A literatura nada tem de simples passatempo. Ela é talvez o instrumento mais poderoso e mais eficaz de que o homem dispõe para conquistar e defender a sua liberdade e a sua dignidade.
Osman Lins
Não consigo lembrar de quando — como leitora — conheci Osman Lins. Sempre que penso nesse quando, já me enxergo encantada com seu Retábulo, com sua lente de desvelar o mundo, com suas alegorias, sem conseguir sequer vislumbrar a origem de meu percurso. Seus textos impactaram profundamente minha visão de mundo, sobretudo a partir de 2008 quando, de fato, tornei-me pesquisadora de sua obra ficcional. No caso desse autor, a distinção entre ler sua obra e pesquisá-la se adensa ao infinito, pois muitas são as camadas de seu texto, muitas as claves de leitura que oferece, todas capazes, todavia, de seduzir o leitor interessado. Mas vamos começar de fato pelo começo: quem é, quem foi Osman Lins, esse escritor tão pouco conhecido do público brasileiro?
Nasce em Vitória de Santo Antão (PE), a 5 de julho de 1924, filho de Teófanes da Costa Lins e de Maria da Paz de Mello Lins. Ela, muito jovem ainda, vem a falecer dezesseis dias depois, por conta de complicações do parto. Nunca havia tirado uma fotografia, o que deixou o filho “com uma espécie de claro” atrás dele, como ele mesmo afirma em entrevista à revista Escrita, em 1976. Tal ausência teria então configurado sua vida como escritor: escrever seria, metaforicamente, construir com a imaginação um rosto que não existe. E é tão forte a influência desse fato em sua vida que, se por um lado surgem aqui e ali, em seus textos, personagens que levam a vida caçando possíveis fotografias perdidas de seres amados, por outro o próprio ato de escrever nos é apresentado, em seus livros, como algo obscuro, oculto, difícil, algo a ser desvendado, à semelhança desse rosto nunca visto. Muitas vezes a enigmaticidade de seu texto corresponde à sua própria essência, levando o leitor também ele a caçar o oculto, aventurar-se em labirintos, decifrar as premonições de que ele está cheio.
Se tomarmos como exemplo o romance Avalovara (1973), temos uma personagem cujo nome jamais será enunciado, uma Cidade desconhecida (metáfora da plenitude literária que a personagem persegue), referências pontuais a textos cujo sentido teria desaparecido no tempo, como o do Disco de Festo. E a presença de grifos no romance? Animal fabuloso, etimologicamente corresponde a enigma, tornando claro ao leitor que tudo nesse texto se entrelaça: trata-se, de fato, de um texto, de um tecido linguístico.
O início
O autor foi criado pela avó paterna e por uma tia, a quem chamava de mãe, na cidade de Vitória, onde nasceu, a 50 quilômetros do Recife. Somente aos dezesseis anos deixa tudo para trás — infância, família, cidade — e, tendo já escrito poemas e alguns contos, segue para a capital, onde passa a residir. Torna-se funcionário do Banco do Brasil e faz um curso superior de Ciências Contábeis. Mais adiante, já casado com Maria do Carmo de Araújo Lins e pai de três filhas — Litânia, Letícia e Ângela — faz um curso de Teatro na Universidade Federal de Pernambuco, tendo sido aluno de Hermilo Borba Filho (de quem se torna grande amigo) e de Ariano Suassuna. As aulas deste último propiciam a escrita de Lisbela e o prisioneiro, peça que venceria o 2º Concurso Nacional da Companhia Tônia, Celi, Autran, em 1961. Em 1961, ainda, ao longo de seis meses, tem a oportunidade — como bolsista da Alliance Française — de conhecer não apenas Paris, mas algumas outras cidades de países europeus, como Espanha, Portugal, Bélgica, Itália, Holanda, Suíça e Inglaterra. Essa experiência, anotada em diário, é posteriormente transformada em relato, publicado sob o título Marinheiro de primeira viagem, em 1963.
Talvez possa ser dito que a Europa constitui a essência da mudança que vai se operar em sua escrita: não mais linear, machadiana, como na primeira fase (de 1955 a 1961, anos de publicação de O visitante e de O fiel e a pedra, respectivamente), mas sinuosa, experimental, ousada, repleta do que ele passará a chamar de ornamentos, num rigor formal nunca por ele antes utilizado. É o Velho Mundo que, a partir de então, move Osman Lins e se reflete em seu texto: o fascínio pelo medievo, a descoberta dos vitrais das igrejas e das obras artísticas dos museus, o encanto pela arte da relojoaria e pelo traçado de praças e parques, o aprendizado de um mundo novo, tudo advém do período vivido por ele na Europa. É dessa ideia de Europa precisamente que já não prescindirá tudo o que vier a escrever a partir de 1961 — desde as cadernetas (com breves anotações sobre a paisagem, os museus e bibliotecas, os cafés e as pessoas, os jardins e as estações de trem, os eventos vividos) até o texto ficcional —, dando-nos a real dimensão da importância de sua vivência europeia na reviravolta operada em seu modo de ver o mundo e, consequentemente, de escrevê-lo. Ao retornar da viagem, decide que Recife já não responde aos seus anseios como escritor e muda-se com a família para São Paulo, no ano seguinte. Separa-se da mulher um ano depois e ela termina por regressar ao Recife com as filhas. Em 1964, Lins casa-se com Julieta de Godoy Ladeira, com quem vive até 1978, ano em que falece, em São Paulo.
De 1955 a 1976, anos correspondentes ao da publicação do primeiro romance e do último, Lins escreveu uma imensa variedade de gêneros: além de sua obra ficcional — composta de quatro romances e dois livros de contos —, publicou poemas, relatos de viagens, ensaios, tese de doutorado, artigos de crítica literária, livro para crianças, peças de teatro, casos especiais para a televisão, e ainda escreveu para jornais, posicionando-se a respeito de vários temas, entre eles literatura, artes plásticas, educação no Brasil.
Seus textos ficcionais impõem-se menos por seus elementos constitutivos (enredo, espaço e tempo, personagens) do que pelo fato de permitirem que o leitor deles se aproprie, relacionando-os no interior de uma rede textual mais ampla, em que a obstinada repetição de certos fatos ou palavras, intencionalmente praticada pelo autor, consegue estabelecer uma profunda conexão entre esses fatos e palavras, concedendo aos textos a imagem de um mundo completo e coeso. Artefatos de grande sofisticação, no que diz respeito à concepção de sua estrutura ou à linguagem de que se revestem, seus textos exigem chaves poderosas para serem apreendidos em profundidade. Por diversas vezes foi questionado a propósito da “dificuldade” em seus livros.
Competência dos leitores
Mas será mesmo tão difícil o texto osmaniano? Não é um texto lacunar, daqueles que obrigam o leitor a praticamente construir a história. Ali tudo está dito. É um texto que exige competência leitora, isso sim. E o que vem a ser isso? Consensualmente todos nós nos damos por leitores a partir do momento em que conseguimos decodificar os signos à nossa frente, por volta dos seis, sete anos de idade. Mas ler não é isso apenas. A leitura tem significados profundos, que só poderão ser aprendidos com a continuidade de uma vida. Osman Lins tinha consciência disso e se preocupava com o leitor brasileiro: seus recursos formais inovadores, suas estratégias narrativas, suas fórmulas de expressão ainda não utilizadas nada mais são que o desejo de encetar um diálogo com seu próprio leitor, de demonstrar por ele esse respeito e cuidado, de conduzi-lo para além do já conhecido.
Em uma de suas entrevistas publicadas no Evangelho na taba, ele assim se define:
Apesar de tudo, continuo — juro — a não querer ser na vida senão um escritor. Realizo, coisa rara, um trabalho livre. Não só́ isto. Realizo um trabalho que me impele em direção aos seres humanos e que de modo algum os trai ou ofende. Ao contrário: exalta-os e honra-os.
Tal respeito pelo leitor evidencia-se desde o início de sua carreira, quando descobrimos que chegou a escrever um romance de quinhentas laudas, nunca publicado, apenas como exercício. E esforçava-se, continuamente, para trazer ao público sempre algo novo em relação à própria obra, sobretudo após a publicação de O fiel e a pedra (1961), definido por ele próprio como “plataforma de chegada e de saída”, por ainda apresentar características ficcionais tradicionais ao mesmo tempo que sugerir algo novo, que só na próxima fase viria a ser de fato concretizado: uma certa dose de experimentalismo. Em 1966, vem a público Nove, novena, inaugurando a que seria chamada fase de transição (entre a primeira, de busca, e a segunda, de plenitude). Este livro de contos irá se destacar por elementos e estratégias inovadoras, como a utilização de símbolos gráficos para destacar a mudança de turno dos múltiplos narradores, o rompimento da linearidade da narrativa, o diálogo com outros campos do conhecimento (o que envolve pesquisa por parte do autor), enfim o predomínio em todo o livro de uma nova visão do literário, implicando um equilíbrio consciente entre real e ficcional.
Metaficcional
E aí, em 1973, surge Avalovara. Trata-se de romance que chama a atenção do leitor não apenas por narrar acontecimentos vividos por seus personagens, mas — sobretudo — por destacar a aventura de escrevê-lo, ou a ventura de escrever. Um livro, portanto, metaficcional e metalinguístico. Sua própria natureza conduz o leitor a pensá-lo, e não apenas a lê-lo. Em um romance que fala da arte de escrever um romance, tornam-se naturalmente evidentes as próprias regras de seu processo de escrita: os recursos de linguagem, as estratégias textuais, todo o arsenal utilizado em sua fatura. O último por ele publicado, A rainha dos cárceres da Grécia (1976), é um romance que se constitui como ensaio (em forma de diário) sobre o romance inédito, escrito por sua amante àquela altura já morta, intitulado A rainha dos cárceres da Grécia, que funde espaços e tempos diversos, juntando soldados da época da invasão holandesa em Pernambuco a Maria de França no século 20 , cruzando as ruas planas do Recife com as ladeiras de Olinda, entrelaçando ainda o fictício e o real. Deixou ao morrer, em 1978, as cento e vinte primeiras páginas de um romance novo, inacabado, A cabeça levada em triunfo, cujo manuscrito pode ser encontrado nos acervos da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio, e no Instituto de Estudos Brasileiros (USP), em São Paulo.
Durante o período da pandemia de covid-19, recolhida à casa e aos escritos e firmemente decidida a — mais que nunca antes — concluir um livro sobre Osman Lins, bati os olhos em artigo publicado na internet, intitulado Bangladesh tenta reviver produção de musselina, o lendário tecido. Tal artigo revelava que a técnica de fabricação do tecido, composta de dezesseis etapas, foi totalmente esquecida. Era tecida à mão com fios de um algodão especial (hoje extinto) que crescia às margens do rio sagrado Meghna, ao sul de Daka, também fiados à mão. Sua textura era tão fina e maleável que um sári feito dele podia caber inteiro numa caixa de fósforos. Yuan Chwang, monge budista chinês e grande viajante, ao passar pela Índia em 629, escreveu que “o tecido era como o leve vapor da aurora”. A leitura do artigo trouxe-me à consciência a progressiva sofisticação das técnicas desenvolvidas ao longo dos séculos pelos bengaleses com a finalidade de manusear melhor a matéria-prima considerada “instável, sensível”, para com ela compor a musselina que terminou chamando a atenção da aristocracia europeia. Fatalmente, terminei por associar todo esse movimento à criação das refinadas estratégias textuais que Osman Lins desenvolveu ao longo de vinte e um anos de publicações, estratégias que lhe permitiram lidar com a linguagem, fixando-a em texto de alta sofisticação.
Neste ano de 2024, em que ele completaria cem anos (e a quase cinquenta de sua morte), damo-nos conta da atualidade de sua obra literária. Se levarmos em conta que um texto envelhece, na medida em que novas perspectivas ou novos ângulos de visão emergem a partir de situações novas, da evolução no estilo, do exercício da sensibilidade crítica, da noção dos cânones, ainda assim é visível a atualidade do texto osmaniano. É considerado pela crítica como precursor das formas de textualidades contemporâneas e seus textos ficcionais — sobretudo estes últimos — não perdem as características de textos ainda a serem desvendados, a serem lidos a fundo. Para tal profundidade, contribui a postura escritural de Lins, que compreende o ato da leitura como necessidade indispensável à vida interior do ser humano. É imenso, pois, o legado que deixa para as próximas gerações. Que elas aprendam a compreendê-lo e a descobrir em seus textos o que tão laboriosamente ele construiu, consciente de que estava fazendo o melhor para os homens e mulheres de seu país.