Alberto da Cunha Melo, na melhor tradição caeiriana, pensa com os olhos. A reunião de sua Poesia completa, realizada por Cláudia Cordeiro da Cunha Melo, revela-nos isso com a devida ênfase. A coletânea, que apresenta material iconográfico a dialogar de perto com os poemas — fotografias de João Castelo Branco e Assis Lima —, traz os textos separados em quatro seções: Obra publicada, Obra inédita, Obra consolidada e O último garimpo. Somam-se ao volume duas breves biografias — do autor e da organizadora —, uma sintética apresentação da obra, feita por Cláudia Melo, além da fortuna crítica dedicada ao poeta.
A intensidade da experiência escritural baseada nesse olhar penetrante logo se verifica em duas imagens memoráveis, localizadas em Blindagem: “Quem me ilumina é a perigosa/ luz dos relâmpagos, e a voz/ de meu poema tem um tempo/ só: a duração do meu susto”. A primeira imagem é deliberadamente para os olhos, com a força do clarão; a segunda utiliza o caminho das retinas para dar ideia do vigor vocal: melopeia do espanto. Pelo deslocamento da visão sedimentada, a obra, quase como um leitmotiv, ilumina as vozes apagadas e joga atenção para o jogo de forças dos quais sempre sobram, inevitavelmente, os humilhados e ofendidos. O estilo fanopaico em Alberto da Cunha Melo é de tal modo presente que, mesmo em peças de notório teor narrativo, como o clássico Yacala, impõe-se a metáfora clara ou a visualidade das comparações inesperadas (tal poema litúrgico, aliás, mereceria um estudo à parte: com um personagem peregrino e demiúrgico, o texto representa a síntese difícil entre o carnal e o etéreo).
Pensar com os olhos
As narrativas versificadas de Alberto, como Expedição Kon-Tiki, guardam tom e tônus, e a plasticidade cromática das cenas sem dúvida favoreceria uma transposição dos poemas para uma eventual versão cinematográfica. E esses poemas longos buscam, seccionados em células menores, lançar um olhar hermenêutico sobre eventos incontornáveis da história brasileira, como Canudos (cf. Canto-chão).
Propondo um alargamento sensível e intelectual da realidade, Alberto altera o ângulo pelo qual se capturam os objetos, experimentando formas como o raro octossílabo — branco ou rimado —, a espacialidade concretista, a antiga renka japonesa e inaugurando a forma fixa “retranca”. Essa refiguração acontece de modo tão sutil que o poeta gera hipérboles sem recorrer a exclamações ou inflações verbais. Se não, leiamos o efeito condensado no terceto de Igreja do Monte: “Igreja do Monte:/ Construída tão no alto/ Que o Céu fica defronte”. Seguindo a trilha da visualidade, Alberto desenvolve uma atividade permanente de retextualização, traduzindo em linguagem verbal o que parecia feito apenas para os olhos, pictoricamente. Acolhendo a pesada solidão dos que cultivam a palavra literária, afirma-nos o eu-lírico, em A imagem do barco: “nenhum poeta já o quer/ porque poetas já não há/ por estas águas e estas gentes/ magras e subacorrentadas.// Ele se move e se navega/ ainda completo sobre as ondas,/ a oferecer o grande casco/ ainda só pesado de sós”. Como não lembraríamos, aqui, o Walmir Ayala do Caderno de pintura?
Esse olhar requalificado intervém para desestabilizar os terrenos semânticos firmes e consolidados, causando sismos de compreensão. A poesia, então, cumpre o papel de, fazendo revoltas as camadas coalhadas de sentido, manter fluido o que pretende grudar em placas de ideologia. Em Confluências, o fenômeno ocorre na microfísica das paixões eróticas: o senso comum dos amantes entende elogioso para a amada a exclusão ofensiva de todas as restantes. O texto, então, inverte a lógica e sugere um amor maior não por subtração, mas por acúmulo das mulheres que habitaram o sonho ou que estão na memória do eu-lírico siderado: “eu te amo amando/ as duzentas Marias,/ as trezentas Terezas,/ as quatrocentas Luzias/ que moram em ti”.
Às vezes, com um tom levemente irônico e lúdico, como se detecta em Coletivo suburbano, o autor empresta à trivialidade aparente um significado religioso. Em outros momentos, ao denunciar o deboche e a desfaçatez das elites econômicas, é a metonímia de uma classe dominante sem valores de empatia ou de partilha (como a voz do diretor em Um diretor falando consigo mesmo) que expõe, também em clave irônica, a arrogância egocêntrica dos que namoram o poder.
Refiguração artística
Os protagonistas da miséria são sempre cantados na arte incisiva e melancólica de Alberto da Cunha Melo: os doentes agonizantes das enfermarias, os passageiros de ônibus esquecidos, os serventes, os aposentados, os condenados de toda ordem. Nas relações desiguais, em que a barbárie pode se nutrir, o imoral e o algoz não assumem jamais sua identidade real. Muito pelo contrário, facilmente ganham um verniz angelical e tudo logo se mistura. É o que o poeta torna público: “Não vai ser fácil/ encontrar um joio/ com nome de joio/ para queimar” (Dilema dos moralistas oficiais). Em outro belo poema, intitulado Zona da mata, notamos uma escrita síntese da economia canavieira: doçura que, em vez de alimentar a infância, a elimina. No texto, não apenas a criança é literalmente exterminada em seus devaneios mais doces, como também o polímero do sonho, que todo infante fabrica, é igualmente dissolvido. Em balas: ambiguidade cruel, encruzilhada entre o sabor e o sabre.
Tudo isso se perfaz em refiguração artística, num labor imagético e simbólico, pelo qual se esquiva o poeta de verter o caldo grosso de sua palavra no fio de água rala dos panfletos loquazes e estreitos. Não por acaso, um dos temas nucleares da obra de Alberto é justamente a peleja drummondiana pelo verbo potente, que enuncie o necessário com alguma precisão. Período de testes pode ser, disso, uma confirmação: “Derrubei desastro a caixa/ de números: um calendário/ que havia sobre a escrivaninha,/ e o tempo se espalhou no chão.// […] Diante de mim, o diretor,/ duro e parado como um templo,/ não disse a mínima palavra:/ eu já estava liquidado”. A aniquilação pela hierarquia está denunciada, mas não sem a metonímia encantatória do tempo vertido ou sem uma comparação que sacralize o sofredor. É recorrência, na obra de nosso escritor, uma violência figurada; Metralhadora Thompson ou morte ‘T’ mostra que os tiros bem podem ser ouvidos nas sílabas do cantar das armas que intitulam o texto. Uma vez mais, a ironia pungente assoma no dístico final: a cantiga, no lugar de alargar o homem, o subtrai.
Sofisticação linguística
A sofisticação linguística, na poesia de Alberto, é o que oferece potência à fala interventora, socialmente participante. A dor extrema que envolve todo aquele que a sofre, num hospital, materializa-se, em Pavilhão das enfermarias, por meio da hipérbole singular da lágrima-invólucro, que devia ser apenas uma metonímia do sofrimento. Num poema como Tradição, o eu-lírico revela aos oprimidos o quanto de força represada eles guardam e o nível de debilidade — camuflada pela abstrata inércia da tradição — daqueles que ordenam: “E somos governados todos/ por um ex-dono de fazenda,/ que está um pouco amolecido,/ mas ainda sabe dar gritos”. A marginalidade cotidiana é sempre destacada em versos que, embora muitas vezes de circunstância, não perderam o gume lacerante da linguagem, frequentemente da ironia.
Ora, se é verdade — como cremos — que as equalizações sociais começam no reajuste da sensibilidade, Alberto da Cunha Melo entabula em sua obra literária o ofício desse apuro e, num tom menor dilacerante, flagra a pungente incongruência das injustiças. Não é outra coisa que podemos notar, quando lemos a respeito de um menino ladrão de jambos, no poema Rua Azul, Jaboatão, PE: “Com sua morte alguma fruta/ amadurece sossegada,/ mas quem a colherá talvez/ não a deseje tanto, tanto”. A criança, de vida transbordante, que na pressa de viver colhia a beleza ainda em botão, agora não passa de memória, tornada perene pelo mármore da poesia.
Nesse processo de tudo ressignificar, Alberto da Cunha Melo suspende a ideia disseminada de que a vida é uma competição, substituindo-a por diversa perspectiva, segundo a qual a existência precisa receber um olhar estético — de gratidão e contemplação solidária. Para Alberto, vencer conforme o padrão que incorporamos em nosso jogo social nada mais é do que tomar distância de nossa essência, afinal “quanto mais somos menos somos/ na orquestra sombria da terra:/ subir só nos dá a vantagem/de morrer um pouco mais longe”.
A presente Poesia completa não poderia ser mais necessária nesse tempo nosso, de ilusórias estaturas, segregações de classe, suspensão da empatia. O escritor pernambucano segue, muitas vezes, no contrafluxo de nossos hábitos de grandeza, os quais parecem, antes, emergir de uma miopia metafísica. Em saber-se minúsculo, por tão pouco poder oferecer a outrem, pulsa a angústia pela solidariedade: “Sou pouco para amar/ os que têm merecido/ meu pouco amor;/ para prender, segurar/ o amor que mereço,/ pouco para suportar/ ser tão pouco”.