não necessariamente uma antítese.
Quando escrevo,
Não sou um, mas dois.
O que dita e o que redige.
Quando amo,
Não sou dois, mas três.
Duas presenças
e uma ausência.
Quando morro,
com os idos e vindos
do instante alvejado,
tríade transbordante,
sou tão só, um.
Nesse brilhante exercício, compõe poesia de boa cepa e acento universal. E, de tanto exercitar paradoxos, acaba criando, assim como o de Borges, pelo menos um outro perfeito.