O nascimento do escritor

Em “O fazedor de velhos”, Rodrigo Lacerda narra a busca de um adolescente pela vocação e a luta contra o tempo e a favor dele
Rodrigo Lacerda, autor de “O fazedor de velhos”
01/09/2008

Se você tem 14 anos ou 41, a terceira novela do carioca Rodrigo Lacerda, O fazedor de velhos (soma-se a sua obra um romance, Vista do Rio, de 2005, e um infanto-juvenil, Fábulas para o ano 2000, de 1999) vai tocá-lo do primeiro ao 12o capítulo. A afirmação, aparentemente otimista, se sustenta com facilidade. Em primeiro lugar, basta que o leitor conheça os livros de Lacerda: nenhum abaixo do mais que razoável. Em segundo lugar, O fazedor de velhos pertence a um gênero caro à maioria dentro da história da literatura: a narrativa longa de formação. Quem resiste a ritos de passagem essenciais, como a descoberta do amor e da vocação – direcionando nossa vida -, fixados ficcionalmente numa linguagem plena de emoção e, ao mesmo tempo, tão legítima quanto intensa?

Pedro é o protagonista, 16 anos, com toda a inquietude da idade, apetites da idade, extravios da idade. Entretanto, o perfil dos pais, a mãe professora de literatura, o pai um advogado apaixonado por Shakespeare, incide nessa floração juvenil. E diante de cada revés, banais revezes que ao coração jovem parecem tragédias imensas, a voz dos escritores de que gosta serve-lhe de experiência adicional a orientá-lo frente à derrota. A partir dos livros que lê (passa a novela inteira culpando-se de preguiça mental, o que é um sinal pra lá de saudável, de revelação da autocrítica sempre atenta), toma decisões ou, ao contrário, aumenta mais ainda suas já fundas dúvidas. Dúvidas freqüentemente fecundas, que a literatura que ele absorve, quase sem sentir, potencializa. E o torna forte quando mais se sente frágil.

Determinado quando mais se sente perdido.

Maduro quando mais se sente uma criança.

Pedro é, de certa forma, um modelo de rapaz – não soasse isso tão moralista, atentar para o fato, o que não é a intenção do autor nem a desse resenhista, mas impossível evitar a simpatia que o narrador nos arranca – que durante a novela de Rodrigo Lacerda vai, de capítulo em capítulo, crescendo e se “perdendo”, e na realidade, quase a conta-gotas, achando-se. Descobrindo o que o passado fez com ele, o que o presente anda aprontando, o que o futuro lhe reserva. E a soma e a divisão desses três estágios temporais para um resultado que se mostra como a maior especialidade de Pedro, um ficcionista de realidades, um realizador de ficções, uma pessoa atenta ao bem maior, científico ou humanista: o afeto.

Passa pela primeira desilusão amorosa. Muito bem conduzida pelo autor, que constrói antes as oscilações emocionais da relação Pedro-Ana Paula (a primeira menina a mexer com ele), através da infância, do crescimento, dos encontros-desencontros da dupla durante as diversas turmas na escola, dos ciclos de implicância gratuita intercalados pelos momentos de amizade incondicional. Quando a idade é atingida implacavelmente pelos hormônios, desejo e amizade se fundem e a paixão dá as cartas. Pedro é rechaçado. Leva o bolo maior no dia de formatura do secundário.

Enquanto isso, em paralelo, estabelecendo um eco na narrativa, a sustentá-la ainda mais em equilíbrio dramático e em construção psicológica da personagem – além de aumentar em interesse a trama -, um velho, personagem enigma, surge, e atua decisivamente num episódio da vida de Pedro. Desaparece durante um bom tempo. Ressurge em outro episódio decisivo. Desaparece novamente, e ressurge já com Pedro prevendo o pré-vestibular, “viúvo” do primeiro e malogrado amor e com sérias dúvidas se deve efetivamente seguir o que até então escolhera para si: o curso de História.

Partindo com Shakespeare
Ao encontrar um antigo professor, encontra afinal um intermediário decisivo para chegar até o velho de temperamento radical, áspero, e, pelo visto, brilhante. É com ele que talvez encontre a ajuda decisiva para achar a própria vocação. A decisão pelo curso adequado é inadiável.

Nabuco, o velho soturno, ácido, mal-educado às vezes, mora sozinho. Propõe tarefas cujo objetivo Pedro não compreende. A primeira: achar a frase-chave que sintetiza toda a ação da peça Rei Lear, de Shakespeare. E deve ler a peça em inglês, o inglês elisabetano (século 16) quando nem o inglês moderno é familiar ao jovem. Com alguma paciência, muito dicionário e a ajuda de uma peça filmada em DVD, Pedro afinal compreende o básico: qual a história que o maior dramaturgo de todos os tempos conta. São, afinal, duas tramas paralelas – que, aliás, se encontram.

Passam semanas, muito tempo, e Pedro acha que entendeu tudo da peça, mas a frase-chave, cadê ela?

Um dia, o ex-professor chama-o. Passa-lhe nova tarefa: estudar a natureza humana. Como? A partir do quê? Em que aspecto especificamente? Nenhuma resposta, nenhuma pista. Parece que o protagonista deve descobrir em si mesmo os próprios detalhes da tarefa. Resolve, quase num ato extremo, fazer fichas do perfil psicológico de cada personagem de cada livro que o impressionou. Começa exatamente com Rei Lear, passa a romances de Eça de Queiroz, e os meses passam. A rispidez inicial do velho Nabuco vai se atenuando. A convivência e sua constância mostram a força e o calcanhar-de-aquiles dos dois.

Seguindo Nabuco pelas ruas, Pedro vai dar em um cemitério. O velho solteirão tem um segredo. Uma tumba onde deposita flores e com elas palavras num diálogo tão saudoso quanto revelador, não fosse a distância a impedir Pedro de ter acesso a tais verdades.

Numa pausa combinada, em que o velho viajará, fica de retornar dali a oito dias para continuar com os testes através dos quais Nabuco lhe revelará a vocação. Volta no prazo combinado e é recebido por Mayumi, afilhada do dono da casa, que ainda está na Bahia e se retardará. O sortilégio se instala. Mayumi mora na França, estuda neurologia: “minha área de pesquisa se propõe a fotografar as reações no cérebro das pessoas em momentos de grande emoção”. 

Linguagem elegante
Engenhosa jogada do autor. Ambientados no mundo íntimo de Pedro, sabemos como fotografá-lo: a linguagem depurada, elegante, sem temer alguns “excessos” como o humor ou o lirismo – naturalmente contido – de Rodrigo Lacerda nos ajuda a, partir daquela constatação, tornarmo-nos, leitores, neurologistas a tratar de Pedro a cada cena. Paciente especialmente rico em reações dessa natureza.

O enamoramento entre Mayumi e o rapaz é fulminante. Mas ela, cientista, avisa: os estudos primeiro. E faltam dois anos para seu retorno ao Brasil. Tem 15 dias para voltar a Paris. Mais um jogo onde o afeto é posto em risco e o tempo engole tudo (quando não expande). Com a volta de Nabuco, Pedro vai visitar o mestre para recomeçar a avaliação, os testes, temeroso de que o velho seja contra a relação. O que se dá.

A demonstração de que não se trata de simples arroubo juvenil e a expressão transtornada, seguida de respeitosa resignação do rapaz, convencem Nabuco de que é coisa séria. Convence Pedro a esperar os dois anos. A afilhada, a não desistir do retorno. E ela parte para terminar o curso, com a certeza de voltar e ter alguém, com algo raro a sua espera (o afeto, esse tema tão caro e tão desafiador para um escritor não cair na pieguice, onde Rodrigo Lacerda jamais cai).

Passam os dois anos, durante os quais Pedro praticamente se muda da casa dos pais para a de Nabuco. O esquisitão ex-professor vai mostrando, gradativamente, que todas as suas exigências não passavam de estratégias para fazer Pedro vir à tona, um Pedro difícil de ser arrancado da própria sombra que o acompanhava por dentro.

Outra incursão de Nabuco ao cemitério, onde está enterrada uma mulher chamada Cecília. Outra perseguição de Pedro. Desta vez o pior acontece. Nabuco fala com o túmulo, como numa prece, e Pedro escuta seu próprio nome. É dele que o velho fala, e de bem, e de como a afilhada encontrou algo pelo qual vale a pena viver. E sente um mal súbito. Pedro sai de seu esconderijo e acode Nabuco.

Cuidados
Na CTI, já recoberta a consciência, o médico explica para Pedro que o velho teve uma ameaça de parada respiratória, mas que não deixara seqüelas. Porém, o quadro é grave, os pulmões definitivamente comprometidos. Precisará de tratamento rigoroso em casa, de monitoramento, de acompanhamento. Nabuco não quer saber de enfermeiras. O rapaz cuidará de tudo.

No quarto do hospital, Nabuco confessa, com voz débil, que sabia que Pedro o estava vigiando no cemitério. Conta quem é Cecília: estava noivo da moça quando foi morta num desastre com a lancha em que passeavam, Nabuco dirigindo – inábil, levando a lancha contra as pedras.

Logo que tem alta, o velho já encontrou o diagnóstico para Pedro. Em sua casa, acompanhado dos cuidados do rapaz, que chegou aos 20 anos (há quatro anos se conhecem, com dois grandes intervalos). O curso de História não é mesmo o que ele deseja nem lhe trará prazer se historiador pretender ser. Pedro não tem vocação para mexer com documentos e a partir tão-somente de documentos, objetos antigos, obras artísticas, registros policiais, etc. apreender “o universo mental, político, filosófico, estético e social” de uma época. Pode fazer isso, sim, mas através de outros meios. E, sobretudo, de uma forma diferenciada de encarar o tempo: saber envelhecer para além das cronologias. Viajar no tempo, para trás e para frente. Ser capaz de vestir a pele das mais diversas personagens.

Difícil experiência, e para ela Nabuco ainda exige um teste derradeiro. Pedro aceita cumpri-lo. E depois de pensar em todas as possibilidades imagináveis (todas elas implausíveis), resolve escrever, recuperando através da escrita o passado, fixando o presente e criando um futuro hipotético mas crível. O resultado são 50 páginas que resultaram no que Nabuco conclui como o germe do ficcionista. Deve imediatamente escrever um romance. Pedro não pestaneja.

Mayumi retorna. O reencontro nada traz de distâncias. É como se não tivessem se separado, a afilhada do ex-professor e o rapaz. O único problema – não menor – é a saúde do velho Nabuco, apelidado por Mayumi, quando ela tinha sete anos, de “O fazedor de velhos”, porque ele costumava fazê-la pensar sempre sobre tudo, e ela, pensando, percebia o tempo passando, as dúvidas marcadas pelo tempo, e ela envelhecendo – e descobrindo, e aprendendo.

Como com Pedro, que sente que não se passaram apenas quatro anos desde que vira Nabuco pela primeira vez, num saguão de aeroporto, mas um ciclo inteiro de sua vida, que não pode ser medido em anos, muito menos em poucos anos.

Torna-se escritor. Terminava o primeiro romance, não sem antes reescrevê-lo várias vezes, após comentários de Nabuco e de Mayumi. Manda para todas as editoras possíveis. Depois de tanto silêncio, uma aprovação. O livro será publicado dali a um ano. O professor vive seus últimos dias. Pedro e a namorada estão de casamento marcado, mas o padrinho não terá condições de acompanhá-los até o altar. No mesmo dia em que enterram Nabuco, casam-se mais tarde.

A seco, pensando na trama de Rodrigo, parecerá um tanto exagerado esse final. Dentro da atmosfera da narrativa, não poderia ficar barato, e, bom autor, por que deixar por menos? Nabuco temia pelo destino de Mayumi, é quase como se, mal o tendo enterrado, um pouco mais tarde levassem a seu túmulo as flores do casamento como bênção para uma vida que é eterna se olhada em perspectiva – para trás.

O fazedor de velhos
Rodrigo Lacerda
Ilustrações: Adrianne Gallinari
CosacNaify
136 págs.
Rodrigo Lacerda
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1969. É doutor em Teoria Literária, mas, como ele mesmo declara, gosta mesmo “é da prática”. Sua bibliografia: O mistério do leão rampante (novela, Ateliê Editorial, 1995, prêmios Certas Palavras e Jabuti), A dinâmica das larvas (Nova Fronteira, 1996), Tripé (contos, Ateliê Editorial, 1999), Fábulas para o ano 2000 (infanto-juvenil, Ateliê Editorial, 1999), Vista do Rio (romance, CosacNaify, 2005, finalista dos prêmios Jabuti, Portugal Telecom e Zaffari &Bourbon).
Paulo Bentancur

É escritor. Autor de A solidão do diabo, entre outros.

Rascunho